Por Lia Bianchini, repórter especial do Cafezinho
Final de semana, uma boa forma de lazer é ir assistir a um filme no cinema. Na esquina de casa, dificilmente você encontrará uma sala. É mais fácil procurar em um shopping. Em cartaz, provavelmente, alguma superprodução norte-americana e uma comédia brasileira, nada de muito atraente. Mais fácil, então, é ficar em casa e escolher o filme perfeito para o dia no serviço de streaming ou baixá-lo em um site qualquer.
As formas de consumir filmes vêm sofrendo mudanças drásticas, que afetam, principalmente, os exibidores tradicionais. Para falar sobre o mercado de cinema nos dias atuais, o Cafezinho conversou com Marcelo França Mendes, presidente do grupo Estação.
Confira a entrevista:
O Cafezinho: Como você analisa o cenário dos cinemas de rua no Rio de Janeiro atualmente?
Marcelo França Mendes: Já foi muito pior, já esteve melhor, recentemente, e agora está complicado de novo. O pior é que, na realidade, isso tudo é devido à sensação de insegurança que as pessoas estão tendo, porque não era mais inseguro há um tempo atrás, só que saia menos no jornal. Os jornais manipulam muito isso, de acordo com interesses próprios. Claro que teve uma época em que o Rio foi mais complicado, mas depois melhorou.
Nós percebemos isso pelas últimas sessões do dia. Quando começam a dar muito pouco público, nós notamos que o público está com medo de sair à noite. E isso voltou a acontecer há um ano, antes não estava assim. O nosso público é muito sensível, porque tem um contingente grande de pessoas idosas. O público jovem é mais destemido, é quem sai à noite, vai ao bar. A pessoa da faixa etária de 50 anos já chega em casa cansada, liga o Netflix e vê aquelas séries todas.
Mas eu diria que o grande problema de um cinema como o Estação, hoje, não é falta de filme, não é segurança, não é nada disso. É justamente a concorrência com Netflix, Pirate Bay. O Netflix, por exemplo, tem um sistema que é barato e com conteúdo atrativo, que vicia. Esse é o nosso principal problema. Nós recebemos muita reclamação sobre o preço do ingresso, comparando à mensalidade do Netflix. Mas poucas pessoas pagam inteira no cinema. Nós temos 81% de vendas de meia entrada, de estudante e idoso. A lei exige a meia entrada, então, você tem que colocar a inteira a um preço alto para que a meia faça sentido financeiramente para os custos de um cinema. O Estação Gávea, por exemplo, que tem R$ 32 a inteira, o preço médio pago pelo público é R$ 17.
O Cafezinho: Nessa questão de Netflix e a competição com cinemas, você acha que existe também uma questão cultural brasileira, de pouco investimento em cinema?
M: O Netflix retém a pessoa em casa, mas com um conteúdo diferente desses tipos de filmes que nós exibimos no Estação. O que compete em questão de conteúdo com o filme que eu exibo é o Pirate Bay, que é pior ainda, porque é de graça mesmo. Então, se um cinéfilo ouve falar do novo filme de um diretor quase desconhecido, ele vai atrás. E esses filmes de circuito muito pequeno têm um público também pequeno no Brasil. Se boa parte desse público vê o filme na internet, antes mesmo do lançamento, pouquíssimas pessoas vão ver no cinema.
O mais grave disso, em minha opinião, é que muita gente se contenta em ver esses filmes no computador. E isso forma um hábito. Se você é acostumado a ver filmes na tela pequena do computador, quando entra em uma sala de cinema para ver um Bergman ou um Tarkovski, você sai no meio da sessão. Se você entrar para ver qualquer filme que precisa de uma atenção total, de calma, você não aguenta. Eu dei aula na PUC e notava isso com estudantes de cinema mesmo. O pessoal gostava de Almodóvar, Tarantino, coisas que dá pra ver em galera. São ótimos, não estou falando mal, mas são títulos que você pode ver comentando. O Tarantino é um artesão visual, mas o filme dele dá para assistir em grupo, levantando para beber água. Outros tipos de filme não, porque investem nessa relação com o espectador, é preciso atenção total à tela. Então, ver em casa já não é a mesma coisa que ver no cinema. Ver em casa, no computador e dando pause, vendo o que está no e-mail, Facebook, Twitter, não tem como, é completamente diferente.
O Cafezinho: É mais uma questão da geração que a gente vive mesmo, então?
