Luiz Moreira denuncia ascensão do autoritarismo penal

Reproduzo abaixo artigo de Luiz Moreira que denuncia os arbítrios judiciais da Operação Lava Jato, e os riscos que o autoritarismo penal traz aos direitos humanos, à liberdade e à democracia.

Todo mundo quer combater a corrupção, e por isso mesmo não queremos corromper a luta contra a corrupção, nem jamais transformá-la em pretexto para o arbítrio e a redução dos direitos.

A corrupção é um mal terrível.

O arbítrio é um mal ainda pior.

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O inimigo como tragédia e como farsa

Por Luiz Moreira, jurista, professor de Direito e ex-titular no Conselho Nacional do Ministério Público.

Karl Marx, um dos mais argutos e complexos pensadores do Ocidente, cunhou frase que é repetida em diversos contextos e que é apropriada para expressar os diferentes modos de manifestação do mesmo fenômeno: “Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”.

Se é certo que a conjunção de diversos fatores e inúmeras condições não permitem a simples repetição do fenômeno histórico, também o é que a oposição (antífrase) entre tragédia e farsa reflete uma decadência entre ambos, mas também adverte que a ninguém é permitido portar-se ingenuamente ante as intrincadas relações políticas, sociais e econômicas.

Por conseguinte, parece ter havido um hiato na política brasileira decorrente do aniquilamento praticado pelo Estado durante a última ditadura. Somente esse hiato pode explicar a visão ingênua que resultou no protagonismo atribuído ao aparato persecutório.

Embora haja consenso que as instituições republicanas devem submissão à soberania popular, razão pela qual ocorrem eleições periódicas, foi produzida ideologia que não apenas subordina, mas que criminaliza os poderes que decorrem do voto.

No Brasil, como caso único, adotou-se sistema em que há supremacia do sistema de justiça sobre a política, adotando-se, ao mesmo tempo, controle difuso de constitucionalidade, como nos Estados Unidos, e concentrado, como na Alemanha, com clara preferência pelo modelo repressivo, no qual o sistema de justiça age como corretor das instituições políticas. Tal construção mitiga a democracia e fragiliza a atividade política, de modo a produzir ambiente semelhante ao vivenciado nas ditaduras.

Atualmente, a atividade política é desprestigiada, como se decaída fosse. As articulações são tidas como espúrias, e se projeta, no lugar que cabe à democracia, um fictício primado da técnica.

Com isso há um claro desprestígio da lei, substituída por interpretações jurídicas fundadas em princípios constitucionais “abertos”. Desse modo, prospera ideologia que permite que manifestações individuais de magistrados e de membros do Ministério Público se sobreponham às leis.

Talvez essa seja uma das questões que mais mereça reflexão: a atividade política fora interditada na ditadura e os dissidentes transformados em inimigos. Os que resistiram reconquistaram a democracia e, pouco tempo depois, a história se repete como farsa, isto é, novamente se assiste à produção de inimigos, em movimento que reside na mesma criminalização da sociedade civil e da atividade política.

Um dado é particularmente constrangedor: enquanto o sistema de justiça conviveu harmoniosamente com o regime de exceção instalado pela ditadura civil e militar, a sociedade reagia construindo uma rede de apoios que se fundava na atuação de artistas, nas forças políticas clandestinas, nos movimentos eclesiais de base, no Movimento Democrático Brasileiro, na Ordem dos Advogados do Brasil e na Associação Brasileira de Imprensa.

Essa conivência gerou o acatamento de ordem que proibia o STF de apreciar e de conceder habeas corpus em defesa das vítimas do aniquilamento promovido pela ditadura.

Ante a cassação de três de seus Ministros (Hermes Lima, Victor Nunes Leal e Evandro Lins e Silva) e a aposentadoria voluntária, em solidariedade aos Ministros cassados, do Presidente e do Vice-Presidente do STF (Antônio Gonçalves de Oliveira e Antônio Carlos Lafayette de Andrada), os demais Ministros se mantiveram nos respectivos cargos, em ato que representou mais que a convalidação jurídica do regime de exceção.

Não bastasse o aniquilamento físico e ideológico promovido pela ditadura, houve não apenas a convalidação desses atos pelo sistema de justiça, mas sua perfeita formalização jurídica. Ou seja, não havia democracia, mas havia Estado de direito.

Nunca foi cogitada a revisão de qualquer ato jurídico praticado no regime de exceção. O máximo que se produziu foi o parcial reconhecimento dos direitos de suas vítimas e a recuperação da memória desse período.

É nesse ambiente que se gesta uma Constituição garantista, marcada pela expectativa de que as garantias e os direitos fundamentais fossem, enfim, institucionalizados.

O inimigo como tragédia

Em Carl Schmitt o inimigo é o hostil e adquire contornos institucionais com a ditadura brasileira: o inimigo era o estranho, o desconhecido e contra ele era permitida qualquer hostilidade.

Operando método de eliminação de cidadãos, que consistia na produção da figura do inimigo, o Estado brasileiro adaptou métodos e nomenclaturas utilizados nas guerras e os aplicou aos cidadãos que se opunham ao regime. Esses cidadãos eram identificados e apartados da comunidade política.

O método de apartação consistia na formulação de lista de suspeitos, com sua posterior submissão à tortura. Os inimigos do regime eram identificados, torturados e mortos. Aos sobreviventes restavam dois caminhos: o exílio ou a clandestinidade. Ambos significavam que a hostilidade do regime os transformara em apátridas.

É nesse contexto que foi produzida a campanha “Brasil, ame-o ou deixe-o”, para sinalizar que o desterro era o destino a que eram encaminhados os dissidentes que resistiram à tortura.

