A liberdade que nos concedem os deuses

Análise Diária de Conjuntura – Quinta-Feira 27/08/2015

Vamos começar hoje nossa abordagem sobre as conspirações políticas que nos afligem a partir de um outro ponto de vista. Façamos uma viagenzinha até o outro lado do mundo, até a China, daí viremos avançando até nossas praias. Queria ser mais breve e cumprir minha promessa de impor um limite de três mil caracteres a esta análise diária, mas fica para outra vez.

Mudemos também a abordagem de nossos problemas domésticos. Em nome de nossa saúde mental, sejamos menos Fernando Pessoa e mais Ricardo Reis.

Explico: Ricardo Reis, um dos heterônimos de Fernando Pessoa, oferecia, em seus versos, uma visão estóica e tranquila da vida, enquanto os versos de Pessoa recendiam a esse desespero tão típico da nossa cultura ocidental cristã.

Depois de ler os jornais e os blogs brasileiros, fui dar uma espiada na imprensa internacional. Optei hoje pelo The Guardian, que é, dizem, o site jornalístico mais visitado no mundo. É também considerado um jornal de centro-esquerda, embora, evidentemente, as controvérsias quanto a isso sejam imensas.

É um mundo engraçado esse em que vivemos. Quanto mais dinheiro ganham os muito ricos (e eles são proprietários até mesmo de jornais progressistas, como The Guardian) mais pessimistas se tornam seus jornais.

Li uma reportagem sobre a China, escrita por um britânico de cabeça comprida, que viajou à cidade de Nanqijia, situada na periferia de Pequim.

É uma reportagem bem escrita e elegante, como todas do exigente The Guardian, e segue os parâmetros do jornalismo clássico ocidental, inclusive – e é disso que quero falar – com seus vícios.

O jornalismo tornou-se a mais poderosa arma de manipulação jamais inventada pelo homem.

Philips nos fornece relatos reais, de trabalhadores abandonando a periferia industrial das grandes cidades, retornando à China profunda; entrevista meia dúzia de especialistas; e pronto. A China nos é apresentada imersa num doloroso processo de declínio econômico, que determinará, fatalmente, um processo de desestabilização política.

Então eu passei para os comentários dos leitores, e dois me tocaram por sua objetividade. O primeiro lembra que, em toda a crise, a população mais vulnerável é a primeira a sentir seus efeitos, visto que tolas rivalidades, corrupção, esnobismo serão encontrados em qualquer interação humana, na sociedade e no mercado de trabalho.  O segundo é uma frase seca e verdadeira: “Anedotas não dão, necessariamente, credibilidade a um artigo sobre economia”.

De fato, se análises de jornal fossem reconhecidas por sua eficácia deveriam beneficiar os próprios jornais, e estes não seriam empresas eternamente à beira da falência, como são hoje.

Em Numero Zero, último romance de Umberto Eco, um dos personagens nos ensina como um jornal faz para enfiar sua opinião numa reportagem e ao mesmo tempo parecer isento ao leitor. Basta entrevistar pessoas com perspectivas diferentes sobre um determinado assunto, mas escolher uma fonte fraca, mal embasada, para a perspectiva com a qual você não concorda, e uma fonte boa, com opiniões ancoradas em argumentos sólidos, bem estruturados, para a perspectiva que você quer fazer prevalecer.

As técnicas de manipulação da imprensa ocidental se tornaram extremamente sofisticadas, o que me faz lembrar um trecho do clássico de Oswald Spengler, O Declínio do Ocidente, que eu já citei várias vezes neste Cafezinho e em meu antigo blog.

Spengler não partilha do entusiasmo de sua época pelo surgimento da imprensa, que ele logo enxerga como uma ferramenta de controle das massas infinitamente mais eficaz que a violência. Antes da imprensa, escreve Spengler, os reis tinham enorme dificuldade para convencer seus súditos a aderir às suas guerras: era preciso ameaçá-los, com prisão, com violência, com multas. Após a popularização da imprensa, bastaria plantar alguns editoriais nos jornais mais importantes e a maioria da população decidiria, por conta própria, engajar-se em guerras que interessavam somente às elites, e se dirigiria alegre e voluntariamente em direção a seu próprio abismo.

