Wadih e o zeitgeist

(Na foto, Wadih em meio a uma confusão com o deputado Bolsonaro, durante visita às instalações do Doi Codi do Rio, onde se praticava tortura no regime militar)

Wadih Damous: uma entrevista histórica em prol da liberdade, justiça e direitos civis

A entrevista do Brasil 247 com o deputado federal Wadih Damous (PT-RJ) me remete a um livrinho que li recentemente, que traz um debate entre o filósofo Foucault e o linguista Chomsky. O americano é mais sensato, mais racional; Foucault é mais irônico, mais louco. O debate parece ser vencido por Chomsky, por suas posições moderadas, mais presas à realidade. Foucault se agarra a teses mais intrépidas, mesmo que incoerentes, às quais Chomsky demole tranquilamente. Mas uma dessas loucas teses de Foucault parece abalar Chomsky. Foucault questiona a individualidade da inteligência. E se a nossa inteligência for coletiva, arrisca o francês?

Às vezes, quando eu escrevo um texto que as pessoas gostam muito, um dos comentários mais comuns é: “você escreveu exatamente aquilo que eu penso, mas não conseguia expressar!”

É um elogio curioso, que eu sempre encarei de maneira divertida, porque a intenção não era escrever o que os outros pensam, e sim algo diferente, original.

Mas talvez a inteligência tenha mesmo um componente coletivo, de maneira que a gente, sem se dar conta, pense junto com as pessoas ao nosso redor, do nosso país. Isso explicaria muita coisa, a identidade da fruição estética, por exemplo, e inclusive a própria democracia, enquanto filosofia e zeitgeist (espírito do tempo).

A entrevista de Wadih me fez pensar exatamente isso: o deputado expressou o que eu penso, e, suspeito eu, o que muitos leitores também pensam.

Zeitgeist não significa espírito do populacho, nem espírito da mídia, e sim o espírito do que existe de mais forte e mais promissor numa sociedade, ou seja, os pensamentos que, cedo ou tarde, prevalecerão.

Me parece evidente que, apesar da Câmara conservadora, o zeitgeist do Brasil não é Feliciano, não é Bolsonaro, não é Malafaia. Eles refletem um momento, mas seus pensamentos são fracos, porque refletem os vícios de setores populares, não suas virtudes; expressam ignorância, não sabedoria. Expressam velhice, não juventude.

Wadih, não. Suas ideias expressam os setores mais progressistas, avançados, jovens e fortes da sociedade. Ideias que nos aproximam do que existe de moderno nos países desenvolvidos.

Dá um grande alívio saber que há um parlamentar flertando com esse zeitgeist, o qual, no caso do Brasil, é um espírito de liberdade, temperado por firmes preocupações sociais, pois não existe liberdade num mundo selvagem, entregue à lei do mais forte. Para ser justo, Wadih não está sozinho nessa: outros parlamentares, como Jandira Feghali, Jean Wyllys, Paulo Pimenta, Marcelo Freixo, para citar vários partidos, também refletem esse espírito.

Falta mais coragem para lutar por essas ideias, para que elas prevaleçam o quanto antes.

Um trecho da entrevista talvez sintetize tudo isso:

“(…) de fato hoje na esquerda falta coragem. Coragem de afirmar sua pauta, e quando eu falo esquerda estou me referindo mesmo ao PT. Falta coragem. (…) falta efetivamente no campo de esquerda alguém com a postura da coragem e do enfrentamento nesse momento desfavorável.

Durante a campanha presidencial a Luciana Genro (Psol) não ocupou esse papel?

É verdade, mas a Luciana Genro fala de um lugar muito cômodo. Ela não tem maiores pretensões. Quem deveria estar de uma certa forma adotando, recuperando determinadas bandeiras, determinados princípios, é o PT. E isso é que é difícil. Para isso requer-se coragem. Até mesmo pra dizer não ao governo em determinadas ocasiões. A gente não pode ser o partido da linha de transmissão.”

***

Vamos à entrevista. É um pouco longa, mas sugiro fortemente que os leitores a sigam até o final. Não se arrependerão.

No Brasil 247.

