O país vive horas cruciais. O assalto conservador ao poder joga uma cartada de vida ou morte contra o relógio político. À medida em que apodrece a reputação de seus centuriões, resta-lhes abandonar qualquer veleidade que não a espiral de tentativas e erros para derrubar o governo. Se quiser resistir à resiliência golpista, a Presidenta Dilma – com apoio das forças progressistas– terá que falar à Nação
Por Saul Leblon, na Carta Maior
O país vive horas cruciais. O assalto conservador ao poder joga uma cartada de vida ou morte contra o relógio político nos próximos dias.
À medida em que apodrece a reputação de seus centuriões, e os savorolas da ética entram em combustão explosiva –caso dos homens-tocha Cunha, Agripino, Nardes, Aéreo Neves etc, resta-lhes apostar tudo no estreito espaço de tempo entre a desmoralização absoluta e a capacidade residual de articular o golpe.
Arqueado sob R$ 31 milhões em depósitos suíços, segundo a Folha, Cunha negociou com a hesitação golpista: em troca do pescoço, articulou uma operação casada com o PSDB.
Tucanos salvam a aparência pedindo seu afastamento –‘para que possa exercer seu direito constitucional à ampla defesa’. Em troca, o personagem que não tem mais nada a perder acelera a operação do impeachment, como última estaca de sobrevivência antes do abismo.
A sofreguidão avança de faca na boca.
Um colunista de Veja é transferido para O Globo; estreia numa hora em que o golpismo se enlameia; a ‘república de Curitiba’ vaza para ele denúncia exclusiva do delator Fernando Baiano… contra filho de Lula.
Já serviu para deslocar a manchete de Cunha para o segundo plano na primeira página do isento veículo carioca.
Vai por aí a coisa.
Seja qual for o seu desfecho, a encruzilhada em que o golpismo trata a democracia como um estorvo exige respostas contundentes.
Passa da hora de o campo progressista superar sectarismos e prioridades corporativas para enxergar a floresta além da clareira particular do seu conforto.
O que se desenha são as provas cruciais da nação brasileira no século XXI.
É imperioso manter o país a salvo de forças incontroláveis que atrelaram seu destino a uma disjuntiva em que, para vencerem, a sociedade terá que perder o rumo, o futuro e a esperança.
Se pensar pequeno, o Brasil corre o risco de ser sequestrado pelo moedor sem termo.
A sorte de sua gente, o destino do seu desenvolvimento enfrentam uma sobreposição de crises cujo desfecho terá repercussões profundas e duradouras.
Um ciclo de expansão se esgotou, um outro pede para nascer.
Pendências novas e antigas se misturam em meio a um cenário mundial adverso.
A velocidade imprevista da transição chinesa torna a neblina ainda mais densa.
É como se a viga-mestra que escorava uma época tombasse.
O motor asiático investia, em média, 45% do PIB; importava outros 10% em matérias-primas para saciar sua fornalha.
O velocímetro dessa máquina baixou abruptamente, de 11%, para perto de 6% ao ano.
A freada tempestiva sugere que poderá recuar ainda mais.
O tranco espremeu as cotações das commodities, rebatendo na hesitante recuperação europeia e, por tabela, enfraquecendo a norte-americana.
Fragilidades antecedentes, semeadas em décadas de desregulação neoliberal das finanças e do mundo do trabalho, condensaram-se nesse ambiente pantanoso.
Falta demanda porque falta salário, que inexiste porque o emprego é precário, e os sindicatos foram desossados porque o guarda-chuva partidário e ideológico dos assalariados rendeu-se ao veredito neoliberal de miss Thatcher — ‘there is no alternative’.
Vive-se a mais longa, incerta e frágil convalescença de uma crise capitalista desde 1929. E não é por acaso.
Tudo o que foi subtraído do Estado e do trabalho nesse período mostra agora a sua falta.
Sobram paradoxos.
