Para professor Luiz Moreira Gomes Júnior, MP tem de ser responsabilizado por denúncias inconsistentes
Por Marcelo Galli, no Conjur.
O clima criado com vazamentos de informações sigilosas e prisões preventivas, o que tem ocorrido ultimamente no Brasil em operações policiais como a “lava jato”, faz com que o advogado muitas vezes seja criminalizado por defender o seu cliente. A opinião é do professor Luiz Moreira Gomes Júnior, ex-integrante do Conselho Nacional do Ministério Público e professor de Direito Constitucional da Faculdade de Direito de Contagem (MG).
Em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico, ele afirma que está sendo “gestado” no Brasil um ambiente de hostilidade ao exercício da advocacia, criando uma imagem de que o advogado atrapalha a investigação e o andamento dos processos. “Sorrateiramente, o corporativismo, de setores que compõem o sistema de Justiça, tem conjugado uma lógica do ‘nós contra eles, os advogados’, que tende a eliminar as diferenças entre aparato persecutório e magistratura, com prejuízos insanáveis aos direitos fundamentais”, diz Gomes, doutor em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais.
Ele afirma que confundir advogado com cliente e direito de defesa com impunidade “é um dos traços que mais que denotam a vigência de estados de exceção”. O professor também defende a responsabilização do Ministério Público em casos de denúncias inconsistentes. E fala que nesses casos o MP deveria indenizar os prejudicados. “No caso de dolo, porém, além da responsabilização patrimonial da instituição, deve haver a consequente sanção disciplinar”, afirma.
Leia a entrevista:
ConJur — O direito de defesa tem sido rebaixado ou ameaçado no Brasil?
Luiz Moreira — A ditadura operou método político de eliminação de cidadãos que consistia na produção da figura do inimigo. Atualmente há o mesmo movimento de produção do inimigo, só que em outros termos. Agora, o inimigo significa o criminoso. A negação dos direitos ao inimigo é operada diretamente pelo sistema de Justiça, sem a presença de intermediários. Ou seja, as instituições que operam com o Direito é que produzem a figura do inimigo, ao qual é negado o acesso às garantias fundamentais e ao devido processo legal.
ConJur — O garantismo tem perdido força no Brasil?
Luiz Moreira — Paradoxalmente, sim. No Brasil, o garantismo não é apenas uma corrente. A Constituição é estruturalmente garantista e com ela foi atribuída ao Supremo Tribunal Federal a defesa das garantias e dos direitos fundamentais. Com o propósito de subverter essa estrutura garantista, foi moldado um componente ideológico abstrato (o combate à corrupção) e um “exército” de combatentes (setores da polícia, do ministério público e do judiciário), que se utiliza de campanhas midiáticas para obter o apoio da população às suas causas e garantir que essa atuação seja inquestionável. Isso tem garantido supremacia da primeira instância sobre as instâncias revisoras. Ou seja, os juízes dos tribunais têm evitado conceder Habeas Corpus ou mesmo decretar nulidades processuais, pois têm receio de serem tidos como coniventes com a corrupção.
ConJur – Quais são os riscos da judicialização da política no Brasil?
Luiz Moreira — A substituição da legitimidade do sistema político pela aristocracia do sistema de justiça revela o grande paradoxo em que vivemos: prescindir da democracia em uma época em que se alcança uma liberdade segmentada, seja como consumidor, como usuário ou como eleitor. Acreditando que a liberdade se realiza no conjugar das particularidades, o homem moderno foi prescindindo de sua cidadania, até o limite em que se converteu em jurisdicionado. A sociedade brasileira vê-se alijada de formas de expressão de vontade e de representação, operada por um ativismo, do judiciário e do Ministério Público, que passa a ser o titular da formulação, da interpretação e da efetividade das normas, reunindo, sob seu arbítrio, as prerrogativas legislativas, judicativas e executivas.
ConJur — O que acha do instituto da delação premiada?
Luiz Moreira — A delação premiada é uma adaptação, para o Direito, da figura do confessionário da Igreja Católica. No agir do delator tudo é calculado: o crime praticado, o que confessar, quem envolver ou quem proteger. Assim, diferentemente do pecador ante o confessionário, o delator é um jogador que se utiliza do sistema de justiça para obter vantagens.
