Um dos maiores intelectuais vivos da Europa acusa as lideranças do continente de adotarem políticas antidemocráticas em relação à Grécia.
Ele lembra que a Alemanha sobreviveu à crise pós-guerra com ajuda financeira de outros países e perdão de suas dívidas.
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Publicado no Instituto Humanitas Usininas.
O governo dos banqueiros. Artigo de Jürgen Habermas
“São os cidadãos, não os banqueiros, que têm de dizer a última palavra sobre as questões que afetam o destino europeu”. O comentário é de Jürgen Habermas, filósofo e escritor alemão em artigo publicado no jornal no El País, 28-06-2015. Habermas lembra que “a Alemanha deve o impulso inicial para sua decolagem econômica, do qual ainda se alimenta hoje, à generosidade dos países credores que no Tratado de Londres, de 1954, perdoaram mais ou menos a metade de suas dívidas”.
Segundo ele, “o acordo não está fracassando por causa de alguns bilhões a mais ou a menos, nem por causa de um ou outro imposto, mas unicamente porque os gregos exigem que a economia e a população explorada pelas elites corruptas tenham a possibilidade de voltar a funcionar através da quitação da dívida ou uma medida equivalente, como, por exemplo, uma moratória dos pagamentos vinculada ao crescimento”.
Eis o artigo.
A última sentença do Tribunal de Justiça Europeu [que permite ao Banco Central Europeu (BCE) comprar dívida soberana para combater a crise do euro] lança uma luz prejudicial sobre a falida construção de uma união monetária sem união política. No verão de 2012, todos os cidadãos tiveram que agradecer a Mario Draghi, presidente do BCE, que com uma só frase [“farei o necessário para sustentar o euro”] salvou a moeda das desastrosas consequências de um colapso que parecia iminente. Ele tirou do sufoco o Eurogrupo ao anunciar que, caso fosse preciso, compraria dívida pública em quantidade ilimitada. Draghi teve que dar um passo à frente porque os chefes de Governo eram incapazes de agir pelo interesse comum da Europa; todos estavam hipnotizados, prisioneiros de seus respectivos interesses nacionais.
Naquele momento, os mercados financeiros reagiram – diminuindo a tensão – diante de uma única frase, a frase com a qual o presidente do BCE simulou uma soberania fiscal que absolutamente não possuía. Porque agora, assim como antes, são os bancos centrais dos países-membros os que aprovam os créditos, em última instância. O Tribunal Europeu não pode referendar essa competição contrária ao texto literal dos tratados europeus; mas as consequências de sua sentença deixam implícito que o BCE, com escassas limitações, pode cumprir o papel de credor de última instância.
O tribunal abençoou um ato salvador que não obedece em nada à Constituição, e o Tribunal Constitucional alemão apoiará essa sentença acrescentando as sutilezas às quais estamos acostumados. Alguém poderia estar tentado a afirmar que os guardiões do direito dos tratados europeus se veem obrigados a aplicá-lo, ainda que indiretamente, para mitigar, caso a caso, as consequências indesejadas das falhas de construção da união monetária. Defeitos que só podem ser corrigidos mediante uma reforma das instituições, conforme juristas, cientistas políticos e economistas vêm demonstrando há anos. A união monetária continuará sendo instável enquanto não for complementada pela união bancária, fiscal e econômica. Mas isso significa – se não quisermos declarar abertamente que a democracia é um mero objeto decorativo – que a união monetária deve se desenvolver para se transformar em uma união política. Aqueles acontecimentos dramáticos de 2012 explicam por que Draghi nada contra a corrente de uma política míope – até mesmo insensata, eu diria.
Estamos outra vez em crise com Atenas porque, já em maio de 2010, a chanceler alemã se importava mais com os interesses dos investidores do que com quitar a dívida para sanar a economia grega. Neste momento, evidencia-se outro déficit institucional. O resultado das eleições gregas representa o voto de uma nação que se defende com uma maioria clara contra a tão humilhante e deprimente miséria social da política de austeridade imposta ao país. O próprio sentido do voto não se presta a especulações: a população rejeita a continuação de uma política cujo fracasso as pessoas já sentiram de forma drástica em suas próprias peles. De posse dessa legitimação democrática, o Governo grego tentou induzir uma mudança de políticas na zona do euro. E tropeçou em Bruxelas com os representantes de outros 18 Governos, que justificam sua recusa remetendo friamente a seu próprio mandato democrático.
Recordemos os primeiros encontros, quando os novatos – que se apresentavam de maneira prepotente motivados por sua vitória arrebatadora – ofereciam um grotesco espetáculo de troca de golpes com os residentes, que reagiam em parte de forma paternalista, em parte de forma desdenhosa e rotineira. Ambas as partes insistiam como papagaios que tinham sido autorizadas cada uma por seu respectivo “povo”. A comicidade involuntária desse estreito pensamento nacional-estatal expôs com grande eloquência, diante da opinião pública europeia, aquilo que realmente é necessário: formar uma vontade política comum entre os cidadãos em relação com as transcendentais fraquezas políticas no núcleo europeu.
