Jacinton Nelson de Miranda Coutinho, eminente processualista, em artigo publicado pela Carta Maior, aduz a inconstitucionalidade deste procedimento, referindo que sua prática, dentro de um sistema processual penal de matriz acusatória, ofende o devido processo legal, a inderrogabilidade da jurisdição, a moralidade pública, a ampla defesa e o contraditório a proibição às provas ilícitas
Por Gabriel Abelin, no Justificando
Há uma passagem muito famosa do livro “Vidas Paralelas”, onde o historiador romano Plutarco afirma que César teria declarado que amava as traições, mas odiava os traidores. O recente alarido ressoado aos quatro cantos pela imprensa em relação às delações premiadas dentro do contexto da operação “Lava Jato”, conjugados com o entendimento que o Ministério Público Federal e o juiz Sérgio Moro têm esposado, reacendem a discussão no meio jurídico sobre este polemíssissimo procedimento.
A manobra de prender os acusados para forçá-los a delatar outros envolvidos no caso gerou perplexidade e indignação em nomes de relevo das ciências criminais, caso dos professores Aury Lopes Jr. (PUC-RS), Miguel Reale Jr. (USP) e Lenio Luiz Streck (UNISINOS). Apenas para didatizar ao leitor que não possui a obrigação de ter estudado Direito e, involuntariamente, se vê repetindo termos técnicos sem saber seu significado, resumidamente, conforme a lição de Luciano Feldens, “delatar significa ‘denunciar’ ou revelar a prática de um delito, bem como os participantes na ação criminosa. O agente, em troca de vantagens, que no direito positivo brasileiro são a redução ou substituição da pena ou a extinção da punibilidade, admite sua culpabilidade e declara-se responsável pelo crime cometido”.
Historicamente, o instituto nos remete ao “Manual dos Inquisidores”, na medida em que, na Idade Média, a confissão dos delinquentes era auferida por intermédio da tortura. Sobre esse prisma, a delação possui índole maquiavélica, ou seja, seus fins justificariam os meios. Cesare Beccaria, principal responsável pelo movimento que levou a humanização das penas, já se manifestava contrariamente ao método da delação forçada/premiada, explanando categoricamente que as acusações desse gênero consistiriam em abuso manifesto, consagrado em governos com a fraqueza de sua constituição por homens falsos e pérfidos. Rui Barbosa também exclamava com convicção que a delação premiada era “um absurdo”, que não se deve combater um exagero (no caso, desvio de vultosas quantias da mencionada estatal) com um outro absurdo (a delação premiada).
De mais a mais, nunca é demasiada a lembrança – principalmente aos leitores católicos – que, como oportunamente escreve Heider Silva Santos, “a Bíblia Sagrada relata o mais emblemático caso de delação premiada: a entrega de Jesus à crucificação em troca de trinta moedas de prata (Mateus, Capítulo XXVI, ver. 15). Nesse aspecto, cumpre advertir que, no caso de Judas Iscariotes, a cólera das pessoas é dirigida ao traidor, sendo quase indiferente ao mandante e aos algozes, os quais efetivamente poderiam ter evitado a execução ou diminuído o sofrimento do Messias. Disso extrai-se que a dor da ferida aberta, do açoite e do assassinato ecoam com menor intensidade se comparado à delação. Já que, mais do que provocar mera reprovação, a “caguetagem” é rejeitada veementemente como comportamento torpe, indigno, o que fez muitos prisioneiros políticos resistirem à humilhação da tortura em nome da lealdade aos seus pares durante a ditadura militar.
Por fim, longe de pretender esgotar o tema – até porque há o limite de espaço concedido pelo jornal a ser respeitado -, Jacinton Nelson de Miranda Coutinho, eminente processualista, em artigo publicado pela Carta Maior, aduz a inconstitucionalidade deste procedimento, referindo que sua prática, dentro de um sistema processual penal de matriz acusatória, ofende o devido processo legal, a inderrogabilidade da jurisdição, a moralidade pública, a ampla defesa e o contraditório a proibição às provas ilícitas. E arremata o provecto doutrinador paranaense nos enviando ao pensamento de Rousseau e na estrutura do contrato social, que é a regra básica e fundamental não só do Estado, mas também daquilo que estabelece o padrão pelo qual todos se igualam, ou seja, a legalidade.
Todo pacto social prescinde de uma crença nos princípios, que são cardeais para as estruturas democráticas. Dentre eles, é basilar o princípio da confiança, em que que funda a base do princípio democrático e, por consequência, do próprio princípio republicano. É o princípio da confiança, como se sabe, que faz os cidadãos irem desarmados às ruas; as mulheres se produzirem e saírem sós sem sentirem medo de serem violentadas; os motoristas passarem com aparente segurança no sinal verde, e assim por diante. Veja-se, então, como a vida é gerida pela confiança que está nas relações, inclusive aquelas onde o vínculo é fundado no amor.
Todos, assim, são exemplos que remetem à crença. Sociedades democráticas, deste modo, estruturam-se apenas porque há confiança, na qual se investe. Até que ponto, porém, é possível suportar a quebra da confiança?
Gabriel Abelin é Acadêmico do 9º semestre do curso de Direito da Faculdade de Direito de Santa Maria (FADISMA) e Pesquisador do Núcledo de Estudos em Direito e Marxismo (NUDMARX) da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).