DAMOUS AO 247: “MORO SE SENTE SALVADOR DA PÁTRIA”

Empossado recentemente deputado federal, o advogado e ex-presidente da OAB-RJ Wadih Damous (PT-RJ) deu entrevista exclusiva ao 247, em que teceu duras críticas ao juiz Sérgio Moro, a quem chama de “fanático judicial”, e aos procuradores da Operação Lava Jato: “Eles não têm qualquer discernimento quanto à repercussão social de seus atos”; “Em nome do combate à corrupção praticam-se ilegalidades, desrespeitam-se direitos fundamentais”, afirma; Damous ainda faz críticas à “contra-reforma política” em curso no Congresso, diz ficar “impressionado” com os parlamentares do PSDB que sobem à tribuna para falar de corrupção e vê Lula eleito em 2018; leia a íntegra

6 DE JUNHO DE 2015 ÀS 11:43

Por Artur Voltolini, para o 247 – O advogado trabalhista e ex-presidente da OAB do Rio de Janeiro Wadih Damous, 59, recebeu a reportagem do Brasil 247 no último dia 29, duas semanas após ser empossado deputado federal. Damous é o primeiro suplente da coligação do PT no Rio de Janeiro, e assumiu o cargo após o deputado Fabiano Horta ir para a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico Solidário do Rio.

Mestre em Direito Constitucional pela PUC-Rio, Damous inicia seu mandato junto com a votação da reforma política no Congresso. Perguntado sobre ela, a qual chama de “contra-reforma política”, afirma: “É uma vergonha o que está acontecendo no Congresso”.

Damous tece fortes críticas à atuação do juiz Sérgio Moro, a quem chama de “fanático judicial”, e à atuação dos procuradores da Operação Lava Jato: “Eles não têm qualquer discernimento quanto à repercussão social de seus atos como procuradores, como juiz”. Wadih acredita que, para eles, não importa se suas ações quebrem empresas, gerem desemprego, paralisem a economia e desnacionalizem um setor estratégico. O deputado ainda critica os superpoderes do Ministério Público, o que acredita ser um erro da Constituição de 1988.

Wadih Damous está certo que Lula se elege para o terceiro mandato como presidente da República em 2018, mesmo sem aliança com o PMDB, e defende que, em 2016, o PT lance candidatura própria para disputar a prefeitura do Rio de Janeiro.

Leia abaixo à entrevista na íntegra.

Quais estão sendo as primeiras impressões do Congresso por um advogado garantista?

Eu percebi que ali quem tem a pauta é Eduardo Cunha [presidente da Câmara], é ele quem tem clareza do que vai ao plenário. E não estou fazendo um elogio não. O que eu vejo lá é um nível político muito rebaixado. As bancadas são eleitas pelo dinheiro. O Dr. Ulisses Guimarães sempre dizia, quando alguém criticava o Congresso: “Você não viu o próximo”. Bom, eu não vi os anteriores, estou vende esse, e estou com uma impressão muito ruim. Acho que essa é a composição mais conservadora e de rebaixado nível político que eu tenho notícia.

O que o senhor quer dizer com “rebaixado nível político”? É falta de preparo intelectual?

Eu não acho que o parlamentar necessariamente tenha que ter conhecimento de ciência política, ou conhecimento especializado nisso ou naquilo. Ele tem que ter discernimento e espírito público para saber o que está fazendo ali, do ponto de vista do interesse público. Cuidar do aperfeiçoamento da legislação, de cumprir aquilo que está previsto na Constituição em relação às atribuições do Congresso Nacional, em particular da Câmara dos Deputados. É neste sentido que eu vejo falta de preparo político. Não é falta de preparo intelectual, de preparo técnico.

Não seria um preparo específico para uma política mais patrimonialista, focada na proteção de certos interesses?

Esse é o Congresso hoje.

Não vejo falta de preparo, eles não estão ali exatamente preparados para isso?

Por esse lado sim. Ali de fato não se tem organicidade, não se tem um projeto. Os debates são sempre na base de quem é corrupto ou quem não é corrupto. Não se discute projeto, não se discute uma visão de país. É assim que eu vejo a Câmara dos Deputados hoje.

É engraçado ver corruptos notórios entre os arautos do combate à corrupção.

Se for pegar a folha corrida, você verá que nenhum deles tem lastro moral para apontar o dedo para outro e dizer que é corrupto.

Eu fico impressionado com os parlamentares do PSDB que sobem à tribuna para falar de corrupção, se esquecendo que a reeleição, que acaba de ser revogada na Câmara, nasceu de um processo de corrupção, de acusação de compra de votos para a reeleição do Fernando Henrique Cardoso. Denúncias que até hoje não foram apuradas. Na época, havia um procurador-geral da República que, coincidentemente ou não, tinha o apelidado de “engavetador geral da República”, chamado Geraldo Brindeiro. Enfim, é isso que eu chamo de rebaixamento do nível político.

