Por Sul 21
Edição: Marco Aurélio Weisheimer
O ovo da serpente e o embrião fascista
“O ovo da serpente tem uma característica especial: ele não tem casca, mas sim uma película muito fina e transparente que permita que se veja o embrião se desenvolvendo. O que quero dizer com essa metáfora é que nós estamos vendo o desenvolvimento de um embrião fascista no Brasil. Está em nossas mãos a decisão. Podemos deixar esse embrião crescer, sair desse ovo e amanhã picar o nosso calcanhar, ou podemos esmagá-lo agora. O ovo da serpente permite que vejamos à frente. Estou tentando chamar a atenção, não só da esquerda, mas das forças progressistas e democráticas em geral, para a ameaça de um grave retrocesso político e ideológico no País. Esse retrocesso não se mede apenas pela crise dos partidos, em particular pela crise dos partidos de esquerda e, de modo mais particular ainda, pela crise do PT. Tampouco se mede apenas pela crise do governo Dilma. Ele se mede, fundamentalmente, pela ascensão de uma opinião, que já está se tornando orgânica, de retrocesso conservador.”
“Já há um baluarte institucional perigosíssimo desse processo, que é a Câmara dos Deputados. Eduardo Cunha não foi colocado ali pelo acaso, ele representa um núcleo pensante conservador brasileiro. Esse núcleo, na Câmara, está representado pela chamada bancada BBB, ou seja, os grupos do boi, do agronegócio atrasado, da bala e da Bíblia, que reúne os evangélicos primitivos e midiáticos. Isso tudo se juntou”.
Esquerda não levou a sério o tema da comunicação
“Mas é preciso dizer que a grande responsabilidade por isso é da esquerda e dos nossos governos de centro-esquerda. Há mais de 40 anos, eu e outras pessoas – aqui no Rio Grande do Sul havia uma pessoa que lutava muito por isso, o Daniel Herz – viemos alertando sobre o poder dos meios de comunicação de massa no Brasil, sobre o monopólio da informação e a cartelização das empresas. A esquerda nunca acreditou nisso.”
“A primeira eleição do Lula serviu para mascarar esse problema. Nós metemos na cabeça que essa gente não formava mais opinião. Nos descuidamos e ficamos assistindo à construção de um monopólio ideológico, destilando conservadorismo de manhã, de tarde e de noite. Aqui, não estou me referindo apenas à Rede Globo, ao Globo, Estadão e Folha de São Paulo. Pior do que isso talvez sejam as rádios evangélicas, as rádios AM e FM, despejando diariamente xenofobia, racismo, machismo, homofobia e tudo o que é atrasado. Paralelamente a isso, nós não construímos uma imprensa nossa. E nem estou falando de uma imprensa nossa para falar com a sociedade. Não construímos uma imprensa nossa sequer para falar conosco mesmo. Os militantes do movimento sindical e dos partidos se informam das teses de suas lideranças pela grande imprensa. Nem criamos uma imprensa de massa, nem criamos uma imprensa própria.”
“Nos anos 50 e 60, nós tínhamos O Semanário, que circulava no Brasil inteiro defendendo as teses do Petróleo é Nosso e da Petrobras, tínhamos Novos Rumos, do Partido Comunista, a imprensa sindical e circulava também a Última Hora. Havia, então, um esforço para garantir um mínimo de debate. Isso tudo desapareceu e nada foi colocado no seu lugar. Com a chegada de Lula ao governo, os principais quadros do PT foram transferidos da burocracia partidária para a burocracia estatal e o partido acabou se esfacelando. Os principais quadros do movimento sindical também foram transferidos para os gabinetes da Esplanada”.
“A grande dificuldade que temos hoje para promover a defesa do governo Dilma é que perdemos o diálogo com a massa. Eu conversava dias atrás com uma ex-presidente da UNE e ela me dizia: ‘Professor, como é que eu posso entrar em sala e chamar os estudantes para uma passeata quando o governo está reduzindo as verbas para as bolsas de estudo’. Há um paradoxo entre a nossa política e a nossa base social. A Dilma não foi eleita pela base com a qual está governando. Ela atende os interesses dessa base com a qual está governando e não tem o apoio dela. Por outro lado, ela contraria os interesses da base progressista, a qual nós temos dificuldade de mobilizar para defendê-la. Esse paradoxo precisa ser enfrentado.”
