Por Lia Bianchini, repórter especial do Cafezinho
É uma tarde como tantas outras na comunidade Nova Holanda, parte do Complexo da Maré, na Zona Norte do Rio de Janeiro. Uma moradora sai de casa com sua filha de dois anos, enquanto o marido trabalha. Porém, é dia de operação policial na comunidade: agentes do Bope quebram a porta da casa da moradora, mexem em tudo, bagunçam suas roupas, seus móveis. Nenhuma denúncia é feita. O medo da reação policial silencia qualquer ímpeto de coragem.
A cena acima foi relatada por uma moradora de Nova Holanda, que não quis ser identificada. Seu caso de violência policial não é o primeiro, muito menos o único. Segundo relatório divulgado pela Anistia Internacional, os abusos policiais extrapolam as invasões a casas, chegando a graves índices de homicídios.
Entre 2010 e 2013, 1.275 pessoas morreram vítimas de intervenção policial na cidade do Rio de Janeiro. Em um período de dez anos (2004-2014), foram registrados 8.466 casos de homicídio decorrente de intervenção policial no estado, sendo 5.132 casos na capital. Apenas no ano passado, os homicídios praticados por policiais em serviço corresponderam a 15,6% do número total de homicídios na cidade do Rio de Janeiro.
De acordo com dados do Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro, apenas neste ano, 410 mortes no estado foram em decorrência de intervenção policial. A maior parte delas, na Zona Norte da cidade.
Para Maycom Brum, morador do Complexo do Alemão há 27 anos, a população está sitiada pela polícia. “A situação é de estado de sítio, estamos sitiados dentro do nosso próprio território. Acredito que a polícia age diferente em vários lugares da cidade, mas é a mesma polícia em todos os lugares. O policial chega às favelas e periferias olhando para o jovem como um potencial criminoso, principalmente se ele for negro”, explica.
O depoimento de Maycom compactua com dados do relatório da Anistia Internacional sobre o perfil das vítimas de violência policial no Rio: 99,5% eram homens, quase 80% eram negras e 75% tinham idade entre 15 e 29 anos.
Das mortes apuradas pela Anistia Internacional, há casos em que as vítimas já estavam feridas ou rendidas quando foram baleadas intencionalmente pela polícia. Em outros casos, houve disparo com armas de fogo às vítimas sem nenhum aviso. O relatório aponta ainda o uso desnecessário ou excessivo da força policial, alteração da cena do crime e tentativa de criminalização da vítima como forma de forjar uma dinâmica de resistência.
“Nós temos medo de ir para mídia, de reclamar. Sabe por quê? Eles são covardes, tenho medo que eles voltem e façam pior. E eles não sofrem nada por isso, porque a gente não tem voz”, declarou a moradora da Nova Holanda que teve sua casa invadida por agentes do Bope.
Questionada sobre a letalidade da polícia, a Secretaria de Segurança do Estado do Rio de Janeiro rebate os dados do relatório da Anistia Internacional com uma declaração do secretário de segurança, José Mariano Beltrame. “Considero temerária e injusta a divulgação desse estudo de casos, num momento em que vemos os níveis de criminalidade caírem no Rio. Todos sabem que no Rio de Janeiro a diminuição da letalidade violenta é o principal fator para que um policial seja premiado no Sistema Integrado de Metas. E no caso específico do homicídio decorrente de intervenção policial, os resultados saltam aos olhos, principalmente nas áreas onde foram instaladas Unidades de Polícia Pacificadora. Houve 20 mortes decorrentes de intervenção policial em áreas de UPP em 2014, o que equivale a uma redução de 85% se comparado ao registrado em 2008 (136 vítimas). Sabemos que no Rio ainda há áreas com guerra, como mostra esse estudo de casos. Mas é inegável a melhora nos índices de criminalidade de 2007 para cá”, afirma o secretário.
Contrariando a declaração de Beltrame, o morador do Complexo do Alemão, Maycom Brum, explicita quais foram as mudanças sentidas após a implantação das Unidades de Polícia Pacificadora. “O que aumentou foi a violência psicológica. O policial fez de sua autoridade uma ditadura, fazendo com que os moradores sigam o que eles mandam. As mudanças que aconteceram nos últimos anos foram no sentido do abuso de autoridade, pois antes a polícia “fazia o seu papel” e saia, o que acontece hoje é a militarização do território”, diz Maycom.
