O PT e o paradoxo do republicanismo penal

O legado de Dilma: a luta contra a corrupção

A matéria do Financial Times, elogiando o combate à corrupção no governo Dilma, e ainda afirmando que esse pode ser o grande e histórico legado da presidente, me faz lembrar uma velha canção de Raul Seixas, na qual ele insere um verso triste:

“É pena eu não ser burro, não sofria tanto”.

Eu reproduzo abaixo um post do blog do Brasilianista, que resenha a matéria do FT, mas antes gostaria de tecer alguns comentários.

A reportagem do FT é, em vários sentidos, uma armadilha.

A mesma armadilha na qual se enredou o PT desde que se deram os primeiros ensaios do que o jovem e brilhante advogado Wallace Martins chamou, em entrevista ao Cafezinho, de “seletividade penal política”.

Martins observa, com sabedoria, que a narrativa de que as instituições agora estão prendendo todo mundo, é uma falácia.

Não se prende todo mundo. Prende-se apenas aqueles que podem interessar a uma narrativa ditada pela mídia. Há uma nítida seletividade política: tucanos podem ser flagrados com helicópteros portando meia tonelada de cocaína, podem comprar reeleição, podem receber propinas bilionárias de cartel de trens, podem cometer o crime de não expandir a infra-estrutura hídrica do estado mais populoso do país, podem dar centenas de bilhões para banqueiros incompetentes, podem segurar o câmbio para ganhar eleições e, com isso, secar nossas reservas internacionais, podem usar o BNDES para emprestar dinheiro a empresas estrangeiras comprarem nossas estatais, podem construir aeroportos em terras da família, podem fazer tudo, enfim.

Jamais serão incomodados pela justiça.

Não são sequer investigados!

A seletividade política penal é uma forma de fascismo.

A Globo, por exemplo, cometeu um crime de evasão fiscal detectado pela Receita. Abriu 11 empresas no exterior com o intuito de não pagar os impostos relativos à Copa do Mundo de 2002. Prendeu-se alguém? Não. Ao contrário, o cartel midiático traçou um indevassável cordão sanitário de proteção à Globo. Nenhum jornalão sequer deu a notícia, evidentemente importante, sobre uma operação de sonegação gigantesca, e que poderia levar, caso investigada, a uma série de outras operações criminosas similares, tocadas há décadas pelas grandes empresas brasileiras.

A sonegação brasileira joga no lixo mais de R$ 600 bilhões por ano. É o país que mais sonega no mundo. A Polícia Federal, nos últimos tempos, deflagrou várias operações de grande envergadura para desbaratar quadrilhas especializadas em sonegação. A imprensa, no entanto, abafa furiosamente esse tipo de reportagem, e, sobretudo, jamais criou uma “campanha”, uma narrativa, para ajudar as autoridades a combater esses crimes.

E faz isso porque as próprias empresas de mídia estão envolvidas também em grandes crimes fiscais, ou interessadas num sistema fiscal que trata os grandes sonegadores com infinita leniência e os pequenos sonegadores com violência estatal inaudita.

Você nunca verá a mesma violência penal e midiática aplicada contra as grandes empreiteiras e contra a Petrobrás, ser aplicada aos grandes bancos, por exemplo.

Na Zelotes, que investiga desvios que podem chegar a R$ 20 bilhões, o juiz não autorizou nenhuma das prisões preventivas ou provisórias pedidas pelo Ministério Público. A mídia não fez uma crítica ao juiz. Felizmente, um deputado corajoso insistiu em denunciá-lo e ele foi afastado pelo Conselho Nacional de Justiça. Outro juiz deverá ser ou já foi indicado para substituí-lo. O deputado é do PT, naturalmente, porque dificilmente você verá um parlamentar da direita (PSDB, DEM) agindo contra os grandes sonegadores, ou qualquer coisa que não interesse à mídia.

A matéria do Financial Times chega a ser quase irônica. Em determinado momento, ela cita a abertura do inquérito contra o ex-presidente Lula e diz que é a primeira vez no mundo em que um ex-presidente é investigado por esse tipo de coisa: tráfico de influência internacional e abrir mercados para as empresas de seu país.

Outras matérias na imprensa internacional fizeram o mesmo tipo de comparação. Há uma boa, na BBC Brasil, falando que o inquérito contra Lula pode ser exemplo para o mundo, mas estranhando, quase com ironia, que todos os ex-presidentes no mundo fazem o mesmo.

Sim, um exemplo negativo, mas interessante para o grande capital no mundo inteiro. O grande capital farejou, rapidamente, a oportunidade de controlar a democracia, através dessa parceria entre meios de comunicação e setores “autônomos” do Estado. Qualquer liderança política que intente mexer com os interesses do capital poderá ser, portanto, facilmente destruída.

