Por Rogerio Dultra dos Santos, no blog Democracia e Conjuntura.
O Brasil assiste e executa um processo penal de extermínio. Durante séculos a europa desenvolveu a doutrina da guerra justa, onde o inimigo político era considerado um ser existencialmente igual, mas com opções políticas inconciliáveis. Assim foram os conflitos durante a modernidade política, do século XVI ao século XIX, mediados pelo direito, exercidos dentro de limites compartilhados.
A virada para o século XX ensinou um novo tipo de conflito. A ocupação da África colocou em choque civilizações diversas.
O etnocentrismo europeu viu os povos africanos como pouco “desenvolvidos”, num “estágio” evolutivo “inferior”. Não se tratava mais de iguais em disputa jurídica, mas de gente essencialmente diversa.
A guerra deixou de ser regulamentada, considerada “justa”, e passou a expressar o colonialismo imperialista: o extermínio transformou-se num processo natural de afirmação da superioridade branca e européia.
Este modelo penetrou no direito e fez dos colonizados “criminosos” incapazes de compreender a complexidade de uma civilização que negavam instintivamente. A resposta institucional foi a guerra de extermínio: incapazes de “civilização”, e ao ameaçar a Europa e seu modo de vida restou aos povos colonizados o holocausto.
Este movimento radical de afirmação ideológica e política, expresso inclusive na ciência criminal, implicava numa auto-compreensão de superioridade histórica da burguesia.
Antes, enquanto classe “revolucionária”, vinculada a um discurso de igualdade, esta almejava o controle político-econômico.
Depois da revolução, elite dominante, produziu um discurso de justificação do próprio domínio: a superioridade biológica tornou-se a explicação da hegemonia burguesa. Os que estiveram fora ou os submetidos pelo sistema de produção, os não burgueses, imediatamente foram transformados em “criminosos” – “natos”, “ocasionais”, “habituais”, etc.
O discurso científico e jurídico operou, assim, desde o começo, como um elemento de asserção do poder burguês. E o direito atuou como um componente derivado – porém central – deste processo de natureza fundamentalmente política.
Do movimento de configurar como naturais as diferenças políticas e de classe derivam o direito e o processo penal modernos. Eles funcionam como instrumentos de confirmação da hegemonia econômica burguesa. Daí opera a estrutura flexível do processo penal.
Institutos como a utilização massiva da delação “premiada” e a prisão provisória como estratégia de gestão da prova são fortemente permissivas à ingerência institucional dos órgãos judiciais na direção da criminalização.
Não interessa a estes elementos processuais os “direitos” dos que são pressupostos como maculados pela corrupção, estruturalmente violentos ou criminosos. O juízo precede e mesmo substitui quaisquer fatos. Para as autoridades em guerra, o processo deve funcionar como um remédio necessário e fatal. Não somente revela a verdade do “desviante”, mas estabelece o caminho que lhe dá fim. O processo de extermínio objetiva a “neutralização” definitiva de quem considera a priori criminoso.
Não por acaso, Juízes criminais críticos dos desmandos e da corrupção do devido processo já comparam a “Operação Lava-Jato” à idéia da guerra, visto que a disseminação da lógica da delação faz comuns estratagemas como a barganha, a trapaça e o blefe para enfrentar os “criminalizados” que não respeitam a coisa pública.
Algumas contradições desnudam o caráter político e interessado – e, portanto, nada republicano – destes estratagemas jurídicos.
Um dos acusados mais famosos da “Operação Lava-Jato” faz o que quer com a democracia brasileira, sob encomenda: cada nova delação que realiza atinge mais um novo personagem da trama burlesca do “combate” à “corrupção da política”.
Contra este delator, a sanha moral não prospera na desqualificação: a sua palavra continua sagrada, visto que é a espinha dorsal de todo o processo. Não interessa inclusive se desdiz o que disse, rediz de forma diferente ou inova constantemente nas oitivas.
De outro lado, o condutor do processo passa por uma verdadeira a entronização, uma cerimônia que exalta sua figura e a coloca no centro das expectativas morais e sociais, como um exemplo e guia do que fazer.
O juiz e os procuradores da “lava-jato” não são questionados por vazamentos, declarações fora da legislação da magistratura, prêmios recebidos com regozijo em cadeia nacional de tv, comentários sobre processos em andamento. Eles são celebrados, considerados representantes da elite sã, combatentes da diferença e exterminadores da barbárie.
Percebe-se, no andamento cada vez mais problemático e cada vez menos tranqüilo do processo judicial que esta entronização tem, por um lado, a dinâmica de uma cruzada e, de outro, um caráter fortemente emocional.
O objetivo fundamental deste processo de entronização da “Operação Lava-Jato” pela grande mídia, de comemoração do fim e da limpeza dos corruptos, é a modificação do comportamento dos que celebram a figura exaltada.
O processo penal do extermínio pretende que se deixe de lado os constrangimentos do devido processo, os limites da legalidade e as regras constitucionais para que embarquemos satisfeitos numa aventura processual que extermina reputações sem cerimônia e que impele a democracia brasileira num abismo golpista, prenhe de uma certeza messiânica característica dos fanatismos cegos.
O imperialismo burguês culminou com a solução final, não sem antes se esparramar numa onda de violência e fascismo que dizimou milhões de vidas.
O nosso processo de extermínio quer somente negar a voz das ruas, substituindo o que até hoje define a nossa vida democrática por uma avaliação douta de quem se sente, se vê e é visto como a realização máxima de nossa civilização. Nada mais falso. Nada mais perigoso.