No dia 13 de outubro, o campo progressista obteve uma importante vitória junto ao Supremo Tribunal Federal.
Ou melhor, três importantes vitórias: seus protestos junto ao STF contra as manobras ilegais do presidente da Câmara, Eduardo Cunha, foram ouvidos.
Diante das arremetidas cada vez mais violentas do golpismo, esse monstro golpista alimentado por séculos de autoritarismo, e que pensávamos adormecido desde o fim do regime militar, diante de tantas violências, nossas vitórias, por mais humildes que sejam, tem um grande simbolismo para nós, do campo progressista popular.
Ainda mais quando se dão junto ao judiciário, instância que respeitamos profundamente, mas que tem se revelado, com lamentável frequência, vulnerável aos gritos e às truculências de setores historicamente autoritários da nossa sociedade.
Sabemos que vencemos apenas uma batalha. A guerra, movida pelos setores que pretendem aplicar no Brasil um golpe paraguaio, ainda vai durar vários meses.
Adiamos o golpe por algumas semanas, ou por tempo indeterminado. Ainda não sabemos.
Queria partilhar com vocês algumas reflexões sobre o nosso momento, reflexões as quais, quero acreditar, nos façam permanecer mais firmes e mais fortes em nossa posição de resistência.
Norberto Bobbio, um dos grandes teóricos contemporâneos das democracias ocidentais, em seu livro Teoria Geral de Política, nos lembra que a democracia não é uma meta, nem tampouco uma utopia.
A democracia, diz Nobbio, é uma via, um processo, e estamos – nós, a humanidade – apenas em seu início.
Não sabemos sequer onde a democracia irá nos levar, de maneira que ela é uma aventura.
Não sabemos, da mesma forma, onde vai dar a história humana.
Mas o passado nos ensina que a democracia, como via, é a mais prudente e segura de todas as outras formas de governo.
E que processo é este?
Em que este processo se associa à crise política que vivemos hoje no Brasil?
A democracia, e aí temos um valor que reúne liberais e socialistas, é um processo cujo fundamento ético é a o reconhecimento da liberdade e autonomia do indivíduo.
Esta é a força moral da democracia.
Ela nasce da liberdade de todos os indivíduos, sem distinção de raça, sexo, religião e classe social.
E como esta autonomia e esta liberdade se manifestam, quando falamos de poder político?
No voto.
O voto do pobre tem o mesmo valor moral que o voto do rico.
A liberdade política, na doutrina democrática, se materializa no sufrágio universal.
Segundo os teóricos da democracia, inclusive os mais liberais, aqueles que a direita gosta de citar como seus patronos intelectuais, todos concordam neste ponto: a democracia moderna é um regime baseado no sufrágio universal, porque este pressupõe que todos os indivíduos têm a competência moral e, sobretudo, a liberdade, para julgar o que é melhor para si e para o coletivo do qual fazem parte.
Não podemos, meus amigos, jamais, banalizar o sufrágio universal.
A nossa imprensa agora quer vender a decisão do Tribunal de Contas da União (TCU), que reprovou as contas do governo da presidenta Dilma, como “histórica”.
Ora, temos grande respeito pelo TCU, mas estamos novamente diante de um histórico desafio para a nossa democracia.
A força moral de uma democracia não reside em meia dúzia de ex-políticos travestidos de juízes de um tribunal auxiliar do legislativo.
Nem mesmo o legislativo tem competência moral para cassar o voto dos candidatos majoritários eleitos pelo povo.
Mesmo se 100% dos deputados federais pertencessem à oposição, nem assim estes teriam poder para cassar o voto do presidente da república.
Se um TCU qualquer tivesse competência para cassar o voto dos vencedores das eleições, então não teríamos uma democracia, e sim uma autocracia, um governo controlado por técnicos (falsos ou não), cujo poder estaria acima do poder maior da soberania popular.
Não teríamos um voto direto e livre do cidadão, e, portanto, estaríamos assassinando a liberdade e a autonomia do indivíduo, contrariando até mesmo as tendências mais liberais da doutrina democrática.
As revoluções democráticas modernas, americana e francesa, materializaram uma revolução política do tipo coperniciana.
Antes, a relação política era centrada no Estado. A partir das revoluções democráticas modernas, o ponto de partida da relação política passa a ser o indivíduo.
O centro do universo não é mais a Terra, que representa a contingência dos governos e Estados, e sim a liberdade imortal de um indivíduo dotado de uma razão também imortal.
Ou seja, o poder não emana mais de supostas autoridades do Estado, e sim do eleitor.
Não por outra razão, o sufrágio universal se torna, cada vez mais, o centro da vida política de todos os países democráticos.
O sufrágio se expande em todo o mundo.
O conceito da universalidade do sufrágio é recente. Até pouco tempo, as democracias tinham dispositivos que restringiam o voto apenas a uma classe restrita: homens, ricos, acima de certa idade.
A grande revolução democrática em curso nas últimas décadas, e o Brasil só ficou fora desse processo durante os 21 anos que duraram o regime militar, centrou-se na expansão do eleitorado.
A justificativa maior da demoracia, o que nos permite defendê-la como melhor forma de governo, ou a menos ruim, está precisamente no pressuposto de que o indivíduo singular, o indivíduo como pessoa moral e racional, é o melhor juiz de seu próprio interesse.