As negociações para se chegar a um acordo em Bruxelas travam porque ambas as partes culpam a esterilidade de suas conversas não às falhas de construção de procedimentos e instituições, mas sim à má conduta de seus membros. O acordo não está fracassando por causa de alguns bilhões a mais ou a menos, nem por causa de um ou outro imposto, mas unicamente porque os gregos exigem que a economia e a população explorada pelas elites corruptas tenham a possibilidade de voltar a funcionar através da quitação da dívida ou uma medida equivalente, como, por exemplo, uma moratória dos pagamentos vinculada ao crescimento.
Os credores, por outro lado, não cedem no empenho para que se reconheça uma montanha de dívidas que a economia grega jamais poderá saldar. É indiscutível que a quitação da dívida será irremediável, a curto ou a longo prazo. No entanto, os credores insistem no reconhecimento formal de uma carga que, de fato, é impossível de ser paga. Até pouco tempo atrás, eles mantinham inclusive a exigência, literalmente fantástica, de um superávit primário superior a 4%. É verdade que essa demanda foi baixada para 1%, que tampouco é realista. Mas, até o momento, a tentativa de se chegar a um acordo, do qual depende o destino da União Europeia, fracassou por causa da exigência dos credores de sustentar uma ficção.
Naturalmente, os países doadores têm razões políticas para sustentá-la, já que no curto prazo isso permite adiar uma decisão desagradável. Temem, por exemplo, um efeito dominó em outros países devedores. E Angela Merkel também não está segura de sua própria maioria no Bundestag. Mas não há nenhuma dúvida quanto à necessidade de rever uma política equivocada à luz de suas consequências contraproducentes. Por outro lado, também não se pode culpar apenas uma das partes pelo desastre. Não posso julgar se há uma estratégia meditada por trás das manobras táticas do Governo grego, nem o que deve ser atribuído a imposições políticas, à inexperiência ou à incompetência dos negociadores. Essas circunstâncias difíceis não permitem explicar por que o Governo grego faz com que seja difícil até mesmo para seus simpatizantes discernir um rumo em seu comportamento errático.
Não se vê nenhuma tentativa razoável de construir coalizões; não se sabe se os nacionalistas de esquerda têm uma ideia um tanto etnocêntrica da solidariedade e impulsionam a permanência na zona do euro apenas por razões de astúcia, ou se sua perspectiva vai além do Estado-nação. A exigência de quitação da dívida não basta para despertar na parte contrária a confiança de que o novo Governo vá ser diferente, de que atuará com mais energia e responsabilidade do que os Executivos clientelistas aos quais substituiu. Tsipras e o Syriza poderiam ter desenvolvido o programa reformista de um Governo de esquerda e apresentá-lo a seus parceiros de negociação em Bruxelas e Berlim.
A discutível atuação do Governo grego não ameniza nem um pouco o escândalo de que os políticos de Bruxelas e Berlim se negam a tratar seus colegas de Atenas como políticos. Embora tenham a aparência de políticos, eles só falam em sua condição econômica de credores. Essa transformação em zumbis visa a apresentar a prolongada situação de insolvência de um Estado como um caso apolítico próprio do direito civil, algo que poderia levar à apresentação de ações ante um tribunal. Dessa forma, é muito mais fácil negar uma corresponsabilidade política.
Merkel fez o Fundo Monetário Internacional (FMI) embarcar desde o início em suas duvidosas manobras de resgate. O FMI não tem competência sobre as disfunções do sistema financeiro internacional; como terapeuta, vela por sua estabilidade e, portanto, atua no interesse conjunto dos investidores, principalmente dos investidores institucionais. Como integrantes da troika, as instituições europeias também se fundem com esse ator, de tal forma que os políticos, na medida em que atuem nessa função, podem se restringir ao papel de agentes que se regem estritamente por normas e dos quais não se podem exigir responsabilidades.
Essa dissolução da política na conformidade com os mercados pode explicar a falta de vergonha com a qual os representantes do Governo federal alemão, todos eles pessoas sem mácula moral, negam sua corresponsabilidade política nas devastadoras consequências sociais que aceitaram, como líderes de opinião no Conselho Europeu, por causa da imposição de um programa neoliberal de austeridade. O escândalo dentro do escândalo é a cegueira com que o Governo alemão percebe seu papel de liderança. A Alemanha deve o impulso inicial para sua decolagem econômica, do qual ainda se alimenta hoje, à generosidade dos países credores que no Tratado de Londres, de 1954, perdoaram mais ou menos a metade de suas dívidas.
Mas não se trata de um escrúpulo moral, e sim do núcleo político: as elites políticas da Europa não podem continuar se escondendo de seus eleitores, ocultando até mesmo as alternativas ante as quais nos coloca uma união monetária politicamente incompleta. São os cidadãos, não os banqueiros, que têm de dizer a última palavra sobre as questões que afetam o destino europeu.