As privatizações também não foram devidamente investigadas.

A chamada Privataria. O que se lê a respeito diz que foi um amplo processo de corrupção. E isso é esquecido na hora de se apontar o dedo para os outros.

Ao mesmo tempo, não podemos dizer que o PT, tanto como partido quanto como governo, não participou de certas práticas que são condenáveis.

Olha, o PT… Um dos pilares de fundação do PT foi a visão de que ele era um partido diferente, que não se pautaria pelas práticas dos partidos tradicionais. Sobretudo práticas de corrupção, práticas patrimonialistas. O PT não tinha o direito de, em nome da governabilidade, adotar certas práticas. Não estou dizendo que são práticas de corrupção, isso é algo que tem que ser apurado no devido processo legal, e quem praticou corrupção deve responder nos termos da lei. Mas desde que apurado no devido processo legal, não apurado numa manchete de jornal.

Ainda que se chegue ao final de todas essas histórias, e se chegue à conclusão de que não houve prática de corrupção, ainda assim o PT errou politicamente porque entrou num jogo de barganha, entrou num jogo de negociação, que em nome da governabilidade acabou maculando a imagem do partido, e acabou facilitando o trabalho de seus inimigos no sentido de pregar a pecha de corrupção na testa do partido.

O grande problema é que fica muito difícil apurar, tanto no escândalo chamado mensalão, como agora no escândalo da Petrobras, o que é verdade ou o que é mentira. O que é apuração de fato ou o que é escândalo fabricado. Porque virou um circo midiático de tal monta, de tal magnitude, que mesmo aqueles – e estou me colocando nesse campo –, que têm o mínimo de conhecimento jurídico, o mínimo de conhecimento de como são os processos judiciais, têm dificuldade em distinguir quem é culpado de quem é inocente, quem praticou e quem não praticou corrupção.

A ministra Rosa Weber não disse num voto: “não tenho provas, mas posso te prender”?

Foi um voto preparado pelo juiz Sergio Moro, que era o assessor da ministra Rosa Weber.

Como era exatamente a frase célebre?

“A doutrina jurídica me ensina que eu posso condenar sem provas”. Quando a doutrina jurídica ensina exatamente o contrário, só se pode condenar com provas.

A Globo News parou sua programação regular e ficou a passar horas do julgamento ao vivo.

O Brasil é o único país do mundo em que um julgamento penal é divulgado ao vivo. Não há essa hipótese em qualquer país do mundo.

De quem foi essa ideia?

Foi o ministro Marco Aurélio, quando estava na interinidade da presidência da República, quem criou o televisionamento direto das sessões do plenário.

Foi parte do jogo de forças políticas entre os três poderes, para fortalecer o STF?

Eu presumo que não. Não estou na mente do ministro Marco Aurélio para saber, mas sempre se acusou o Poder Judiciário de ser pouco transparente, um poder fechado e avesso à publicidade dos seus atos. Presumo que o ministro Marco Aurélio, quando idealizou isso, tivesse pensando em termos democráticos, de dar mais transparência. Coisa que até concordo em partes. Mas uma ação penal não pode ser transmitida, nem ao vivo nem filmada. Acredito que nisso deveríamos imitar outros países, como a Alemanha e a França. São famosas na corte americana aquelas aquarelas feitas por desenhistas autorizados, da casa, é o máximo que pode acontecer. Há países como a Alemanha em que só se divulga o nome de um acusado depois que ele é condenado e da sentença transitada em julgado. Até então os jornais não podem divulgar o nome do acusado. Aqui no Brasil não se preserva ninguém, aqui a regra é o linchamento.

Os vazamentos seletivos da Polícia Federal na Operação Lava Jato constituem crime?

Sim, mas não sei se foi a Polícia Federal, o Ministério Público ou talvez o próprio juiz Sérgio Moro, isso deveria ser investigado.

Investigados por quem?

Se é a Polícia Federal, deveria- se abrir inquérito no Ministério da Justiça para apurar o vazamento. Se for juiz, deve-se ir ao Conselho Nacional de Justiça e abrir investigação. E se for o Ministério Público, a investigação é do Conselho Nacional do Ministério Público.