O PT foi afundando nessa armadilha por anos. Usou e abusou desse argumento nas próprias campanhas: em nossos governos, não se engaveta, se investiga a fundo; nosso procurador-geral não é engavetador.

Gostaria, nesses momentos, de ser um cientista político e desenvolver uma teoria que se chamaria “paradoxo do republicanismo penal”, que consistiria no seguinte. Um governo dá autonomia para as instituições repressivas investigarem a fundo o próprio governo. Não interfere, não intervém, não promove sequer um debate para participar da narrativa política que se cria, necessariamente, em torno das investigações. O paradoxo é este: quanto mais o governo não intervém, mais as instituições repressivas ampliam o seu arco de investigações contra o governo, sem conhecer limites. E não há limites, se você pensar bem, porque um governo, como instituição política, cujo poder emana de processos eleitorais extremamente complexos, está impregnado de todos os tipos de interesses, legais e ilegais.

Justamente por ser uma instituição política, todo o governo é corrupto. Por isso, é tão importante um combate permanente contra a corrupção dentro do governo. E por isso é mais importante ainda que esse combate não seja corrompido ou manipulado por interesses obscuros, ligados aos setores derrotados nas urnas.

O paradoxo do republicanismo penal, portanto, levará, necessariamente, ao seguinte dilema: quanto mais ético for o governo, quanto menos ele interferir nos processos de investigação, mais ele será pintado como corrupto, porque as autoridades repressivas ganharão notoriedade política e, conforme suas devassas sangram o próprio governo, maior a repercussão dos escândalos junto à sociedade.

Não interessa a magnitude dos escândalos. Em que país do mundo, por exemplo, um ministro caiu porque usou um cartão corporativo para pagar uma tapioca?

O paradoxo do republicanismo nos faz voltar à matéria do Financial Times. O governo lê isso, o PT lê isso, e, como parece não haver mais, no PT,  inteligência de contra-informação, ambos pensam imediatamente apenas no ganho eleitoral que pode haver em ser conhecido no mundo como “o governo que mais combateu a corrupção”.

A Agência PT rapidamente pega a notícia e estampa em seu site: “Imprensa internacional destaca combate à corrução como legado de Dilma”.

O paradoxo do republicanismo tem um ponto positivo. De fato, a maior autonomia dos órgãos de repressão ajuda a combater a corrupção. Só que esta autonomia não poderia se dar, como acontece hoje, pela apatia ou ausência do governo na formulação da narrativa política que se construirá ao redor das investigações. Quando isso acontece, o governo, instituição política de representação popular, perde poder para instituições de representação aristocrática, como Ministério Público, Polícia Federal e Judiciário.

O governo tem corrupção. Todo governo tem. Mas o Ministério Público, a Polícia Federal, o Judiciário, não apenas também possuem problemas de corrupção, como são cooptados pelas forças derrotadas nas eleições, e que buscam usar essas órgãos para promover uma verdadeira vendeta política.

É o que está acontecendo.

A autonomia dos órgãos de repressão não pode coexistir com um governo fraco, senão teremos, necessariamente, um processo contra-democrático, de transferência de poder de instituições controladas pelo sufrágio popular para instituições controladas por uma meritocracia de qualidade política discutível.

Os órgãos de repressão tem de ser autônomos, fortes e respeitados, mas é preciso que sejam, por sua vez, controlados pela sociedade, para que não se tornem, como se tornaram, monstros políticos a serviços de todo o tipo de interesses não coincidentes com os grandes interesses nacionais.

A quem interessa que o nosso governo seja conhecido lá fora como um governo que combate a corrupção, mas que, aqui dentro, esse combate à corrupção nos leve a destruição das seguintes forças nacionais: o principal partido popular, as principais empresas nacionais de engenharia, a principal empresa de energia, nosso projeto nuclear, um dos maiores bancos públicos de investimento no mundo. Quem lucra com isso, evidentemente, não é o Brasil, nem a maioria dos brasileiros. Ganhamos reportagens elogiosas no Financial Times justamente por isso: porque eles são gratos por sermos tão trouxas.

Geralmente as potências ocidentais tem de fazer guerras terríveis para enfiar suas garras nos recursos naturais de outros países. Vide o que fizeram com Iraque e Líbia. Mataram milhões de pessoas e agora controlam suas principais empresas de petróleo.

Aqui no Brasil, eles foram mais inteligentes. Aproveitando-se das nossas contradições democráticas, da nossa ingenuidade, do nosso “republicanismo penal”, estão tentando nos tomar os recursos apenas na base do jogo político.