Não há punição
O estudo da Anistia acompanhou 220 investigações sobre mortes causadas por policiais desde 2011. Naquele ano, em apenas um caso o policial chegou a ser formalmente acusado pela Justiça. De 2011 até abril de 2015, desses 220 casos, 183 investigações ainda não tinham sido concluídas. Geralmente, as investigações são prejudicadas pela remoção do corpo da vítima da cena do crime e pela inserção de falsas evidências, como armas, junto ao corpo.
“A crença de que vivemos uma ‘guerra às drogas’ e que matar ‘traficantes’ faz parte desse combate tem sido usada como justificativa para uma polícia que faz uso excessivo, desnecessário e arbitrário da força, agindo fora da lei. A falta de investigação dos casos de homicídios envolvendo policiais alimenta a impunidade e o ciclo de violência. O Estado, através das autoridades estaduais da segurança pública e do Comando Geral da Polícia Militar, e o Ministério Público, responsável pelo controle externo da atividade policial, não podem ser tolerantes com essa prática”, diz Atila Roque, diretor executivo da Anistia Internacional.
Um dos fatores que justificam a violência policial são os chamados “autos de resistência”, que são, em teoria, um instrumento jurídico para legitimar o uso da força pelos agentes do Estado em sua própria e legítima defesa, quando atacados injustamente. Porém, na prática, os autos de resistência são usados como desculpa para boa parte dos homicídios praticados por policiais.
Segundo relatório da organização não-governamental Human Rights, a quantidade de mortes registradas como autos de resistência no Rio de Janeiro passou de 416, em 2013, para 582 mortes em 2014, um avanço de 40%.
Para Maria Laura Canineu, diretora da Human Rights no Brasil, os autos de resistência escondem execuções por parte da polícia. “Nos últimos anos, nós documentamos muitas situações em que as mortes são verdadeiras execuções extrajudiciais, em que a polícia mata e obstrui a cena do crime, registrando essas mortes como resistências advindas de tiroteios, confrontos”, diz.
Como uma iniciativa para diminuir a violência policial, tramita no Congresso Nacional, desde 2014, o Projeto de Lei 4471/12, que visa estabelecer regras mais rígidas para a apuração de mortes e lesões corporais decorrentes de ações de agentes do Estado.
“As autoridades e a sociedade precisam entender que a repressão ao crime não é incompatível com a garantia dos direitos de todos à vida. Quando um agente do Estado mata, a sociedade precisa saber que o caso será devidamente investigado para que não haja dúvidas se aquilo se tratou de um evento legítimo ou se houve ilegalidade no uso da força letal. Sem essa garantia corremos o sério risco de ver a polícia atuando de maneira criminosa, o que é absolutamente inaceitável em uma democracia onde o estado de direito deve sempre prevalecer. Uma polícia que executa é incompatível com os princípios fundamentais dos direitos humanos e do estado de direito”, conclui Atila Roque.
Medidas para diminuir a letalidade policial
O relatório da Anistia Internacional faz uma lista de 20 recomendações, endereçadas ao Governo Estadual, ao Ministério Público, ao Governo Federal e ao Congresso Nacional. Entre elas, estão:
– Garantir que seja feita uma investigação completa, independente e imparcial de todos os casos de homicídio decorrente de intervenção policial no Rio de Janeiro.
– Fortalecer o Programa de Proteção a Testemunhas e Vítimas Ameaçadas (PROVITA) e o Programa de Proteção a Defensores de Direitos Humanos no estado.
– Oferecer apoio psicossocial a todas as vítimas e familiares de vítimas de violência policial e garantir o direito a uma justa reparação que inclua indenização adequada.
– Formar uma força-tarefa no Ministério Público que dê prioridade aos homicídios decorrentes de intervenção policial para concluir prontamente as investigações que ainda se encontram em andamento e levar os casos à Justiça.
– Implementar um programa nacional voltado à redução dos índices de homicídios, que inclua metas nacionais e estaduais para a diminuição do número de mortes decorrentes de intervenção policial.
– Aprovar o Projeto de Lei 4471/2012.
– Incorporar na Lei os princípios e os parâmetros internacionais sobre o uso da força, em particular os previstos no “Código de Conduta da ONU para os Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei” e nos “Princípios Básicos da ONU sobre o Uso da Força e de Armas de Fogo por Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei”.