Eu não vejo pessoas ou entidades lutando por essa investigação, nem o nosso ministro da Justiça.

Acho que alguns desvios de conduta, alguns expedientes que são ilegais, estão se transformando em praxe. O excepcional está se tornando regra. É isso o que está acontecendo no Brasil ultimamente.

O senhor foi presidente da Comissão da Verdade no Rio de janeiro. Há relação entre nosso problema de memória em relação à ditadura militar com práticas arbitrárias que existem hoje, tanto nas favelas com os mandados coletivos de busca quanto com a negação de habeas corpus aos executivos investigados pela Lava Jato?

Em relação ao que acontece nos bairros pobres e nas favelas, há práticas que não foi a ditadura quem inventou. Essa questão do mandado de busca e apreensão coletivos não foi a ditadura quem inventou, foi o Poder Judiciário de hoje. Às vezes nós praticamos, e falo de forma jocosa e irônica, injustiças contra a ditadura. Porque na nossa cabeça não passa que uma democracia possa gerar e praticar atos que são próprios exatamente de regimes arbitrários. Mas isso aí, por exemplo, é uma criação da nossa democracia. O Amarildo não desapareceu na ditadura, desapareceu dentro de um regime democrático. Nós temos que ter isso em mente pra entender que a nossa democracia precisa de um aperfeiçoamento radical. Ela guarda elementos autoritários muito preocupantes.

O senhor poderia citar outros?

A tortura. Ela não foi inventada pela ditadura, a polícia sempre torturou. A tortura acontecia antes da ditadura, durante a ditadura e depois da ditadura. Durante a ditadura, houve uma nova clientela da tortura, que eram os guerrilheiros oriundos da classe média, estudantes, de família até abastadas, mas que como resolveram combater o regime da época, entraram no couro, entraram no pau de arara. Mas sobre as classes populares sempre houve tortura, e continua a haver. Nessa hora em que estamos conversando aqui alguém está sendo torturado.

Voltando à questão das cidades e favelas, da criminalidade urbana. Para se combater essa criminalidade cometem-se outro crimes. A polícia, os agentes da repressão praticam crimes em nome do combate ao crime. Da mesma forma que em nome do combate à corrupção praticam-se ilegalidades, desrespeitam-se direitos fundamentais, num vale-tudo porque está se combatendo a corrupção. É o que o aconteceu na Ação Penal 470 e o que está acontecendo agora na Operação Lava Jato. O combate à corrupção deve acontecer, e quem praticou corrupção deve responder nos termos da lei. Mas a apuração deve se dar também nos termos da lei.

Agora, em relação a esses julgamentos midiáticos, Lava a Jato e etc., o que está acontecendo é que o juiz que comanda o inquérito é um cruzado, ele se sente um salvador da pátria. Ele age como um justiceiro, um acusador, não como um magistrado, da mesma forma como o ministro Joaquim Barbosa agiu na Ação Penal 470. Barbosa anteriormente foi membro do Ministério Público.

Esse juiz Sérgio Moro tem traços de uma espécie nova de fanatismo que está surgindo, o fanatismo judicial, que foi criado pelo ministro Joaquim Barbosa. ‘Sou cruzado. Eu vou resolver essa mazela que é a corrupção. Está nas minhas mãos resolver isso’. Ele tem todo o viés do acusador. A defesa não tem voz nem vez num inquérito do juiz Sergio Moro. Os jornais não divulgam a palavra da defesa. Os procurados posam na Folha de S. Paulo de intocáveis.

A Operação Lava Jato pode estar sendo utilizada pra tentar quebrar a infraestrutura do país? Uma tentativa de paralisar a economia e fragilizar o governo?

Não creio que tanto o juiz Sérgio Moro quanto esses rapazes procuradores tenham projeto de derrubar ou desestabilizar o governo. Se sinceramente for isso, eles não podem ocupar cargo público.

Eu acho apenas que eles não se incomodam, eles não têm qualquer discernimento quanto à repercussão social de seus atos como procurador, como juiz. Não querem saber, eles pensam assim: ‘Não tem que acolher acordo de leniência e ponto. Se isso vai causar desemprego, se isso vai causar crise, se isso vai quebrar empresas, dane-se. Eu estou agindo na forma da lei. Essas empresas são organizações criminosas e devem arcar com os ônus disso’. Não creio que seja um programa de derrubar o governo Dilma, ou de desestabilizar o governo a partir do Judiciário ou do Ministério Público. Acho até pior não refletir sobre qual será a repercussão social do que se está fazendo, de não pensar em que forma nós podemos mitigar os danos que essas empresas causaram. Isso é pior que ter má fé em relação à investigação.

