Por Lia Bianchini, repórter especial do Cafezinho
“O que fazes por sonhar/É o mundo que virá para ti e para mim”.
Os versos são parte da última estrofe da música “1º de julho”, composta por Renato Russo para Cássia Eller.
A letra fala sobre a relação entre mãe e filho, porém, os versos acima citados podem ser facilmente aplicados a qualquer tipo de relacionamento. Eles falam sobre como nossos sonhos e ações podem transformar a realidade ao redor.
1º de julho foi também a madrugada em que se encerrou o primeiro turno da votação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 171, na Câmara dos Deputados, em Brasília.
Foi a madrugada em que os movimentos sociais unidos conseguiram impedir a aprovação de uma medida que criminalizaria a juventude: a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos.
No entanto, se a madrugada foi de realização de sonhos, o dia foi de pesadelos. 1º de julho foi o dia em que Eduardo Cunha aprovou a PEC 171, com uma ação golpista e inconstitucional, ferindo quaisquer princípios democráticos.
Assim, 1º de julho foi o dia que definiu a continuidade da luta contra a redução da maioridade penal.
Nas palavras da integrante do Amanhecer contra a redução, Morena Perez, nesse dia foi possível perceber “que a juventude tem poder, que a voz do povo tem poder”. Ela afirma: “Nós não conseguimos ver derrotas. Nós ganhamos uma força muito grande depois dessa votação”.
Pouco mais de quarenta dias após a primeira votação, acontece o segundo turno, no dia 19 de agosto.
O resultado: 320 votos a favor da aprovação da PEC 171, 152 votos contrários e 1 abstenção.
Segundo Jefferson Barbosa, também do Amanhecer contra a redução, o resultado não foi surpreendente. “Como o segundo turno só aconteceu por conta de um golpe, nós já sabíamos que não teríamos tanta chance de barrar a PEC agora. Diferente do que aconteceu na primeira votação, que nós estávamos lá em Brasília para pressionar, o que fez muita diferença. Mas, enfim, a sensação não é de derrota. Agora é hora de juntarmos todas as nossas forças para continuar lutando”, diz.
A proposta de redução da maioridade penal segue, agora, para mais duas votações no Senado, onde enfrentará obstáculos mais complexos do que as simples vontades egocêntricas de Eduardo Cunha.
No dia 15 de julho, o Senado aprovou um Projeto de Lei (PL) que prevê o aumento do tempo de internação no sistema socioeducativo para até dez anos (atualmente, o tempo máximo de internação é de três anos).
A proposta original é de autoria do senador José Serra (PSDB-SP), que teve algumas modificações no projeto substitutivo apresentado por José Pimentel (PT-CE), como a divisão dos internos em alas especiais de acordo com a gravidade do delito e a obrigatoriedade de que o jovem em cumprimento de penas prolongadas conclua todas as etapas do ensino médio até a profissionalização.
O Projeto de Lei é visto como uma alternativa à PEC 171 e tem maior aceitação entre os senadores. Quando de sua aprovação, o presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), encerrou a sessão dizendo que “mesmo que não diminuindo a maioridade penal, [o projeto] construiu, sem dúvida nenhuma, um importante caminho que possibilita o debate do problema da violência que aflige o país”. Já José Serra afirmou que “a sociedade vai receber bem o projeto”.
Infelizmente, parece que o futuro da juventude brasileira se tornou produto em um mercado de barganhas. É preciso deixar nítido, então, os fins por detrás de ambas as propostas.
A justificativa para a discussão da redução da maioridade penal seria a enorme violência no Brasil. Porém, segundo dados do Ministério da Justiça, apenas 1% dos crimes no país é cometido por menores de 18 anos. Se o assunto for crimes hediondos, o índice cai para 0,5%. Ou seja, a juventude está longe de ser a responsável pela violência no Brasil.
Há, ainda, o argumento de que a maioria da população aprova a redução da maioridade penal. De fato, a última pesquisa Datafolha mostra que 87% dos entrevistados são favoráveis à redução. Índice que não é de se espantar, haja vista que o tema nunca foi amplamente debatido em sociedade. Soma-se isso à contribuição da mídia hegemônica, que, desde que a PEC 171 voltou à pauta na Câmara dos Deputados, tem bombardeado o público com manchetes sensacionalistas sobre crimes cometidos por jovens menores de 18 anos. O resultado não poderia ser outro que não a aprovação da redução por boa parte da população brasileira.
Mas afinal, se a redução da maioridade penal não vai atingir, de fato, o problema da violência no país (já que tratará da mínima parte criminosa da população), por que essa proposta foi colocada em pauta agora?
A resposta é muito simples: interesses econômicos.