E o que podem esperar os dissidentes? Além de vítimas de tortura física e de alvos de uma guerra psicológica, aguardavam a reprovação de suas condutas pelo sistema de justiça, isto é, além de aniquilados fisicamente foram também condenados pelo sistema de justiça.

Desse modo, o Estado de direito se realiza como tragédia, pois à hostilidade política sucede a decisão judicial.

O inimigo como farsa

Günther Jakobs também formula um conceito de inimigo. Para ele, o inimicus é o criminoso.
Jakobs concebe dois tipos de direito penal. No direito penal dos cidadãos, a pena é um parâmetro a ser evitado e os cidadãos que se desviarem desse parâmetro devem suportar a pena como “reparação do dano”, isto é, a pena é um castigo que deve ser aplicado para que seja conservada a norma penal.

Já o direito penal do inimigo é a regulamentação do Estado de exceção. Criam-se os meios jurídicos para o aniquilamento dos que descumprem determinadas normas penais. Assim, se um cidadão infringir algumas normas ou se cometer determinados crimes, a ele não se aplicam as normas penais que são válidas para os demais, vez que se trata de eliminar o inimigo.

Para Jakobs, o cidadão que viola a norma penal, ainda que de menor potencial ofensivo, é já inimigo, ainda que provisoriamente. Mas os cidadãos que praticam certos crimes ou que os praticam mais vezes são inimigos permanentes e a eles não se aplicam o direito penal do cidadão. Como inimigos do Estado deixam de ser tratados como pessoa.

Desse modo, o criminoso é aquele cuja conduta o aparta da comunidade jurídica. Esse apartar significa tanto ato de isolamento quanto perda de direitos. Isolamento porque deixa de ser membro da comunidade dos cidadãos e, por não participar dela, não usufrui dos direitos que nela são gestados.

O que antes era circunscrito às favelas, aos presídios e às periferias passa a se generalizar. Mesmo medidas judiciais de exceção, como prisões processuais, passam a ser regra. O cidadão, transformado em inimigo, de presumivelmente inocente é transformado em previamente suspeito, assim como medidas invasivas e prisões, em regra.

A Lava Jato e a reedição do inimigo

Com o propósito de subverter essa estrutura garantista da Constituição foi moldado um componente ideológico abstrato (o combate à corrupção) e um “exército” de combatentes, que se utiliza de campanhas midiáticas para obter o apoio da população às suas causas e lhes garantir que essa atuação seja inquestionável.

Esse alinhamento do sistema de justiça à mídia tem garantido supremacia da primeira instância sobre as instâncias revisoras. Ou seja, os juízes dos tribunais têm evitado conceder habeas corpus ou mesmo decretar nulidades processuais, pois têm receio de serem tidos como coniventes com a corrupção.

Mais do que ocupar o topo do Poder Judiciário, o STF é o guardião das liberdades. Desse modo, uma de suas missões é apreciar e julgar habeas corpus, justamente para coibir qualquer arbitrariedade praticada pelo Estado.

Não é admissível que a apreciação e a concessão de habeas corpus dependam de percursos burocráticos, sobretudo quando são conhecidos os problemas com o tempo de duração dos processos no sistema de justiça.

Assim, não faz qualquer sentido a manutenção, pelo STF, da Súmula 691, por significar primazia da burocracia judiciária ante as liberdades, da qual o habeas corpus é expressão.

Embora vivamos sob uma democracia constitucional, a Operação Lava Jato tem se utilizado de métodos condizentes com a transformação de cidadãos em inimigos: primeiro, com a figura da delação; segundo, com a transformação da prisão preventiva em meio ordinário apto a produzir provas.

A delação premiada é uma adaptação, para o direito, da figura do confessionário da igreja católica.

No catolicismo, o pecador se dirige ao confessionário para obter o perdão de suas culpas; já no direito penal, o delator é aquele que confessa ter cometido crimes e que projeta seu agir em termos utilitários, isto é, no agir do delator tudo é calculado: o crime praticado, o que confessar e o a quem envolver ou a quem proteger. Diferentemente do pecador ante o confessionário, o delator é um jogador que se utiliza do sistema de justiça para obter vantagens.

Na perspectiva adotada pela Lava Jato, ou seja, a do direito penal do inimigo, duas questões afrontam o direito penal constitucional vigente no Brasil:

(I) a transformação do depoimento do delator de indício em prova, com a consequente equiparação dos depoimentos de dois ou de mais delatores em conjunto probatório; e (II) a tendência a se perder a diferença qualitativa, ainda existente, entre os métodos investigativos da polícia e do ministério público dos praticados por delinquentes.

Já a prisão preventiva como meio de produção de prova se classifica como modalidade de guerra ao inimigo.

Embora o STF já tenha se posicionado sobre a ilegalidade dessa medida, a permanência da Súmula 691 retarda o triunfo das liberdades sobre o arbítrio.

Não se pode admitir que cidadãos sejam vítimas da sanha punitiva do Estado e que as liberdades sejam sacrificadas pela incompetência investigativa do aparato persecutório estatal.

A ninguém interessa a impunidade. No entanto, o combate à impunidade não pode significar violação à Constituição. O combate à impunidade significa investigação criteriosa, com autonomia operacional da Polícia, independência institucional do Ministério Público e garantias à atuação do Judiciário. Significa também presunção de inocência, divisão entre as atividades de acusar e de julgar, devido processo legal e reconhecimento da importância do advogado para o sistema de justiça.

Nas democracias constitucionais a liberdade é a regra. Nessas, cidadãos só são presos quando constatadas suas culpas em processos em que a ampla defesa e o devido processo legal são observados.

Antes circunscrita geograficamente às favelas, aos presídios e às periferias, esse estado de exceção rompe essa estratificação e se generaliza, em falso movimento de universalização da exceção.

Cabe ao STF conter essa farsa.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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