O da superprodução de capital fictício, em metástase reprodutiva, o mais evidente deles.
Seu contraponto histórico é a anemia do investimento e do emprego.
Ficções de livre comércio rondam esse cenário.
Livre comércio em condições de contração sistêmica?
Esse é um jogo de soma zero em que apenas se transfere demanda de um ponto a outro: o emprego gerado numa economia é a vaga subtraída na outra.
Igual circularidade se observa no deslocamento dos passivos do setor privado para o Estado, após um longo ciclo de farra financeira.
O setor privado ‘ajustou-se’, diz o colunismo abestalhado de toxina neoliberal.
Sim, o ônus foi transferido aos governos. O caso mais ilustrativo é o do sistema financeiro norte-americano, que recompôs sua lucratividade repassando créditos podres ao Fed.
A relação dívida pública/PIB nas economias mais ricas saltou de 78% para 105% desde 2008. Inglaterra, EUA, França, entre outros, acumulam déficits fiscais de deixar o do Brasil no chinelo.
Em contrapartida, a participação dos salários no PIB global é declinante: 10% inferior à média dos anos 80.
Esse torniquete estreitou sobremaneira a margem de manobra de políticas associadas a projetos de desenvolvimento com repartição de renda, como as implementadas na América Latina.
O Brasil é o caso mais exposto porque justamente foi quem chegou mais longe nesse processo.
Como atesta o Banco Mundial, a pobreza extrema no Brasil caiu 64% entre 2001 e 2013, passando de 13,6% para 4,9% da população. Nada igual ocorreu na AL.
Atingido pela queda nos preços e no volume dos embarques de minérios e grãos, o país sofre também com a retração nos embarques de manufaturados, antes vendidos a parceiros latino-americanos, em idêntico apuro.
É nessa moldura que a direita brasileira opera o golpe nas próximas horas.
Chegou até aqui, entre outras razões, porque conseguiu impor o seu diagnóstico e sua pauta como referência dominante do debate sobre a crise vivida aqui e no resto do sistema capitalista.
Não é propriamente uma surpresa que as ideias dominantes de uma época sejam as ideias das classes dominantes.
Desde 1846, quando Marx e Engels assentaram seu vigamento filosófico nas páginas de ‘A ideologia alemã’, o peso material das ideias ganhou o devido destaque na luta de classes.
Mas o poder impositivo da agenda conservadora hoje no Brasil está sendo exercido de forma asfixiante.
Nessa esfera tudo se passa como se o golpe já fosse um fato consumado; a sua etapa ideológica já tivesse sido concluída.
Pesquisas que aferem a eficácia do martelete midiático no imaginário social sancionam essa sensação.
As sondagens tem gerado reações de desalento e prostração no ambiente progressista.
Que a Presidenta Dilma tenha apenas cerca de 9% de aprovação depois de eleita há menos de um ano com 54 milhões de votos é um sinal eloquente do divisor em curso.
Para um conservadorismo derrotado quatro vezes consecutivas na disputa à Presidência da República, a hegemonia massacrante na luta ideológica equivale a um recadastramento histórico.
Ainda que fracasse –ou recue—no intento golpista nos próximos dias, um sucesso tão esférico nesse plano deixa-o, permanentemente, a meio caminho andado do bote final.
Esse é o problema de fundo cuja superação convoca o desassombro e a convergência progressista.
Se hesitar, o cadafalso repelido hoje repetir-se-á amanhã e depois, até o desfecho cobiçado pelas elites.
À medida que a política econômica adotada no segundo mandato da Presidenta Dilma sanciona o diagnóstico e legitima, ainda que de forma mitigada, a terapêutica, ela reforça essa recorrência.
É como se apontasse uma arma contra o próprio peito.
O julgamento das ditas pedaladas no TCU, na semana passada, evidenciou essa dificuldade de se defender do algoz, sem romper o círculo de giz que ele traçou no chão.
