Especialistas da área jurídica e científica analisam o processo de liberação de organismos geneticamente modificados no Brasil, denunciando possível influência de empresas produtoras
Por Cássia Bittar, no site OAB/ Rj
Foto: Berg Silva
Nos últimos meses, muito se ouviu falar em transgênicos. Conhecidos também pela sigla OGM (organismos geneticamente modificados), esses produtos estão no centro de debates e questionamentos sobre seus riscos e o processo de liberação de sua comercialização no país. A discussão se acentuou em abril, quando foi aprovado, pela Câmara dos Deputados, projeto de lei que modifica o modelo de alerta nos rótulos de mercadorias que tenham em sua composição esses elementos.
Repudiado pela Comissão de Bioética e Biodireito (CBB) da OAB/RJ, que lançou nota no dia 28 de abril com seu posicionamento, o Projeto de Lei 4.148/2008, do deputado federal Luiz Carlos Heinze (PP/RS), busca substituir o símbolo utilizado atualmente em produtos com qualquer percentual de substância transgênica – um triângulo amarelo preenchido por um “T” maiúsculo – pelos dizeres “contém transgênico”, sem determinação do tamanho que esse aviso deve ter. O texto também restringe a necessidade de alerta para produtos em que a substância transgênica supere 1% da composição.
O projeto, que agora corre no Senado, busca assim modificar a Lei de Biossegurança (Lei 11.105/2005), que determina a obrigatoriedade do alerta. Segundo Heinze, na defesa do que propõe, a presença do símbolo teria caráter “amedrontador”, e não informativo.
Porém, de acordo com a análise da CBB, em texto assinado por seu presidente, Bernardo Campinho, pela vice-presidente, Fernanda Bianco, e pelo integrante Gabriel Fernandes, o PL 4148/2008 teria como consequência, na prática, “a comercialização indistinta da larga maioria dos produtos transgênicos e a consequente impossibilidade de livre escolha” pelo consumidor.
“É preciso ter em mente que mais de 90% da soja e 80% do milho produzidos no Brasil são transgênicos. Boa parte dessa produção é destinada à elaboração de rações animais e de alimentos ultraprocessados, como óleos, margarinas, biscoitos etc. Para estes últimos, o processamento industrial inviabiliza a detecção laboratorial da proteína transgênica no produto acabado, daí a importância dessa identificação”, aponta o documento da Ordem.
Na nota, a CBB frisa também que o projeto de lei iria de encontro ao direito à informação e à livre escolha, e afrontaria normas internacionais específicas quanto aos transgênicos, como o Protocolo de Cartagena de Biossegurança da Convenção sobre Diversidade Biológica, ratificado pelo Brasil, que demanda que os países membros adotem medidas para assegurar a identificação de organismos vivos modificados nas importações e exportações, tanto os destinados à alimentação humana, quanto animal.
Em carta destinada à Câmara, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) também se manifestou contra a possível aprovação da não obrigatoriedade da rotulagem com a indicação do “T”. No texto, a entidade ressaltou que a iniciativa do PL “ignora a vontade da população que, em diversas pesquisas de opinião, já declarou querer saber se um alimento contém ou não ingrediente transgênico [74% da população – Ibope, 2001; 71% – Ibope, 2002; 74% – Ibope, 2003; e 70,6% – Iser, 2005]”.
Criada a partir da experiência de famílias de crianças alérgicas que vivenciam diariamente a dificuldade para comprar um produto no mercado com informações sobre todos os ingredientes, a campanha Põe no rótulo, que ganhou repercussão e tem hoje em sua página no Facebook um número superior a 100 mil curtidas, vem, nos últimos tempos, alertando também sobre o avanço do chamado PL da Rotulagem.
“A aprovação da proposta representa um retrocesso em relação a conquistas que o consumidor brasileiro já tinha alcançado. A manutenção da regra que impõe o dever de indicar a presença de ingrediente transgênico com o símbolo garante a possibilidade concreta de escolha de quem não quer consumir produtos geneticamente modificados. Lamentamos pela aprovação na casa iniciadora e queremos acreditar que o Senado analisará o assunto de maneira mais sensata, responsável e atenta à saúde da população. Não se trata de acreditar na tese de proibição do comércio de transgênicos no Brasil, mas, sim, a necessidade de garantir o direito à informação dos consumidores, protegido pela Constituição Federal e pelo Código de Defesa do Consumidor”, declara a advogada Cecília Cury, uma das coordenadoras da campanha.