M: É… Hoje você tem a famosa geração duas telas. Eu diria que são três: o celular, o tablet, a televisão. Sem contar a tela real, das relações pessoais. Então, é muito difícil. As pessoas estão com pouca atenção. Tanto que hoje quem tem disposição para ler uma revista como a Piauí, por exemplo, de cabo a rabo, é raro. O que as pessoas fazem, normalmente, é deixar em casa e ler ao longo do mês. É uma revista, não um livro. As pessoas estão “lendo” livros de colorir, estão endeusando, no cinema, filmes de super-heróis. Ou seja, na realidade, existe uma infantilização gigante do consumidor de cultura. As pessoas só querem saber de coisas passageiras, não têm interesse por conteúdo mesmo. E, assim, não sei até que ponto é culpa do jovem, porque os mais velhos também estão assim. Os mais novos já nasceram com computador na cabeça, os mais velhos estão correndo atrás. Mas, enfim, é uma época diferente. Quando o Estação abriu, tinha a ditadura militar e nós tínhamos que aprovar a programação por causa da censura. Eu comecei o cineclube em 1982, Sarney na presidência, inflação grande, eram outros problemas. Cada época tem seu problema. E o cinema vem sendo atacado desde os anos 1950. Começou com a televisão e depois não parou mais de ser atacado.
O que eu acho que está acontecendo é uma mudança no modelo de negócio. O cinema tem o mesmo princípio de cem anos atrás: uma distribuidora que oferece o filme para o cinema e recebe um percentual da bilheteria desse filme. Agora, quando você vê um modelo de negócio como o Netflix, vendendo a um preço fixo, em que a pessoa paga um preço fixo e não importa o quanto veja, você nota que tem uma coisa anacrônica nessa relação.
Quando você olha para um filme, por exemplo, do Woody Allen, que cobra 50% da bilheteria, mas se você entrar no Pirate Bay consegue de graça. Ao passo em que o Cinemark cobra R$ 70 para passar a final de Wimbledon, que não está no Pirate Bay, porque é ao vivo. Então, é como se a distribuidora e o filme fossem um cachorro que está comendo a própria pata para sair de uma armadilha. Eu acho que está num limiar de ter uma mudança muito radical nesse modelo de negócio de cinema, que eu não sei para onde vai. Mas como está é anacrônico.
O Cafezinho: Recentemente, o ministro das comunicações, Ricardo Berzoini, defendeu a regulamentação do Netflix. Você concorda com isso?
M: O problema é que quando regulamentam, eles pensam sempre no blockbuster. Por exemplo, para colocar um filme na televisão, você tem que pagar R$ 3 mil. Um filme do tipo do Estação, a televisão se quer paga R$ 3 mil. Então, você não vende, porque vai pagar um imposto mais caro do que o preço pelo qual você consegue vender. Então, quando se fala em regulamentar, eu me arrepio todo, porque vai regulamentar pensando no “Homem de Ferro”, por exemplo. E aí o filme da Tunísia, que nós gostamos de trazer, não vai ter equação matemática que dê para ser colocado ali. Nós temos lançado em VOD também, justamente nesse buraco da legislação que querem arrumar. E os filmes não rendem tanto. Então, vai ter um problema.
Tomando outra regulamentação como exemplo: a Ancine criou um sistema para digitalizar os cinemas. Abriu consulta pública e só duas empresas mandaram sugestões para essa consulta: nós, porque temos cinema digital desde 2002, e um outro grupo. Nunca me chamaram, apesar das 12 páginas que eu escrevi para falar sobre o tema. Aí fizeram um sistema que só funciona para o blockbuster. Porque dentro da lógica é o seguinte: a distribuidora fazia mil cópias para um filme, entrava em mil cinemas, na segunda semana já tinha cópia que ia para o lixo, porque não vai exibir para 1001 cinemas, é de mil para baixo. Então, se a distribuidora está economizando na cópia, pode ajudar o cinema a pagar o projetor digital. Ao invés de gastar R$ 4 mil em uma cópia 35mm, vai gastar R$ 2 mil ajudando o cinema a pagar o projetor digital. É lindo, só que o nosso tipo de filme não sai de 100 pra 90. Eu saio de três cópias para três sempre. A lógica é diferente. O lançamento do blockbuster é uma pirâmide ao contrário: na primeira semana está cheio e vai diminuindo com o passar das semanas até não restar nada. Então, as cópias são descartáveis, vale a pena esse esquema. Já o lançamento dos filmes do Estação é retangular: fica o tempo todo com as mesmas cópias, não diminui. Essa cópia vale muito mais do que a cópia descartável do “Homem de Ferro”. Então, não pode ser trabalhada da mesma maneira. Aí o que acontece: para os cinemas comerciais, esse modelo vai pagar 80% do projetor. Nós não vamos receber nada (ou muito pouco), porque nós não trabalhamos dessa maneira. Eu não vou ter VPF (Virtual Print Fee) suficiente para pagar projetor. Daqui a x meses, quando eu tiver que pagar, vou ter que pagar inteiro. Cada projetor custa US$ 150 mil. Se o Estação não pode pagar, quantos cinemas no Brasil não vão poder pagar? Eu escrevi para Ancine dizendo que vai ter problema, daqui a um ano e meio, de 500 salas fecharam. Eles vão ter que fazer alguma coisa, se não vão acabar com um quarto do mercado de um dia para o outro.