Por que o governo não foi explicar, em rede nacional, o que a dita ‘pedalada’ representava de fato?
Ou seja, que a Caixa quitou o Bolsa Família em dia, sendo ressarcida em seguida pelo Ministério do Desenvolvimento Social.
Esse, o copo d’água a partir do qual o golpismo sustentou a tempestade durante dias e noites seguidos, até os 19 minutos da apoteose do senhor Augusto Nardes –ele próprio uma tocha em combustão na fogueira ética que representa.
Por que o governo não escancarou o golpismo intrínseco à ‘escandalização’ de uma operação contábil corriqueira? E na qual o governo é superavitário: entre 2012/14, o saldo do Bolsa Família na CEF rendeu juros de R$ 89,5 mi e gastos de R$ 13,6 mi pelos dias deficitários.
Ou seja, deixou um saldo líquido de R$ 76 milhões na ‘conta-corrente’ do programa que, em 757 dias úteis, até o final de 2014, só ficou negativo em 72 dias.
Em debate promovido pelo Instituto Lula, na mesma semana em que o TCU se inscrevia na Liga dos Golpistas e o governo retrucava de forma burocrática, aceitando as regras do ardil, o vice-presidente da Bolívia, Álvaro García Linera, fazia uma advertência oportuna.
‘Governo é metade realizações, metade ideia. Por muito que fizer, um governo que não trava a luta das ideias, sempre figurará aos olhos da sociedade com quem fez muito pouco’.
O governo da Presidenta Dilma não é, infelizmente, uma nota dissonante nesse padrão.
Na verdade, a negligência com a luta das ideias foi a tônica nos últimos 12 anos de avanços notáveis no plano social que, todavia, não se traduziram em engajamento político correspondente de seus beneficiários.
O economista Márcio Pochmann que pioneiramente enxergou essa assimetria voltou a lembra-la na semana passada, em debate em Porto Alegre, promovido pelo Fórum 21.
‘Cerca de 22 milhões de trabalhadores ascenderam socialmente, desde 2003,’ lembrou o economista que dirige a Fundação Perseu Abramo, ‘mas não houve mudança na taxa de sindicalização no país: de cada dez destes trabalhadores, só dois se filiaram a algum sindicato. O mesmo aconteceu com os estudantes beneficiados pelos programas do governo federal e com os beneficiários do Minha Casa, Minha Vida’, espeta Pochmann.
Os dois grandes instrumentos de dominação conservadora em qualquer tempo é a estrutura repressiva do Estado e a ideologia.
Marilena Chauí, que abrilhanta aulas públicas na contracorrente da rendição ideológica dos últimos anos, ensina que ‘a ideologia é o processo pelo qual as ideias da classe dominante se tornam ideias de todas as classes sociais (…) esse fenômeno’, prossegue Marilena, ‘de manutenção (adoção) das ideias dominantes mesmo quando se está lutando contra a classe dominante é o aspecto fundamental daquilo que Gramsci denomina de hegemonia, ou o poder espiritual da classe dominante’.
Por isso ele dizia –sublinha a professora– que, se num determinado momento, os trabalhadores de um país precisam lutar usando a bandeira do nacionalismo, a primeira coisa a fazer é redefinir toda a ideia de nação (…) e elaborar uma ideia do nacional que seja idêntica à de popular.
‘Precisam, portanto, contrapor, à ideia dominante de nação, uma outra, popular, que negue a primeira’, sintetiza Chauí.
Se quiser resistir à resiliência golpista, a Presidenta Dilma – com apoio das forças progressistas– terá que falar à Nação. Agora e com frequência crescente. E se desfazer em alguma medida, do redil de ideias e conceitos que faz seu governo agir – à beira do abismo– como protagonista passivo, e mesmo ativo, de um enredo que não é o seu. E que o impele ao buraco do qual precisa se afastar.
A ver.