Em post publicado no Tijolaço, o internauta André Araújo menciona Alexis de Tocqueville, que, além de autor do clássico Democracia na América, também foi um genial intérprete das crises políticas que assolaram a França durante mais de 50 anos, a partir da revolução de 1789.
Em “Souvenirs”, Tocqueville discorre especificamente sobre a grande crise política que vai de 1830 até 1848, quando uma nova revolução acontece, a monarquia cai pela segunda e última vez, e se instaura a segunda república.
A entrevista do presidente do Itaú, Roberto Setúbal, à Folha, me fez lembrar esse livro, porque a técnica do autor francês é de ilustrar, em grandes linhas, os movimentos das novas classes sociais que emergem após a revolução.
É uma técnica da qual precisamos hoje.
Também vivemos, como a França após a revolução, um momento de reação conservadora. Assim como na França, o país será salvo, porém, por seus elementos mais prudentes, mais racionais, mais moderados, conscientes de que nenhuma reação poderá pôr de lado as conquistas sociais já alcançadas.
Hoje, por exemplo, testemunhamos uma situação curiosa. As elites brasileiras estão se insurgindo contra a postura carbonária do PSDB e de setores da classe média.
Fiesp, Firjan, CNI, CNA, CNT, e agora o presidente do Itaú, maior banco privado nacional, fincam pé em busca de uma solução para a crise política que não passe por um golpe, mesmo que o golpe venha com um disfarce “institucional” (leia-se impeachment). Um disfarce com o qual se procura vestir, aliás, todos os golpes.
O poder emana do povo, ou seja, do sufrágio universal.
As elites se posicionam contra o impeachment não por amor ao PT, naturalmente, mas porque temem um golpe de consequências imprevisíveis.
Pode vir um aventureiro de direita ou pode vir um governo radicalizado à esquerda. Quem pode prever?
Muitos autores clássicos das ciências políticas, como o próprio Tocqueville e, mais tarde, Max Weber, mencionam esse fenômeno constante nas repúblicas ou monarquias constitucionais nas quais ainda não existe uma cultura democrática madura: o Estado passa a ser dominado não mais por um soberano absoluto, também não por representantes do povo vistos com desconfiança. O poder é cada vez mais transferido para uma classe de altos servidores públicos, com os quais se identificam as camadas médias de sociedades ainda muito desiguais.
O assunto mereceria estudos sociopolíticos urgentes. Quem são os novos herois da nossa classe média?
São os políticos, envolvidos numa situação de concorrência eleitoral que os levam, forçosamente, se envolver com grandes quantidades de dinheiro, e ao mesmo tempo a cultivar uma sintaxe popular?
Ou são os altos servidores públicos, que ganham salários muito acima da média, além de uma quantidade tão incrível de adicionais que se transformaram, de fato, numa elite econômica?
Quem transmite mais confiança à classe média brasileira: o político ou o juiz?
Há tempos percebíamos esse fenômenos se avolumando. O PT crescia com o voto popular, de um lado, e com o apoio dos grandes grupos econômicos, de outro. Isso criava uma situação que fez o PT negligenciar a construção de uma teoria política voltada especificamente para a classe média. Mas essas coisas são difíceis. Partidos políticos se comportam por instinto. Sobretudo o PT, partido sem tradição de formação de quadros. E que se acostumou mal ao fenômeno Lula, um homem do povo que soube construir, empiricamente, uma teoria política originalíssima. A genialidade do Lula fez o PT esquecer a necessidade de produzir uma densidade crítica fundamental para sustar os inevitáveis movimentos de sedução e corrupção, que o capital faria, fatalmente, em sua direção.
Daí que temos o PT fazendo um discurso social para sua base, e implementando políticas sociais de impacto profundo junto às camadas baixas, e ao mesmo tempo firmando aliança com os setores que ele entendia serem os mais progressistas (embora mais corruptos) das elites econômicas: os empreiteiros e a mídia.
Durante a gestão Lula, a classe média, ainda traumatizada pela truculência dos governos neoliberais, ainda se mantinha fiel ao projeto petista, embora já torcendo o nariz para essa prioridade dúbia de Lula: mais política social para os mais pobres, mais lucro para bancos, fazendeiros, mídia e empresas da construção civil.
Era o momento do crescimento econômico, quando todos ganham.
Na era Dilma, acabou-se o carnaval. As dificuldades econômicas rasgaram a fantasia de um país de todos.
As profundas desigualdades econômicas só poderão ser superadas se as elites aceitarem perder um pouco. E as classes médias, que são muitas, e inimigas entre si, passaram a brigar por espaço.