Processo de aprovação é criticado por advogados e cientistas
O debate em torno dos trangênicos ganhou mais força, também, após a liberação, pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), em 2014, dos polêmicos mosquitos geneticamente modificados, propostos para pesquisa e combate ao vetor da dengue, o Aedes aegypti.
Desenvolvida pela empresa Oxitec e questionada por boa parte das entidades de pesquisa científica quanto a sua eficácia e seus riscos, a “produção” dos mosquitos despertou a atenção para o processo de aprovação de OGM no país, visto que a fábrica estaria instalada desde antes de o projeto passar pela comissão.
A Abrasco, mais uma vez, foi um dos órgãos que se posicionou de forma crítica, lançando nota em seu site com arguições ao processo: “A instalação da fábrica previamente à decisão da CTNBio é surpreendente e pouco usual no ramo dos investimentos. Capital de risco, em geral, se baseia em análises que consideram uma certa impossibilidade de aprovação por parte dos órgãos reguladores do Estado, haja vista estar envolvida uma enfermidade de vigilância epidemiológica”, afirma o texto, completando: “A Abrasco manifesta surpresa e intui que a existência da fábrica, previamente à liberação pela CTNBio, é uma política de fato consumado, e pode ser um elemento de pressão via propaganda e outros junto à opinião pública para uma decisão de aprovação dos membros da comissão”.
Subordinada ao Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), a CTNBio tem, desde a promulgação da Lei de Biossegurança, em 2005, a competência de regular os organismos geneticamente modificados produzidos no país.
Segundo Rubens José Nascimento, assessor técnico da Subcomissão Setorial Permanente de Saúde Humana e Animal do órgão e analista do Ministério da Ciência e Tecnologia, a CTNBio não é responsável pela autorização da comercialização dos organismos no Brasil. “Essa é uma competência exclusiva dos órgãos de registro de cada área”, frisa, informando que a função da comissão é fazer a análise da biossegurança do OGM quanto à novidade genética em relação ao seu respectivo organismo não transgênico.
“A CTNBio dispõe de um conjunto de regras bastante amplo, que detalha as medidas de biossegurança das atividades desenvolvidas no país com organismos geneticamente modificados. Ela acompanha a pesquisa de um produto vegetal ou animal desde os testes em laboratório, passando pelos testes em estufa, e pelos de campo, que irão fornecer os dados sobre a biossegurança do produto quando for solicitada a liberação comercial. No entanto, essa aprovação para uso comercial pode levar décadas. Muitos testes são conduzidos em condições controladas, durante anos seguidos em vários locais diferentes do país até que os proponentes obtenham dados que suportem a segurança do produto”, afirma Nascimento.
Porém, a vice-presidente da CBB, Fernanda Bianco, pondera que, na forma da Lei de Biossegurança, o licenciamento por órgão ou entidade ambiental deveria ser exigido para os casos de liberação comercial quando a CTNBio deliberasse “que o OGM é potencialmente causador de significativa degradação do meio ambiente”, o que, segundo ela, não ocorre na prática.
“O que acontece é que a lei vigente impede qualquer ação dos demais órgãos e entidades da administração pública no que se refere à aprovação de transgênicos, pois restam expressamente vinculados à decisão em última e definitiva instância da CTNBio”, observa Fernanda.
A desembargadora do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3) Consuelo Yoshida, especialista em Direito Ambiental, reforça: “Muitas são as críticas à atual legislação de biossegurança, especialmente no que se refere às amplas atribuições da CTNBio em relação à liberação de transgênicos para as mais diversas atividades. A Lei 11.105/2005 veda, por exemplo, a liberação de OGM ou derivados no meio ambiente para atividade de pesquisa sem a decisão técnica favorável dessa comissão; proíbe a liberação comercial sem parecer técnico favorável da mesma ou sem licenciamento do órgão ambiental quando a CTNBio considerar a atividade como potencialmente causadora de degradação ambiental”, explica ela, apontando: “E é a CTNBio quem delibera, em última e definitiva instância, sobre os casos em que a atividade é potencial ou efetivamente causadora de degradação ambiental, e sobre a necessidade do licenciamento ambiental”.
O grande número de aprovações pela comissão é um dos questionamentos de especialistas, que cogitam a influência de empresas no processo. Membro da CBB e assessor técnico da AS-PTA (Associação de Direito Civil Agricultura Familiar e Agroecologia), Gabriel Fernandes aponta que, nos dez anos de funcionamento da CTNBio em seu atual modelo, não teria negado um único pedido de liberação comercial de OGMs.