“Não devemos nos iludir com os compromissos democráticos da direita”
“Ninguém deve se iludir com os compromissos democráticos e legalistas da direita brasileira. É uma direita que sempre apelou para o golpe e para o desvio democrático. Está aí a história dos anos 50 e 60 repleta de exemplos disso. Ela não tem compromisso com a democracia. Seu único compromisso é com seus interesses de classe. E, lamentavelmente, parece que a burguesia no Brasil tem mais consciência de classe do que muitos setores proletários.”
“Há um segundo paradoxo, que é difícil explicar a não ser que você use aparelhos ideológicos. Nós já sofremos, de fato, dois golpes nos últimos meses. A direita perdeu as eleições, mas ganhou a política. Esta política econômica que está sendo aplicada é a política da direita. O segundo golpe foi a implantação de uma nova forma de parlamentarismo, que vive de subtrair poderes do Executivo. E há ainda um terceiro golpe em curso que consiste em refazer a Constituição sem ter poder originário para tanto, retirando da Carta de 88 conquistas que levamos décadas para aprovar e consolidar”.
Sobre a construção de uma frente ampla, popular e democrática
“Diante deste cenário, precisamos articular a formação de uma frente ampla, de uma frente popular que reúna os setores progressistas e democráticos do País. Eu não estou falando de uma frente de esquerda, pois com isso estaríamos nos encerrando em um casulo, voltando a ser ostra. Precisamos retomar um discurso para a classe média, que perdemos em função dos desvios éticos do PT. Nós não estamos pagando o preço de erros de governo, mas sim dos desvios éticos. Precisamos retomar um discurso que fale para os trabalhadores, para os setores médios, para as forças progressistas, que não são necessariamente de esquerda, falar com a empresa nacional que, neste momento, está sendo destruída neste País. Há uma tentativa de acabar com as principais empresas brasileiras, detentoras de know how, não por uma questão moral, mas para colocar no lugar delas empresas espanholas, chinesas e americanas.”
“Não estou pensando a constituição desta frente com objetivos imediatos e de caráter eleitoral, mas sim na perspectiva da reconstituição das forças progressistas. O ponto de partida para essas forças é construir uma barragem para conter o avanço do pensamento e da ação da direita. Para isso, precisamos voltar às ruas e voltar a debater com a população. Na minha opinião, o modelo no qual devemos nos inspirar não é o da Frente Ampla uruguaia. Esta tem algo que nós não temos, partidos. É uma frente de partidos. Nós temos que construir uma frente de movimentos, da sociedade, preparada para receber os partidos e oferecer a eles um novo discurso, uma nova alternativa. Mas não trabalho com a ideia de um modelo pronto e acabado. O que vai decidir isso, como sempre, é o processo histórico”.
A ameaça do impeachment
“Irrita-me o fato de nossas forças estarem acuadas por fantasmas. O nosso governo está acuado, enquanto ele tem o que dizer. Em face disso, como não há espaço vazio, a direita vem avançando e preparando ideologicamente a ideia do impeachment. Precisamos por isso a nu e exigir que a direita assuma publicamente se é golpista ou não. O senhor Fernando Henrique Cardoso tem que ser chamado às falas. O PSDB e o PMDB têm que ser questionados a assumir se são golpistas ou não. Creio que a melhor forma de enfrentar a ameaça do impeachment, seja ela pequena ou grande, é dizer que ela existe. Dizer que ela não existe é perigoso. E o objetivo principal nem é mais a Dilma, é o Lula. Querem liquidar o Lula e o PT. Não se iludam. Se isso acontecer, não atingirá só o PT, mas toda a esquerda brasileira. Temos responsabilidades distintas pelo que está acontecendo, mas estamos todos no mesmo barco”.