Então o apoio da classe média ao PT começou a ruir rapidamente, explodindo a partir de 2013. E agora com uma fragilidade ainda mais grave: o apoio declinante dos mais pobres, em função do desgaste natural do poder, de um lado, e pela completa ausência de uma política de comunicação.
O povo precisa de comunicação. Não produzir uma política de comunicação original, que pudesse romper a censura privada de meios de comunicação não comprometidos com o interesse nacional, foi uma agressão que os governos do PT fizeram ao povo brasileiro. O preço político que o PT – e com ele, todo o campo popular progressista – paga por isso é altíssimo, mas era previsível.
Sem apoio na classe média, sem apoio popular, Dilma está sendo salva pela prudência das elites brasileiras, como mostra a entrevista com o presidente do Itaú.
Claro que as elites estão cobrando e irão cobrar um preço altíssimo por este apoio.
Mas não só elas.
É o tempo das grandes chantagens em detrimento do povo.
As altas classes médias, incrustadas nas carreiras de Estado, também se aproveitam da fragilidade do poder político, e usam de todo o tipo de chantagem para consolidarem seus ganhos.
Crise econômica, ajuste fiscal, queda de arrecadação? Nada disso importa para juízes que ganham, como Sergio Moro, quase R$ 80 mil por mês.
Temos o Judiciário e o Ministério Público mais caro e mais bem pago do mundo, e eles ainda querem mais. E se o poder político não ceder, eles brandem terríveis ameaças: mandaremos prender todo mundo!
Juízes, promotores, delegados federais, altos servidores das carreiras “estáveis” do Estado, passaram a se ver, desde algum tempo, como uma só classe.
Diante do estreitíssimo topo da elite econômica, é capaz desses servidores se verem como parte do “povo”.
No caso do Brasil, isso está cada vez mais claro. Os estamentos incrustados no Ministério Público e no Judiciário parecem ter desenvolvido uma mentalidade quase messiânica em relação ao poder. Como os pobres ainda não tiveram tempo de “invadir”, como fizeram com os aeroportos, esses últimos bastiões da burguesia tradicional, esses estamentos parecem ser unir numa dura reação aos movimentos de transformação que o país tem vivido.
A instauração de severos concursos públicos, um processo ainda profundamente elitizado, ao invés de ter democratizado o acesso a esses cargos, conferiu a seus ocupantes um sentimento de superioridade cultural que os fazem se comportar como verdadeiros mandarins da república.
Interessante observar que, entre as reações da elite em prol da estabilidade e contra o impeachment, todos defendem ainda mais transferência de poder para as instâncias repressivas.
O endeusamento de um juiz, a onipresença dos procuradores, em entrevistas infinitas, na mídia, mostra que este é o principal movimento por trás do que chamamos “golpe”.
Num país em crise política e já sofrendo abalos econômicos em decorrência dela, os estamentos que gozam de mais estabilidade, livre das amarras instáveis do sufrágio popular, ganham cada vez mais poder político e econômico.
A Polícia Federal, por sua vez, desligou-se do Executivo e tornou-se uma instância sob controle do Judiciário. Isso é muito mais terrível, muito mais autoritário, do que uma PF completamente subserviente ao poder político, porque este último, ao menos, pode ser mediado de quatro em quatro anos pelo povo, e seus membros não tem, jamais, cargo vitalício.
Todos aceitam, portanto, numa postura quase fatalista, que a melhor maneira de evitar um golpe é, na verdade, permitindo que as forças que se articulam pelo golpe, mesmo que sem clara consciência disso, a saber, Judiciário, Ministério Público, e uma PF transformada em guarda pretoriana do Judiciário, assumam de vez o poder.
Eu não quero encerrar o post, porém, com um tom tão negativo, porque não podemos deixar de enxergar, nos últimos acontecimentos, três pontos profundamente positivos:
1) A desmoralização nacional e internacional dos setores políticos e sociais que pregam um golpe de Estado.
2) Não foi somente o movimento de elite que enterrou o golpe. As movimentações populares, como as centenas de milhares que foram às ruas no último dia 20, contra o impeachment, tiveram importância fundamental. Atos como o encontro de governadores do Nordeste, contra o golpe, também ajudaram.
3) A política é um processo vivo e dinâmico. A partir do momento em que o governo não cai, mesmo que cedendo em vários pontos, ele ganha uma força particular. É um governo que resiste, vencendo quatro pleitos consecutivos, a um processo de massacre que dura, em verdade, há muitos anos. O que está vivo pode se transformar. O que pode se transformar, pode acumular forças. O que pode acumular forças, pode voltar a vencer.