Sem acordo de leniência, as empreiteiras serão impedidas de entrar em processos de licitação?

Abrirá espaço pra empresas estrangeiras. Será a desnacionalização de um setor estratégico da economia nacional.

Eles não têm noção disso?

Eles estão se lixando para isso. Mas se tudo fizer parte de um projeto, se a história mostra que era isso, eles têm que sentar no banco dos réus.

De onde veio esse poder dos procuradores?

Todas as constituições pós ditadura, pós regime autoritários, dão uma virada democrática muitas vezes exacerbada. O Ministério Público é um monstro institucional, é o Ministério Público mais poderoso do mundo. E os procuradores ganharam uma autonomia tal que não precisam dar satisfações ao procurador-geral. Esses meninos lá do Paraná fazem o que bem entendem e o Janot assiste.

É preciso uma reforma que retire poderes do Ministério Público, deve-se delimitar os poderes de um procurador, ele tem que prestar satisfação ao procurador-geral. Eles não podem ter essa autonomia exacerbada a ponto de paralisar a economia de um país. É um absurdo, mas isso é em decorrência de uma distorção que está na Constituição de 1988. Não é à toa que o ex-procurador-geral e ex-ministro do STF Sepúlveda Pertence outro dia desabafou: “Eu ajudei a criar um monstro”, ou seja, o Ministério Público.

Os procuradores, na investigação e abertura de inquérito, eles têm uma autonomia exacerbada, eles podem abrir uma investigação sem consultar ninguém, às vezes sem base nenhuma. O procurador-geral é um cargo político, ele tem que aprovar as investigações.

O senhor concorda com a afirmação de que nunca se investigou tanto a corrupção na história desse país?

Olha, na ditadura, que foi um regime absolutamente corrupto, ao contrário do que alguns imbecis, ou desavisados… Há imbecis que são velhos o suficiente pra saber que quando vão para a rua com cartaz pedindo intervenção militar, a volta à ditadura e etc., estão agindo de má fé porque sabem que havia corrupção na ditadura. Agora a imprensa não podia divulgar porque estava sob censura. O poder judiciário não julgava porque estava manietado, o Ministério Público ou era cúmplice ou também estava manietado. Mas havia corrupção. No governo Fernando Henrique Cardoso havia muita corrupção, no entanto, o Ministério Público não estava aparelhado tecnologicamente, e não havia a disposição de investigar.

O Ministério Público é hoje mais independente com o respeito à indicação da corporação na lista tríplice?

Essa bobagem foi uma invenção do PT. O presidente da República tem que nomear quem ele entender que deva nomear. O chefe do Ministério Público não é sindicalista nem presidente de sindicato. O procurador-geral da República tem atribuições extracorporativas, então essa história de prestigiar a escolha da corporação é uma tolice. E tive a oportunidade de dizer isso ao presidente Lula, disse, com muito respeito, mas disse.

Qual foi a reação?

Ele riu. O presidente Lula é um democrata, e recebe críticas, formuladas respeitosamente, muito bem.

O maior erro dele foi a indicação de Joaquim Barbosa para o STF?

Eu acho que os governos do PT não entendiam ou continuam não entendendo o que é o Poder Judiciário. Os critérios que devem ser obedecidos em primeiro lugar são os que estão na Constituição: notável saber jurídico e reputação ilibada. Ao obedecer esses critérios, a escolha deve ser feita por quem melhor se adéqua ao meu governo. Assim é nos Estados Unidos. Não há lá a possibilidade de um presidente republicano indicar um democrata, e um democrata indicar um republicano. E isso não torna o indicado o indicado, o nomeado, parcial. O presidente Roosevelt tinha o programa do New Deal, com programas sociais e programas de combate ao racismo. A Suprema Corte era um obstáculo. Só que o presidente Roosevelt ficou quatro mandatos, e assim teve a oportunidade de montar uma Suprema Corte de acordo com o programa do partido democrata. Não há nisso crime, e não há nisso desonestidade, e não se pode dizer que esses ministros sejam parciais. Alguém acusa a Suprema Corte americana de ser aparelhada?

O que o senhor pensa da recém-aprovada PEC da Bengala?