A opinião de Spengler foi confirmada pela eclosão das grandes guerras mundiais. Recentemente, vimos a mesma coisa acontecer antes da guerra no Iraque. O New York Times, um jornal considerado progressista, no contexto norte-americano, tem o costume de, regularmente, vender o seu prestígio para as causas imperialistas e desonestas da Casa Branca. Foi o que fez ao abraçar as mentiras do Pentágono sobre a existência de armas de destruição em massa no Iraque. Resultado: mais de um milhão de mortos, um oriente médio profundamente desestabilizado e a criação do maior foco de terrorismo e fundamentalismo religioso jamais visto na história: o Estado Islâmico.

Se você ler com atenção a grande imprensa norte-americana e europeia, parece que os jornais pertencem todos ao mesmo dono. Há uma verdade única, que não se sabe exatamente onde nasce, mas que, uma vez exposta, todos seguem fielmente. E todos se copiam da maneira descarada. O Globo repete o NY Times, e o NY Times copia o Globo. O The Guardian copia o Le Monde, e o Le Monde copia o Clarín. Os lugares comuns, os clichês, a maneira superficial, hipócrita, leviana com que a imprensa ocidental trata as diferentes situações políticas, poderiam nos fazer acreditar em teorias de conspiração, se não tivéssemos lido os livros de Noam Chomsky. Chomsky explica com uma racionalidade acuradíssima como os grandes movimentos do capital tendem a unificar as narrativas políticas em toda a parte.

Um exemplo: um internauta, um troll, dos tantos que vem invadindo o blog, para angústia dos comentaristas sérios, posta uma foto de um venezuelano escondendo produtos alimentícios por baixo da camisa, como um traficante de drogas, para os vender no mercado negro local. E conclui daí que a Venezuela é uma ditadura horripilante.

É incrível até que ponto pode chegar a imbecilidade do senso comum: como se, no Brasil, não houvesse contrabando e pirataria, com guardas municipais promovendo, periodicamente, verdadeiras batalhas campais, algumas violentas, contra vendedores ambulantes. Como se EUA e Europa não promovessem, em suas respectivas fronteiras, uma guerra sem tréguas contra todo o tipo de tráfico.

No Le Monde, jornal francês supostamente de esquerda, leio um artigo em que se repete um festival de clichês para se criticar as estratégias do governo Maduro para combater a entrada das Farcs em suas fronteiras!

É só clichê, clichê, clichê, em toda a parte!

É muito difícil para um cidadão, hoje, se manter bem informado, e isso explica também porque, frequentemente, aqueles que se crêem melhor informados, porque tem acesso à grande imprensa doméstica e internacional, são os mais manipulados.

Chegamos às nossas castigadas praias. As arremetidas golpistas ganham sobrevida com a decisão do TSE de reabrir uma investigação que já havia concluído no início do ano.

O mês de agosto, que achávamos encerrado com os posicionamentos do poder econômico contra o impeachment, promete se estender por mais algumas semanas, estressando a economia.

O presidente do Tribunal de Contas da União (TCU), Augusto Nardes, deita falação fora dos autos, pré-julgando antes mesmo do governo apresentar sua defesa, numa demonstração de que o Judiciário (na prática, o TCU opera como um órgão do judiciário) saiu completamente de controle, praticando um partidarismo completamente ilegal. A agressividade de Gilmar Mendes virou moda, Nardes apenas a repete, para alegria da imprensa de oposição.

A imprensa, por sua vez, não resiste à sua tradição e começa a romper com suas próprias diretrizes, traçadas há algumas semanas, de abandonar o golpe, e voltou a martelar os temas do impeachment e cassação do mandato eleitoral de Dilma.