A entrada de Levy no ministério da Fazenda é uma garra do grande capital já posta no meio do nosso governo, e por culpa, certamente, do nosso “republicanismo penal”, que é uma falácia: qualquer político, autoridade ou mesmo empresário que não siga rigidamente as orientações da mídia hegemônica, que por sua vez é um braço do imperialismo, corre o risco de ser destruído moralmente, politicamente, financeiramente – pelo mesmo republicanismo penal.

Tudo nos leva de volta ao problema central da nossa democracia, um problema para o qual o governo não apenas fechou os olhos, como ainda ajudou a agravar: a concentração dos meios de comunicação.

Damos voltas e mais voltas e sempre voltaremos ao mesmo problema, porque um país desprovido de um sistema de comunicação minimamente plural e democrático será presa fácil de todo o tipo de conspiração. Conspirações judiciais, conspirações parlamentares, conspirações geopolíticas, conspirações midiáticas. Todas enfim reunidas numa só conspiração, hoje à vista de todos, que é de derrubar um governo legitimamente eleito, para pôr em seu lugar as forças políticas derrotadas nas urnas.

Como se pode ver, o Brasil, definitivamente, não é para amadores.

***

No blog do Brasilianismo.

Crítico a governo, ‘FT’ diz que guerra à corrupção pode ser legado de Dilma

Por Daniel Buarque

O combate à corrupção, a independência e a seriedade das instituições brasileiras que estão investigando e punindo os envolvidos nesses crimes têm sido os principais focos de cobertura positiva sobre o país na imprensa internacional. Em vez de mancharem a imagem do Brasil, as notícias do escândalo da Petrobras, como o Mensalão antes dele, têm criado no resto do mundo um retrato de um país que cansou de ver tudo “terminar em pizza”, e que agora enfrenta o problema.

A revista de relações internacionais “Foreign Policy” recentemente elogiou os avanços na luta do Brasil contra a corrupção, indicando até a criação de mecanismos novos, como a investigação de um ex-presidente por suas atividades após deixar o governo, o que diz nunca ter acontecido no mundo. Um jornal argentino chegou até a publicar um editorial em que elogia a luta contra a corrupção no Brasil e em que torce pela expansão desta onda transparência pelo resto do continente.

O mais recente elogio à luta contra a corrupção no Brasil vem de um veículo notadamente marcado pela postura crítica em relação à situação atual do país, e em relação à política econômica do governo Dilma, o jornal britânico de economia “Financial Times”, recentemente comprado pelo grupo japonês Nikkei.

Segundo o “FT”, a presidente governa o país durante um declínio econômico, mas em meio ao fortalecimento das suas instituições. Para o jornal, o combate à corrupção pode se tornar o legado de Dilma para o país (mesmo considerando que o segundo mandato começou há pouco mais de seis meses, e deve durar mais de três anos).

Em uma cobertura que aborda a situação do país com regularidade, o “FT” já chamou o governo de incompetente, alegou haver hipótese de impeachment e disse que o país é responsável por criar sua própria crise econômica. Suas reportagens já disseram que o país vive um “filme de terror sem fim”, já atacou altos preços, apontou as dificuldades vividas pela classe média, e não costuma elogiar as medidas do governo.

Ainda assim, a reportagem recente do jornal britânio destaca a adoção, durante o governo Dilma, de mecanismos como a delação premiada, “que podem se provar o maior legado positivo da sua presidência cheia de dificuldades”, diz. As delações premiadas são até chamadas de “armas de destruição em massa contra conspirações de corrupção”.

“Se isso criar uma melhora permanentemente nos sistemas legais, pode um dia até mesmo ser visto como uma conquista tão importante quanto a de seus antecessores Luiz Inácio Lula da Silva, que reduziu e pobreza, e Fernando Henrique Cardoso, que controlou a inflação”, complementa.

A reportagem relata os problemas econômicos por que o Brasil vem passando, mas diz que a forma como Dilma tem lidado com a questão da corrupção é diferenciada, e destaca que até agora não há nenhuma prova de envolvimento dela em escândalos.

“Durante as investigações, Dilma tem demonstrado irritação em nome de seus camaradas acusados. Mas na maior parte das vezes ela quis assumir o crédito pela guerra contra a corrupção”, diz. O jornal destaca entretanto, que as instituições que estão liderando as investigações são independentes da Presidência, e não estão agindo por influência de Dilma.

Ainda com todas as ressalvas, a postura elogiosa do “Financial Times” reforça o discurso já estabelecido na mídia internacional, elogiando os avanços institucionais do país no combate à corrupção. Em meio a um noticiário cada vez mais voltado a temas econômicos e cada vez mais negativo, ver medidas do país de hoje serem reconhecidas no resto do mundo dá um grande alívio à imagem do Brasil no resto do mundo. A economia vai mal, mas o país está melhorando através das suas instituições.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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