O Cafezinho: Falando sobre a produção do cinema brasileiro: percebe-se que há o investimento em uma fórmula muito batida, que é geralmente comédia. Você acha que as produtoras brasileiras estão mais focadas no mercado do que na arte?
M: Eu não diria exatamente as produtoras. É o conjunto de financiamento dos filmes, ou seja: a produtora acha que comédia dá dinheiro, os patrocinadores acham que comédia dá dinheiro, a Ancine acha que comédia dá dinheiro. Se um entre todos esses discorda, acaba sendo voto vencido. A maluquice é que comédia é uma coisa difícil de fazer e está sendo feita de uma forma sempre igual, é uma fórmula repetida. Várias são até comédias românticas copiadas descaradamente, com cenas iguais a de outros filmes famosos. E as pessoas percebem isso. Divertem-se um pouco, mas sabem que daqui a pouco o filme vai estar na televisão, e isso é um outro fator, porque perde o ineditismo, a urgência, as pessoas já não querem mais ir ao cinema assistir a esse tipo de filme. O grande problema é que se investiu em um único e determinado tipo de filme. Se você considerar o gênero policial, tivemos Tropa de Elite 1 e 2 que foram sucessos estrondosos; Assalto ao Banco Central, que, a despeito das qualidades do filme, também fez dois milhões e pouco de espectadores. Há bons exemplos de filmes policiais, por que parou de se fazer?
Vou dar um exemplo: eu tenho uma empresa de venda de direitos de livros para o cinema, que não tem nada a ver com o Estação. Nós queríamos vender o livro da Julita Lemgruber, que foi diretora dos presídios no governo Brizola e tentou reformular os presídios. Era a biografia dela. Eu pensei: isso aqui é um novo Tropa de Elite, porque fala de Brizola, bicheiros, Aniz Abraão David, e ainda por cima com uma mulher forte protagonista. Pensei que fossemos vender fácil. O argumento que eu ouvi foi: “já tem Tropa, já estamos cansados disso”. Mas o Tropa fez 12 milhões de espectadores, se você fizer 20% disso, já está rico. O problema é o seguinte: no Brasil, a única produção que virou indústria foi a comédia. Todas os outros gêneros não são indústria, são como manufaturados. Um filme como “Que Horas Ela Volta?” não saiu de uma indústria, saiu de um talento. Mas se houvesse uma indústria, mais talentos apareceriam.
Então, hoje há uma crise grande do cinema comercial. Até pegando o exemplo da comédia mesmo: um filme fez dois milhões de espectadores, mas vai ver com quantas cópias ele entrou. Antigamente, faziam-se dois milhões de espectadores com 150 cópias. “Se eu fosse você” estreou com 170 cópias e fez cinco milhões de espectadores. Hoje, os filmes estão estreando com 400 cópias e fazem dois milhões. O que quer dizer que estão fazendo mais investimentos para ter o mesmo rendimento e os cinemas estão ganhando menos. Porque antes você dividia o público por 150 cinemas, agora divide por 400. Então, obviamente, o Cinemark em Botafogo vai ganhar porque é forte, mas se eu botasse aqui, eu não ganharia. Então, os cinemas mais fracos, próximos a grandes, sofrem e aí não conseguem pagar conta de tela e a Ancine multa. Eu falo muito mal da Ancine, às vezes, mas é a questão da visão que eles têm sobre o cinema. Por exemplo, nessa questão do VPF: eles fizeram uma decisão que beneficia 97% do mercado. Não pode reclamar por pensarem em 97% do mercado. O problema é que esses 3% de fora somos nós, que representamos quase que 100% da exibição de muito filme brasileiro e estrangeiro. Se esses 3% também representassem uma fatia do todo…
O Cafezinho: E como você enxerga o mercado para os filmes brasileiros de circuito pequeno?