Isso é uma teratologia! Uma monstruosidade. É outro problema do atual Congresso Nacional: o casuísmo agora está atingindo a Constituição. Casuísmo atingindo a lei ordinária sempre foi um expediente de vez em quando utilizado por determinadas maiorias do Congresso Nacional. Hoje esse casuísmo está sendo utilizado para modificar a Constituição. A PEC da Bengala é um exemplo, a redução da maioridade penal é outro. Assim como a tentativa de reeleição beneficiando os atuais presidentes da Câmara e do Senado, e por aí vai.

O senhor assumiu seu mandato bem no início da votação da reforma política. Sendo mestre em direito constitucional, como o senhor viu a proposta da presidente Dilma Rousseff de uma constituinte específica para a reforma política?

O que se passou pela cabeça da presidente Dilma é absolutamente compreensível: ‘Esse Congresso não vai fazer reforma política que preste, então vamos convocar uma constituinte’. E a vida está dando razão a ela. Tecnicamente falando, ela seria de duvidosa constitucionalidade, e inócua, porque de qualquer maneira a proposta teria que passar pelo Congresso Nacional. Acredito que a bandeira da constituinte para fazer a reforma política tenha mais um caráter moral do que propriamente um caráter de eficácia, de possibilidade. Só vai haver constituinte no Brasil quando houver ruptura do regime. A abertura das constituintes vêm seguindo às rupturas. O que foi a constituinte de 1988? Foi a constituinte após a ditadura, para promulgar uma constituição que superasse o período autoritário, que superasse a ditadura. É muito difícil uma constituinte derivada pra fazer modificações tão profundos na vida pública. Teria que haver um consenso na sociedade e em torno das forças políticas pra que isso acontecesse.

Esse Congresso é capaz de fazer uma reforma política?

Não está havendo reforma política nenhuma, o que está em curso no Congresso hoje é uma contra-reforma política. É uma vergonha o que está acontecendo por lá. Foi uma vergonha o presidente da Câmara conseguir reaglutinar uma maioria para desfazer o que havia sido acordado na noite anterior.

Qual seria a reforma política que o senhor defende?

A principal medida é acabar com a dinheirama nas campanhas eleitorais, e acabar com as doações de empresa. Esse seria o primeiro item. E a partir daí é aperfeiçoar os sistemas eleitorais.

O PT acabou de proibir as doações empresariais. Se elas não forem aprovada na reforma política, o partido não vai entrar nas campanhas de 2016 com um caixa muito menor?

Eu acho que essa declaração foi precipitada. Há determinadas coisas que, se você falar apenas para dar satisfação, se não for fruto de planejamento, fruto de uma discussão interna aprofundada, pode te acabar levando a dar um passo político errado.

Poderia ter sido o resultado de um processo de ampla discussão. Deveriam ter aguardado o processo da reforma politica no Congresso Nacional para depois se manifestar.

O senhor recebeu dinheiro de empresas em sua campanha?

Não. Mas se alguma empresa tivesse doado para mim, isso necessariamente configuraria crime? Não? Porque é legal. Hoje em dia é legal empresas doarem para candidatos. Agora isso, tendo em vista toda a nossa história política, tendo em vista esse quadro do Congresso Nacional, isso é desejado? Não. Por isso nós combatemos o financiamento empresarial. Há candidatos que receberam limpamente o dinheiro de empresas. Eu não quis porque eu tinha condições, minha campanha foi sustentada por mim e pela generosidade de colegas advogados.

O senhor é a favor do voto facultativo?

Doutrinariamente sou a favor. No mundo ideal, onde todos os cidadãos são conscientes de seus direitos e obrigações, onde todos os cidadãos têm compromisso com o país. Os cidadãos nesse mundo ideal também teriam direito de irem ou não votar.

Agora, num contexto em que a política está criminalizada, em que no imaginário da população ser político é sinônimo de ser bandido, de ser ladrão, em que a grande mídia contribui decisivamente para a criminalização da política, vem o Congresso e estabelece o voto facultativo? Isso será a consolidação do processo de deslegitimação da representação, sobretudo parlamentar. Qual é o cidadão que vai querer sair de casa para votar em bandidos? Já que essa é a tese que domina hoje. O índice de abstenção, que já é alto, seria muito maior e teríamos governos em parlamentos considerados ilegítimos.