Qualquer outra forma de governo fundada no pressuposto contrário, vale dizer, no pressuposto de que há indivíduos superiores, seja por nascimento, educação, méritos extraordinários, ou por exercer altos cargos no Estado, é uma forma autoritária, uma espécie – disfarçada ou não – de ditadura.
Em outras palavras, a nossa demoracia vive um grande teste histórico. Agora sim iremos provar a dureza de seus ossos, a força de seus princípios mais profundos.
Setores da oposição tem se aferrado a pesquisas de opinião, que mostram o governo com baixa popularidade.
Esse é um grande erro.
Com todo o respeito por nossos competentes institutos de pesquisa, mas uma democracia de um país com 204 milhões de habitantes não pode ser auferida por pesquisas feitas num ambiente de profundo desequilíbrio político.
A única auferição responsável e democrática da legitimidade de um governo é o sufrágio universal.
Porque somente o sufrágio universal confronta projetos.
Somente o sufrágio universal tem regras democráticas que permitem às forças políticas batalharem pela preferência do cidadão com um mínimo de igualdade.
Numa eleição, não se escolhe, necessariamente, sobretudo numa eleição majoritária, o governante que eu adoro, que eu amo, do qual sou fã.
Numa eleição presidencial, fazemos uma opção entre dois ou três candidatos competitivos.
Essa é a realidade eleitoral.
Nas eleições de 2014, tínhamos vários candidatos competitivos, tanto que o resultado foi incerto até o final.
O principal adversário de Dilma Rousseff obteve tantos recursos financeiros quanto ela.
No segundo turno, tinha o mesmo tempo de TV.
Aécio Neves tinha o apoio dos grandes meios de comunicação e de setores do rentismo internacional.
Sabemos que o governo cometeu erros políticos. Que governo não os cometeu?
Não avançamos, por exemplo, na questão da democratização da mídia, e hoje os brasileiros sofrem com um sistema de informação herdado da ditadura militar.
Quanto aos crimes de corrupção de que alguns membros do partido são acusados, o que mais desejam além da nossa resignação?
Mesmo diante das mais flagrantes injustiças, dos mais notórios arbítrios, o governo não tem reagido com a mais dócil resignação republicana?
Procuradores, delegados federais, imprensa, juízes, não tem agido com toda a liberdade e autonomia?
Alguns juízes têm demonstrado explícito partidarismo, outros falam de processos que ainda irão julgar com uma desenvoltura muito próxima do despudor criminoso, e, no entanto, a nossa presidenta não tem reagido a tudo isso com a mais absoluta serenidade e respeito às instituições?
O que mais querem de nós?
Querem que renunciemos ao voto que nos foi conferido por dezenas e dezenas de milhões de brasileiros?
Meus amigos e amigas, os setores mais truculentos da nossa imprensa tem se referido à decisão do TCU, que reprovou – injustamente – as contas do governo como “histórica”.
Sim, eu concordo, mas num sentido contrário. Foi uma decisão política, que teve um significado realmente histórico, de confrontar dois princípios: o poder de pseudos técnicos, ampliado artificialmente pela mídia, e o poder popular, expresso no sufrágio universal.
Dentro de alguns dias, as eleições de 2014 completarão aniversário de um ano.
Essas sim, foram históricas.
O eleitorado brasileiro passou de 109 milhões de pessoas, no ano 2000, para 143 milhões – o que nos faz uma das maiores democracias do planeta.
143 milhões de indivíduos, 143 milhões de liberdades individuais, 143 milhões de autonomias.
Quem pode definir o que é melhor para o Brasil, a não ser estes 143 milhões?
Quem tem competência moral para escolher este ou aquele partido, este ou aquele candidato, a não ser esses 143 milhões de brasileiros?
Um colunista da mídia poderia saber – mais que esses 143 milhões – qual seria o melhor governo?
Derrubar a presidenta Dilma Rousseff seria violentar o voto e mesmo o não-voto (visto que todos são fruto de uma decisão singular intransferível) de todos esses 143 milhões!
E a troco de quê?
Por causa de quê?
Para substituir por quem? Por qual projeto?
A aprovação da presidenta Dilma sofre, sempre é bom repetir, não porque ela está executando o que ela mesmo queria fazer, mas porque as necessidades históricas e políticas a obrigam a adotar medidas duras que a fazem parecer o candidato adversário.
O povo está insatisfeito com Dilma porque ele queria mais Dilma e menos Aécio, mais PT e menos PSDB, e não o contrário!
A oposição midiática não tem o direito de pretender saber o que o povo quer, sobretudo não a partir de pesquisas que tem uma lógica completamente diferente do sufrágio popular, por não apurarem o confronto de ideias, e por não estarem inseridas num ambiente democrático regulamentado, de campanha eleitoral, onde os diversos lados podem expor suas visões de mundo e seus projetos estratégicos.
O que estamos assistindo, meus amigos e amigas, é a tentativa de um golpe de Estado.
Um golpe de Estado de republiqueta de bananas, tocado por gente que não entende nada de demoracia. Que não ama a democracia. Que não respeita a democracia.
“Histórico” não é decisão de TCU, não é manobra regimental para burlar a Constituição.
Histórica será a resistência da nossa democracia, uma democracia fundamentada na liberdade de 143 milhões de eleitorres de escolherem, no ambiente adequado, sob parâmetros regulados pela Constituição, qual é a melhor opção para si mesmos e para o destino de seu país.