A proposta de redução da maioridade penal não visa apenas à criminalização da juventude como também à privatização do sistema prisional brasileiro.
De acordo com o último censo carcerário feito pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Brasil tem 715,6 mil presos. No entanto, o sistema prisional tem apenas 357,2 mil vagas. Ou seja, há um déficit de 210,4 mil vagas. Com um sistema já superlotado, a saída para o aumento da população carcerária seria transferir o controle das prisões para a iniciativa privada.
Não por acaso, já existe uma “bancada da jaula” no Congresso, formada por deputados que recebem doações de campanha de empresas de gestão do sistema prisional privado. Um exemplo é a família Câmara, do deputado federal Silas Câmara (PSD-AM), que, junto à esposa Antônia Câmara (PSC-AC) e à filha Gabriela Câmara (PTC-AC), recebeu R$ 750 mil da empresa de gestão de presídios privatizados Umanizzare Gestão Prisional e Serviços Ltda. nas últimas eleições.
Para as empresas privadas de gestão prisional, obviamente, quanto maior o número de presos, maior será o lucro.
Surge a pergunta, então: o aumento do tempo de internação dos jovens em conflito com a lei seria uma solução melhor?
A resposta é negativa.
Primeiramente, porque o sistema socioeducativo brasileiro é muito bom na teoria e muito ruim na prática. De acordo com levantamento da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR), de 2012, a média de mortes dentro das unidades de internação era superior a dois jovens por mês. As principais causas eram conflitos interpessoais, conflito generalizado e suicídio.
Já o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) mostra, em pesquisa no mesmo ano, que 28% dos jovens em privação de liberdade no país declararam ter sofrido agressão de funcionários, 10% disseram apanhar da polícia militar dentro das unidades e 19% revelaram outros castigos físicos.
Ou seja, se a preocupação é com a reinserção dos jovens em conflito com a lei na sociedade, não faz muito sentido encarcerá-los por até dez anos, sem ao menos pensar em uma reformulação do sistema socioeducativo, que, atualmente, constitui-se em verdadeiras prisões para menores de 18 anos.
Além disso, é importante notar que, no ano passado, Geraldo Alckmin, do PSDB (mesmo partido que o autor do projeto original de aumento do tempo de internação), colocou em pauta, em São Paulo, um Projeto de Lei Complementar que visa terceirizar a gestão de entidades sociais, dentre as quais a Fundação Casa.
Percebe-se, então, que tanto o sistema prisional quanto o sistema socioeducativo estão sendo alvo de interesses empresariais. E a redução da maioridade penal ou o aumento do tempo de internação só contribuirão para o favorecimento desses interesses e não para melhorias na sociedade brasileira.
No meio de toda essa discussão, é preciso ter em mente, ainda, quem será o alvo de qualquer uma das propostas: a juventude negra.
O “Mapa do Encarceramento: os Jovens do Brasil”, divulgado pela Secretaria Geral da Presidência da República, mostra a seletividade do sistema prisional brasileiro. Em 2012, havia 292.242 negros presos e 175.536 brancos. Ou seja, 60,8% da população prisional era negra. Ainda no mesmo ano, para cada grupo de 100 mil habitantes brancos acima de 18 anos havia 191 brancos encarcerados, enquanto para cada grupo de 100 mil habitantes negros acima de 18 anos havia 292 negros encarcerados. Proporcionalmente, o encarceramento de negros foi 1,5 vez maior do que o de brancos.
Mas todos esses índices e números talvez não passem a verdadeira noção da realidade.
Eles não conseguem refletir o medo que uma mãe negra da periferia sente ao deixar seu filho sair de casa, imaginando que ele pode não voltar mais.
Os números também não demonstram a angústia que uma mãe, que cria seus filhos sozinha, tem ao ouvir de um policial em uma unidade prisional que ela criou “a semente do mal”.
Talvez, quem olhe para esses números não consiga imaginar o que é andar por uma rua e ver pessoas se afastarem de você ou protegerem suas bolsas, com medo da cor da sua pele.
E todos esses números certamente não refletem o sentimento de ódio que aparece em um jovem quando vê que não existe nenhuma oportunidade nesse mundo para ele. Que, antes mesmo de nascer, ele já era excluído.
O problema do Brasil não é a violência, mas sim a perversidade de quem olha para os jovens e não enxerga nada além de cifrões. De nada adiantará incluir nos sistemas prisional ou socioeducativo falidos quem a sociedade já excluiu, eximindo de direitos, desejos e até da própria personalidade.
Enquanto os sonhos forem reprimidos e embalados a vácuo, o “mundo que virá” para a sociedade brasileira continuará sendo de exploração e subjugação aos interesses mesquinhos de poucos.