Um dos argumentos a favor do facultativo é que ele poderia reduzir o chamado voto de protesto, que já ajudou a eleger Tiririca e Enéas. Também poderia inibir a escolha do candidato pelas cores do santinho jogado no chão da Zona Eleitoral…

E não gosto de estigmatizar ninguém. Acho que o voto no Tiririca pode ter sido de protesto, mas também foi um voto de convencimento. Um voto da consciência que as pessoas têm.

Por conta disso, sem perceber, estamos tendo uma visão elitista da política, e isso pode nos levar a correr o risco de decidir quem deve votar ou não. Um voto censitário, onde só podem votar os bem preparados. Não é isso. O presidente Lula é um grande exemplo, não tem instrução formal e tem uma inteligência invulgar, tem um discernimento para a politica que beira a genialidade. Quantos Lulas não devem existir por aí também? Eu acho que o que deve ser aperfeiçoado é o nosso sistema político de representação e o fim do financiamento empresarial.

E das eleições gerais?

Eu tendo a ser contra, mas ainda está sendo discutido na bancada. Apenas uma eleição você colocar para o eleitor a possibilidade de votar para presidente da República, senador, governador, prefeito, deputado federal, deputado estadual e vereador? Sinceramente, eu não sei como seria a qualidade desse voto, e não sei se esse é o melhor caminho. Mas eu não tenho uma opinião formada, tenho muitas dúvidas.

Reeleição?

Eu votei pelo fim da reeleição. Doutrinariamente eu acho perfeitamente cabível a reeleição. As principais democracias do mundo têm reeleição sem qualquer problema. Mas existe um clamor como esse processo de criminalização da política. Mas nesse tema é o cinismo do PSDB que me chama a atenção. A reeleição foi introduzida pelo PSDB, num processo que já discutimos aqui qual foi, com compra de votos. E agora o PSDB quer capitanear o processo de fim da reeleição?

Seria medo de que Lula fique mais oito anos na presidência?

Acho que não é medo do presidente Lula. Ele já teve dois mandatos, e terá certamente um terceiro em 2018. Até acredito que ele gostaria que existissem novas lideranças no PT, mas às vezes o processo histórico não é como a gente quer que seja. O presidente Lula vai cumprir o seu papel e vai se eleger em 2018. Vai fazer um grande governo novamente e com certeza vai ajudar na criação de novas lideranças no PT.

No Maranhão o governador Flavio Dino (PCdoB) teve que construir uma ampla rede de apoios para tirar a família Sarney do poder. Seu vice é do PSDB, e a militância do PT, embora o partido tenha apoiado formalmente Lobão Filho (PMDB), trabalhou intensamente em sua campanha. Aqui no Rio está se formando uma aliança de esquerda em torno do Marcelo Freixo (Psol). Parte do PT fluminense tem simpatia por essa aliança, enquanto o presidente do PT fluminense, Washington Quaquá, quer fechar com Pedro Paulo (PMDB). Como o senhor se coloca?

Flavio Dino é um querido amigo. No Maranhão, de fato, houve essa concentração de forças, mas era ele quem organizava o agrupamento. O governador Flavio Dino não está a reboque de sua coalizão, ele a comanda. Quem dá as cartas lá não é o PSDB, é o agrupamento político do governador Flavio Dino, há que se marcar isso.

Aqui no Rio acredito que o PT deve pensar em candidatura própria. Pode ser o caso de, mais à frente, afunilar uma outra candidatura progressista de esquerda, que seja o Marcelo Freixo, que seja outro, é caso a se ver. Mas essa parte do PT que critica a aliança com o PMDB quer ficar a reboque de outra?

O PT tem que pensar em candidatura própria. Se isso se mostrar inviável, ou se isso contribuir para a vitória de um candidato conservador, de direita, aí sim pensa-se em apoios e alianças, mesmo que ainda no primeiro turno, ainda tem muita água para rolar. O PT não deve, a princípio, ser uma força satélite de outra candidatura.

Me diga, o que houve com o PT fluminense?

Na verdade o PT – isso ele tem em comum com o PSDB –, com todo o respeito aos paulistas e paulistanos, o PT foi um partido hegemonizado pelos paulistas desde a fundação. O presidente Lula, embora do Nordeste, fez sua trajetória política em São Paulo. Os principais quadros nacionais do partido eram de São Paulo. E o Rio de Janeiro, assim como outros estados, era vítima desse “paulicentrismo”. Várias vezes o Diretório Nacional interveio aqui. Nós queríamos uma candidatura própria, e o Diretório Nacional nos impondo alianças, como foi com o Garotinho. Isso contribui para que o PT do Rio não consiga se afirmar como uma força política hegemônica na cidade e no estado. Eu acho que o PT no Rio de Janeiro tem uma história muito importante. Hoje estamos numa conjuntura antipetista muito acentuada, mas o PT do Rio deve procurar se afirmar por seus modos e meios.