ConJur — Quais riscos isso traz?
Luiz Moreira — Preocupam-me duas questões em torno desse instituto: a transformação do depoimento do delator de indício em prova, com a consequente equiparação dos depoimentos de dois ou de mais delatores em conjunto probatório e a tendência a se perder a diferença qualitativa, ainda existente, entre os métodos investigativos da polícia e do Ministério Público dos métodos dos delinquentes.
ConJur — Qual é a opinião do senhor sobre o vazamento de informações de operações sigilosas?
Luiz Moreira — Trata-se de método amplamente utilizado para constranger o Judiciário. Tem sido utilizado para encobrir malfeitos, para encobrir a fragilidade na produção de provas, para criar ambiente de submissão dos tribunais à primeira instância.
ConJur — Isso não faz com que o advogado muitas vezes seja criminalizado por defender o seu cliente acusado?
Luiz Moreira — Há muito é gestado ambiente de hostilidade ao exercício da advocacia. É como se o advogado atrapalhasse a investigação, atrapalhasse o andamento do processo. Sorrateiramente, o corporativismo, de setores que compõem o sistema de justiça, tem conjugado uma lógica do “nós contra eles, os advogados”, que tende a eliminar as diferenças entre aparato persecutório e magistratura, com prejuízos insanáveis aos direitos fundamentais. Confundir advogado com cliente, direito de defesa com impunidade é um dos traços que mais que denotam a vigência de estados de exceção.
ConJur — O que acha do modelo de Ministério Público vigente no Brasil?
Luiz Moreira — Nenhum Ministério Público do planeta se assemelha ao brasileiro, tem as mesmas garantias de atuação, as mesmas prerrogativas e a mesma abrangência de atuação. Então, pode-se dizer que o Brasil depositou muitas expectativas no Ministério Público, que não podem ser traídas por uma atuação canhestra ou voluntariosa. O MP precisa de nova engenharia constitucional, apta a resolver suas contradições.
ConJur — Por exemplo?
Luiz Moreira — Precisa ser resolvido o sentido de sua independência funcional. Se é uma independência pessoal ou institucional; enfrentar a pressão corporativa por benesses, por penduricalhos e tratar a questão remuneratória com maturidade republicana; recuperar o sentido de elite dirigente interna; construir um direito administrativo que valha tanto para si como para os demais órgãos que compõem o serviço público; e resolver a divisão de funções perante o STJ e o STF.
ConJur — Qual deve ser o compromisso do MP?
Luiz Moreira — O Ministério Público não tem qualquer compromisso com a acusação. Seu compromisso é com a defesa da ordem jurídica e do regime democrático. Portanto, na ação penal seu compromisso é com o sistema constitucional. Excessos e malfeitos devem ser corrigidos pelas corregedorias locais ou pelo Conselho Nacional do Ministério Público.
ConJur — O destaque do MP na mídia é um problema?
Luiz Moreira — Sim, um grande problema. São conhecidas as queixas de diversos atores e instituições que atribuem a setores do Ministério Público vazamentos seletivos, a utilização de notícias “plantadas” pelo próprio MP para abertura de inquéritos, de investigações com alvos previamente selecionados e a utilização das prerrogativas institucionais para obtenção de vantagens corporativas. Trata-se de uma deformação do sistema que precisa ser corrigida pelas demais instituições. O risco é o Ministério Público abdicar da tarefa de vanguarda que a Constituição lhe confiou e virar uma instituição comum, voltada para a satisfação de seus interesses.
ConJur — O MP, ou algum de seus membros, deve ser responsabilizado por uma denúncia inconsistente?
Luiz Moreira — Não considero adequada a responsabilização pessoal do membro do Ministério Público. No entanto, haver responsabilidade da instituição pelo desempenho de seus membros.Indenizações são devidas, nos casos citados, pela instituição, devendo os valores ser tirados diretamente de seu orçamento. No caso de dolo, porém, além da citada responsabilização patrimonial da instituição, deve haver também a sanção disciplinar.