M: Hoje em dia já não existe mais empresa grande por trás dos filmes. Semana passada, lançamos o “Cine Drive-in”, que é da Vitrine, uma distribuidora pequena, e lançamos também o documentário “Cativas”, da Moro Filmes. Ninguém foi ver o “Cine drive-in”, mas o “Cativas” deu um público razoável. Ou seja, como pode um filme de ficção ter um público menor que um documentário sobre esposas de presidiários? É trabalho da distribuidora, que conseguiu achar um nicho.
Porque, antes, existia uma coisa assim: bastava fazer a cabine de imprensa, o filme sair no bonequinho do O Globo, que funcionava. Hoje, o jornal impresso não tem o mesmo peso de antes. Hoje você pode ter meia página no O Globo e não significa que o filme será sucesso. Nos anos 1980, quando o Estação abriu, uma foto no Jornal do Brasil era sessão lotada, não precisava nem de legenda. Se tivesse legenda, eram dois dias lotados. Tem outra questão atualmente, também, que é a seletividade da rede na internet, o acesso à informação está afunilando cada vez mais, você só é informado daquilo que procura saber, digita no Google. Numa situação dessa, você literalmente não sabe onde promover um filme. Porque as pessoas não leem jornais e têm informações filtradas na internet.
O “Hannah Arendt”, por exemplo, que nós exibimos, foi um sucesso estrondoso porque saiu do meio cultural. Foi na época das manifestações de 2013, então teve um articulista político que conectou a banalidade do mal à reação da polícia e não teve quem não comentasse isso. Fizemos 140 mil espectadores, quando o normal de um filme como esse é fazer 20 mil, para você ter uma ideia. Isso só porque ele saiu do âmbito cultural, então, muita gente, como advogados, políticos, que talvez nem leiam o segundo caderno, se interessaram e foram ver. E aí tem um ganho de público fora do normal recorrente, é um público extraordinário, que vai pontualmente com determinado interesse.
O Cafezinho: O caminho, então, é investir em novas formas de divulgação?
M: É. Nós fizemos uma revista, a Tabu, que o princípio era justamente esse: não ser uma revista de cinema falando para cinéfilos. A ideia era: se tínhamos um filme, por exemplo, que falava sobre uma pianista, então chamávamos uma pianista profissional para escrever um texto inspirado no filme. Porque, assim, o público cinéfilo, em primeiro lugar, abandonou o cinema e passou a ver tudo no computador. Então, não adianta ficar falando para o mesmo público, nós temos que começar a falar para um público que não nos conhece ou que conhece superficialmente.
O Cafezinho: E qual é o futuro do cinema, considerando todas essas novas formas de assistir a um filme?
M: Eu acho que temos que pensar em futuro dos cinemas, no plural. Tem um tipo de cinema que vai continuar existindo, que é o cinema do parque de diversões, o cinema 3D, 4D, 6D, o dos super-heróis. Esses filmes vão continuar sempre existindo, porque são protegidos por um sistema que não permite que eles cheguem à pirataria antes de entrar no cinema. O cinéfilo desse tipo de filme vai assistir à estreia no cinema. Então, esses filmes estão protegidos.
Para você ter uma ideia, quando mudaram a data de estreias (que passou a ser na quinta) nós vimos que isso não funcionaria para o Estação e passamos a estrear às sextas mesmo, você não tem ideia do nível de pressão que nós sofremos para ficar igual a todo mundo. Pressão dos jornais, porque teria que ter duas equipes, e das distribuidoras, porque elas precisavam fazer relatório e não estrear na quinta influenciava nisso. Essa semana mesmo, eu estava discutindo sobre o próximo filme do Jonathan Demme (que acho que só estreia no Estação, aqui no Rio) e me disseram que se eu não entrasse na quinta, eu não exibiria o filme. Eu falei que, então, não iria exibir. No fim, conseguimos entrar em um acordo, mas é uma burocracia muito grande e inútil. As distribuidoras estrangeiras exercem um poder muito grande e dão muito pouca autonomia aos cinemas. Elas têm uns dogmas que engessam as exibições. E, nisso, quem perde são os cinemas menores.