Resposta a Vladimir Aras e à sua defesa da delação premiada

O procurador Vladimir Aras, um dos cérebros dessa onda de conspirações judiciais que aflige o Brasil há alguns anos, não dá ponto sem nó.

A Lava Jato entrou em sua fase final. A decisão do presidente da UTC, Ricardo Pessoa, de assinar um acordo de delação premiada com a Procuradoria Geral da República, é o seu último golpe.

Depois de mantê-lo preso por mais de seis meses, chantageando-o de todas as formas, a conspiração midiático-judicial aplicou a tortura final em Pessoa: vazou um de seus depoimentos que sequer havia sido assinado. E vazou daquele jeito, manipulado, sem fornecer vídeo, áudio ou transcrição. A mídia já vinha ameaçando Pessoa há tempos, e ele é o alvo principal da chantagem penal de Moro, porque acusado de ser “chefe do cartel”, uma acusação meio ridícula porque há outras empreiteiras bem maiores que a UTC, que evidentemente não aceitariam ser “chefiadas” por uma empresa menor.

Mas a acusação serve para aterrorizar Pessoa, cujos advogados já entenderam que o Judiciário brasileiro, quando inicia esses circos midiáticos, é capaz de qualquer coisa: vale tudo para condenar. Juiz e procuradores manipulam o processo de todas as formas, escondem documentos dos advogados, ou lhes entregam poucas horas antes do prazo final para apresentarem suas defesas.

No depoimento de Pessoa “vazado” pela imprensa encontra-se o que a Procuradoria achava ser o golpe final contra o governo: Pessoa diz que doou à campanha de Dilma por temer retaliações. O vazamento virou capa da Folha.

Muita gente, como o jornalista Ricardo Kostcho e o humorista Laerte, se manifestaram em relação à essa capa e a esse depoimento. As pessoas já sacaram qual é a jogada suja dos procuradores e da mídia.

Não é difícil imaginar que não só o depoimento de Pessoa foi distorcido, como o próprio depoimento tem toda a cara de ter sido manipulado desde a fase do interrogatório.

Ora, “temer represálias” é a delação mais esfarrapada da história: o tipo de resposta que apenas se dá se o procurador ou delegado faz uma pergunta capciosa, induzindo a pessoa a responder deste ou daquele jeito.

Por acaso Pessoa sabia que Dilma iria ganhar? E por que doou também para a oposição?

Eu falava em Vladimir Aras no início do post. O procurador publicou esta semana um post em seu blog, reproduzido pelo Nassif, com o objetivo de assegurar apoio à última bala no cartucho da Lava Jato: a delação premiada de Ricardo Pessoa.

Então Aras fez um post defendendo a instituição da delação premiada.

Esse é um debate interessante, e precisa ser colocado nas redes, até porque falta o contraditório. A grande mídia apoia entusiasticamente a delação premiada por casuísmo, porque no momento exerce o controle da narrativa dos escândalos. E lhe ajuda a vender notícias e prestígio, na medida em que há uma lamentável promiscuidade entre os aparelhos repressores e uma imprensa cada vez mais partidarizada.

A foto dos procuradores na capa da Folha, posando de “intocáveis”, representou a imagem símbolo de uma era de conspirações midiático-judiciais.

Se o controle lhes fugisse das mãos, e houvesse “delações premiadas” a granel contra tucanos e barões de mídia, a sua opinião mudaria rapidamente e a mídia faria uma grande campanha contra a ilegalidade da instituição. Leríamos artigos brilhantes de juristas, filósofos e jornalistas sobre os aspectos antiéticos da delação premiada.

Mas vamos ao artigo de Aras. Peço licença ao nobre procurador para discordar de suas opiniões. Peço perdão pelo método que usarei, de intercalar respostas ao texto. É um método que às vezes falha por se prestar a descontextualizações, e por isso devemos ter cuidado. Mas ele tem a vantagem de nos guiar dialeticamente através do texto a que se pretende responder. É mais fácil para quem responde. Os meus comentários virão entre colchetes e em negrito.

*

No blog do Nassif.

Sobre a ética da delação premiada e o peso das palavras do delator, por Vladimir Aras
QUA, 13/05/2015 – 11:43

Por Vladimir Aras

Primeira crítica ao instituto: a colaboração premiada é antiética

No Blog do Vlad

Entre as críticas ao instituto da colaboração premiada, há reflexões sérias, preocupações legítimas e também um certo exagero retórico, oco e sem sentido. Abaixo estão listadas as dez objeções mais comuns ao instituto. Procuraremos rebatê-las com argumentos jurídicos e no plano dos fatos. Vejamos quais são elas.

[Começou bem, dizendo que há reflexões sérias e preocupações legítimas entre as críticas ao instituto de delação premiada. Gostaria que posicionasse a minha crítica neste universo, e não entre o “exagero retórico, oco e sem sentido”.]

A primeira: a colaboração premiada é antiética. De que ética tratamos? Quem a define? Tem-se como referência a ética do conjunto da sociedade ou a ética das associações criminosas?

Se a esta última se referem os críticos, a resposta é sim, a colaboração premiada é antiética porque fere os deveres de lealdade e de silêncio, mafioso (omertà) ou não, que existem entre delinquentes. Falar demais e “entregar o jogo” é ruim para os negócios. É péssimo para negociatas. Em algumas organizações criminosas, a pena por esse agir “antiético” é a morte.