O espaço deixado pelo PT no Rio está sendo ocupado pelo Psol?

O Psol tem excelentes parlamentares: o Chico Alencar, o Jean Wyllys, o Marcelo Freixo. Não se pode negar. Eles acabaram ocupando o espaço da juventude, que hoje tem muita restrições ao PT, e com razão. Acredito que está na hora de tentar recuperar nossa imagem com a juventude. É hora de o PT recuperar aquelas pessoas que não vão bater panelas nas varandas da Zona Sul do Rio nem nos Jardins em São Paulo, mas que também não vão a manifestações do PT. Está na hora de recuperar essas pessoas, elas foram desencantadas com o PT e com a política. E com toda a razão.

Não seria um reflexo de ser governo?

É verdade. Todos os partidos populares, até mesmo o bolchevique, que era um partido revolucionário, quando chegou ao poder teve problemas dessa ordem. Enfim, governar. O pragmatismo de governar e a opção de manter princípios, manter valores. Isso é da arte da política. Acho que o PT deu uma guinada muito forte no pragmatismo, e acabou por se confundir com os partidos tradicionais que ele tanto combatia na época da fundação. Então está na hora de recuperar algumas bandeiras.

E romper com o PMDB?

Acho que nós temos que ter isso em permanente avaliação.

Se houver o rompimento com O PMDB o partido não racha? Tem uma parte que certamente não quer sair do governo.

Eu acho que pra 2018 vai ser muito difícil manter essa aliança com o PMDB.

Mas o apoio de Quaquá a Pedro Paulo já não é pensando em 2018?

A política tem uma dinâmica própria, o que é válido pra 2016 pode não ser válido pra 2018.

O jornalista Breno Altman escreveu que falta na esquerda personagens “da estirpe” de Eduardo Cunha. “Ele é implacável. Não se preocupa com a imagem ao defender ideias nas quais acredita. Enfrenta adversários até levá-los à derrota ou à capitulação incondicional”. O senhor concorda?

Não li o texto, ele deve estar sendo irônico. Mas de fato hoje na esquerda falta coragem. Coragem de afirmar sua pauta, e quando eu falo esquerda estou me referindo mesmo ao PT. Falta coragem. A ousadia que esse Eduardo Cunha tem. Claro que sua ousadia é aquela que contorna a Constituição, contorna determinados princípios e valores que nós nunca deveremos contornar. Se formos pela linha radical “falta Eduardo Cunha na esquerda”, nós vamos acabar chancelando o pragmatismo exacerbado que o PT adotou pra poder governar. Então não é exatamente assim, mas falta efetivamente no campo de esquerda alguém com a postura da coragem e do enfrentamento nesse momento desfavorável.

Durante a campanha presidencial a Luciana Genro (Psol) não ocupou esse papel?

É verdade, mas a Luciana Genro fala de um lugar muito cômodo. Ela não tem maiores pretensões. Quem deveria estar de uma certa forma adotando, recuperando determinadas bandeiras, determinados princípios, é o PT. E isso é que é difícil. Para isso requer-se coragem. Até mesmo pra dizer não ao governo em determinadas ocasiões. A gente não pode ser o partido da linha de transmissão.

O senhor vai dedicar seu mandato à defesa dos direitos individuais?

Meus anos de OAB podem ter me moldado nesse sentido. Vou ser um advogado no Congresso, no sentido de defender a ordem jurídica do Estado democrático de direito, que no meu ponto de vista está sob ameaça. E não por parte das forças armadas, está sob ameaça de alguns setores do poder judicial, de setores do Ministério Público. São órgãos do Estado que estão exacerbando suas atribuições. Sou um militante dos direitos humanos, e vou continuar a empunhar suas bandeiras. Não sou um militante LGBT, não sou um militante negro, não sou militante religioso. Sou militante do plano dos direitos, vou combater a intolerância religiosa, sobretudo em defesa das religiões de matriz afro-brasileiras, vou defender o Estado laico, vou combater qualquer forma de discriminação. Há uma bancada conservadora que deve ser enfrentada.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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