A reportagem do Globo, por exemplo, sobre a “Doméstica que recebeu R$ 1,6 milhão“, da campanha de Dilma, manipula a informação de que a empresa que forneceu o serviço pertencia à patroa da empregada. O erro é dela, da patroa, não da campanha da Dilma. Uma campanha presidencial contrata milhares de CNPJs, é óbvio que se pode haver alguma irregularidade em alguma dessas empresas, mas se deve ter o bom senso de não usar isso para ameaçar a soberania do voto num país com 203 milhões de habitantes. Qual o interesse da campanha de Dilma nisso? A troco de que a campanha contrataria o CNPJ da empregada ao invés de contratar o CNPJ de sua patroa?

Gilmar Mendes é o patrocinador dessas patranhas, e a forma como elas serão tratadas pelo TSE e pela mídia é que configurará um golpe, em que se torce um fato até que ele grite em favor de uma determinada tese.

A manipulação e agressividade da mídia voltaram a crescer. A imprensa de oposição nunca esteve em posição tão confortável como agora.

O governo, por sua vez, paga pelo erro de ter ganho as eleições e desmontado imediatamente os seus instrumentos de comunicação com o povo.

Não foi por falta de aviso. Todo mundo alertou para o perigo de cortar, abruptamente, a comunicação política criada, à duras penas, durante o processo eleitoral. Durante a campanha, a visibilidade da presidenta e a comunicação ativa fez a aprovação do governo voltar a níveis bastante altos.  Em São Paulo, em Recife, Dilma foi recebida com gritos de “Eu te amo” por milhares de pessoas.  O governo não usou esses vídeos. Não quis usar essa mística para fortalecer a imagem da presidenta. Aliás, já na campanha, notava-se a arrogância da comunicação oficial, visto que os melhores atos em prol da presidenta praticamente não contaram com a cobertura da campanha, como foram os citados acima e a grande manifestação da Cinelândia.

O único canal direto da presidenta com a população, o Café com a Presidenta, foi desmantelado há mais de um ano. Nada foi criado para suprir o vácuo.

E agora, com a crise política, o governo, acuado, tenta dar uma guinada à direita com vistas a acalmar a oposição, mas não acalma e perde a sua base, cada vez mais cansada, irritada e desgastada.

Dilma fez bem em dar entrevista à Folha, à Globo e ao Estadão. O erro não é esse. Quanto mais entrevista, melhor. O erro é só dar entrevista para a mídia de oposição, desprestigiando a imprensa que tenta lhe dar algum suporte, como Carta Capital, Caros Amigos, Revista Forum, Brasil de Fato, blogs, etc.

É incrível que, até hoje, Dilma jamais tenha dado uma entrevista ao Brasil de Fato, e prefira dar entrevista às três horas da manhã para Jô Soares.

O governo jamais organizou entrevistas com pool de pequenas rádios e jornais de interior. Jamais teve uma política progressista voltada para rádios comunitárias, que foram, ao contrário, combatidas implacavelmente nas eras Lula e Dilma.

No front econômico, o apocalipse foi adiado.

A bolsa brasileira experimentou ontem o seu melhor dia do ano. Hoje talvez volte a ser um dia bom para o mercado brasileiro, visto que as bolsas asiáticas apresentaram uma boa performance. O preço do barril tipo Brent também voltou a subir: está em US$ 44,69 na bolsa de Londres.

Para concluir o post, um poema de Ricardo Reis, com seu estoicismo antigo, que marca a nova linha editorial do blog:

“Só esta liberdade nos concedem
Os deuses: submetermo-nos
Ao seu domínio por vontade nossa.
Mais vale assim fazermos
Porque só na ilusão da liberdade
A liberdade existe.
Nem outro jeito os deuses, sobre quem
O eterno fado pesa,
Usam para seu calmo e possuído
Convencimento antigo
De que é divina e livre a sua vida.

Nós, imitando os deuses,
Tão pouco livres como eles no Olimpo,
Como quem pela areia
Ergue castelos para encher os olhos,
Ergamos nossa vida
E os deuses saberão agradecer-nos
O sermos tão como eles.”

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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