“O interesse das empresas foi garantido no momento da aprovação da Lei de Biossegurança. Na legislação anterior, de 1995, a CTNBio estava prevista como uma instância consultiva do governo. A palavra final viria dos órgãos de registro e fiscalização, a Anvisa olhando para as questões de saúde e o Ibama, para as ambientais. Porém, quando a lei foi recriada, em 2005, as empresas conseguiram mudar esse processo porque entendiam que a CTNBio poderia ser um espaço favorável e Ibama e Anvisa seriam mais rigorosos. Elas conseguiram tirá-los da jogada e convenceram os deputados e senadores de que a CTNBio deveria ser um órgão todo-poderoso, com poderes deliberativos. Foi isso que aconteceu”, pondera Fernandes.
Um dos cientistas do quadro atual da comissão, o professor titular da Universidade de São Paulo (USP) Paulo Yoshio Kageyama também vê displicência no processo de aprovação por parte de outros integrantes: “A maior parte da CTNBio é pró-transgênicos. Então, mesmo que eu e alguns colegas façamos críticas a resultados contraditórios de análises que as próprias empresas nos apresentam, perdemos na votação. Os produtos sempre são aprovados”.
Kageyama frisa que seu posicionamento não é contra os OGM: “Como membro da comissão, critico a forma como os produtos nos são apresentados. Não há uma discussão na banca, pois a grande maioria dos cientistas é ligada à área de biotecnologia, e não à de biossegurança. Há apenas a votação, que todos já sabemos como será, prevalecendo os interesses das indústrias produtoras”.
Segundo ele, os riscos do processo se dão também pela liberação dos produtos para pesquisas científicas ser dada somente quando há a aprovação comercial. “Pegando o caso do glifosato [herbicida], por exemplo. Somente após sua liberação os cientistas tiveram material para começar a avaliá-lo. E dez anos depois, com o produto já amplamente utilizado, constatou-se que era cancerígeno. A indústria se aproveita desse modelo”.
Fernanda Bianco acrescenta: “No Brasil, quase todos os estudos considerados para aprovação pela CTNBio são elaborados pelas próprias empresas requerentes, ou foram por elas contratados, e muitas são as críticas sobre sua curta duração ou a metodologia inapropriada. Paralelamente, são inúmeras as pesquisas independentes, inclusive internacionais, que apontam sérios riscos na utilização da tecnologia da forma como atualmente desenvolvida, tanto que, em todo o mundo, há variadas proibições de transgênicos, seja de forma mais específica, seja de modo mais abrangente no determinado país”.
Rubens José Nascimento, por outro lado, destaca a neutralidade na comissão: “Todos os membros devem ter grau acadêmico de doutor, sua atividade no órgão não é remunerada e eles têm suas despesas com transporte e hospedagem pagas pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. As deliberações são tomadas em votações por maioria absoluta dos membros, são necessários 14 votos para aprovar qualquer matéria em pauta”.
Ele ressalta, ainda, que hoje os agricultores investem mais em tecnologias e controles. “Se compararmos a toxicidade do glifosato com outros herbicidas no mercado, constatamos que ele é muito mais seguro do que outros produtos utilizados para a mesma finalidade”, frisa.
A vice-presidente da CBB rebate: “O glifosato, produto químico que responde por cerca de 40% de todo o volume de agrotóxicos usados anualmente no Brasil e se acumula mais nos grãos transgênicos, foi recentemente classificado pela Agência Internacional de Pesquisa sobre o Câncer da Organização Mundial da Saúde (OMS) como possível cancerígeno”.
Já Yoshida cita documento do Instituto Nacional do Câncer (Inca) que destaca que “a liberação do uso de sementes transgênicas no Brasil foi uma das responsáveis por colocar o país no primeiro lugar do ranking de consumo de agrotóxicos, uma vez que o cultivo dessas sementes geneticamente modificadas exigem o uso de grandes quantidades destes produtos”.
Entre as perspectivas para a solução do impasse das discussões, Fernanda destaca uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) distribuída em junho de 2005, que questiona mais de 20 dispositivos da Lei de Biossegurança. “Entretanto, a ADI 3.526, após parecer da Procuradoria Geral da República pelo conhecimento e procedência da ação, permanece à espera de julgamento, estando em fase de conclusão com seu relator, ministro Celso de Mello, desde outubro de 2009”.
Ela conclui: “Indiscutivelmente, nossas denúncias fazem parte de uma luta árdua contra esse caminho em contramão à biossegurança, que, infelizmente, ainda não foi plenamente vencedora, não por falta de mérito ou de direitos, mas porque as forças dos interesses econômicos por trás dos transgênicos são muito fortes”.