[Assim que inicia sua argumentação, porém, o autor se perde. A lealdade é uma virtude, ponto. Se os bandidos a exercem, não deixa de ser uma virtude por causa disso. Bandidos também são capazes de amar, por exemplo, e isso não torna o amor um vício. Ao longo de todo o texto, Aras ajuda a provar uma suspeita que eu tinha: a procuradoria pública, ou pelo menos uma corrente importante, vem deturpando o papel que a Constituição cidadã de 88 lhe outorgou. Em nossa Constituição, a função do procurador não é mais o de acusar, e sim o de defensor da lei. Existe uma diferença filosófica profunda. O cidadão não é acusado pelo procurador, e sim pela lei. A lei não tem preferências partidárias, não tem paixões políticas, não tem subjetividade. O procurador tem. E muita. Sabemos que muitos procuradores são profundamente politizados, em alguns casos no mau sentido, de tentarem usar o cargo que ocupam para fins partidários e políticos. Por isso mesmo, para evitar esse perigo, e proteger tanto o cidadão contra uma perseguição antidemocrática do Estado quanto o procurador da tentação autoritária, a Constituição definiu que o papel do procurador é defender a lei.

Essa confusão é que faz Vladimir Aras cometer um erro filosófico crasso, que é criminalizar a lealdade. É com esse tipo de mentalidade que a procuradoria vem fazendo o jogo midiático de criminalizar a política, que também é baseada na lealdade.

O problema dos procuradores que se acham muito cultos é, em geral, a deficiência de cultura humanista. É muito fácil compreender e amar os homens enquanto eles só praticam o bem e não saem da linha. Mas a vida não é assim. Para isso serve a arte, para nos fazer compreender também os vícios do homem. Se a minha mulher, num acesso de loucura, roubar uma roupa numa loja, ela é uma criminosa. O procurador advoga que eu deveria delatá-la?

Além do mais, a fala do procurador cheira a hipocrisia e farisaísmo. Juízes e procuradores são humanos e cometem erros o tempo inteiro. Seus colegam os delatam, por acaso?

O problema do crime é uma tragédia sem fim. Pensar que um ser humano é capaz de roubar, matar e trair seus semelhantes é algo que sempre nos deprime, sobretudo porque isso nos obriga a adotar medidas violentas, como a de julgar um semelhante e, em alguns casos, trancafiá-lo numa masmorra, dando a nossos irmãos um tratamento que hoje em dia não aprovamos nem para animais.

A “delação premiada” implica em perverter ainda mais um cidadão já corrompido: além de ladrão, assassino ou corrupto, ele também será um delator. Mas desenvolveremos melhor esse raciocínio mais adiante. Voltemos ao texto de Aras.]

Porém, se tivermos em mira a ética da sociedade em geral, veremos que não há vício moral algum em colaborar com o Estado para a punição de criminosos, a prevenção ou a elucidação de crimes, a salvação da vida de pessoas sequestradas ou a devolução de dinheiros subtraídos da Nação. É isto o que se espera de uma sociedade equilibrada: que seus integrantes cooperem uns com os outros.

[Certo. Mas aí devemos fazer uma distinção. Uma coisa é o criminoso ajudar a polícia a encontrar uma pessoa sequestrada, ou ajudar o Estado a recuperar uma quantia subtraída num processo de corrupção. É evidente que o criminoso que colabora com o Estado deve receber um tratamento mais benigno. Mas não há necessidade de “delação premiada” para isso. Se eu cometo um crime e me entrego voluntariamente à delegacia, eu sei que terei um tratamento melhor do que se não o fizesse. Não me entrego, porém, pensando em nenhum “prêmio”. Os criminosos que ajudam o Estado devem colaborar com essa mentalidade. Ao instituir um “prêmio”, o processo se corrompe, porque o delator passa a ver a sua colaboração como mais um negócio, mais uma negociata, e usará a delação conforme seus interesses. ]

Para avançar no exame do aspecto ético da delação premiada, precisamos apenas perceber “para onde” olhamos, isto é, em que momento do tempo fixamos nosso olhar. O colaborador é um traidor, é o que dizem os defensores da ética criminosa. “Lá em casa, não deduramos ninguém”… Como se essa autorreferência pueril pudesse servir de modelo para resolver todas as intrincadas questões de segurança pública e de persecução criminal que afligem o meio social e que se relacionam a direitos difusos e a direitos fundamentais de acusados e vítimas.

[Não é uma referência pueril. Novamente, Aras desmerece a virtude da lealdade. Deveria ouvir mais Bezerra da Silva e suas inúmeras canções exaltando a lealdade e condenando a delação. Bezerra era defensor da ética da máfia, da omertá? Não. O criminoso tem inúmeros e infinitos vícios, mas a lealdade é uma de suas poucas virtudes. Virtude que é usada, como todas as virtudes, também em favor do mal. A destreza mental, a inteligência, a cultura, também podem ser usadas em favor do mal, mas isso não significa que deixem de ser virtudes. ]

Qual a “traição” original cometida pelo colaborador (se é que esta existe)? O que vem primeiro: a traição da confiança de seu cúmplice? Ou a traição do criminoso (agora colaborador) para com seus concidadãos, especialmente sua(s) vítima(s)?

[Aras comete um erro grosseiro, que é simplificar a vida. O que caracteriza uma filosofia penal democrática e humanista é a individualização dos casos. Se eu sou um terrorista e sei que o meu cúmplice vai explodir uma bomba amanhã em tal lugar, matando tantas pessoas, então eu tenho obrigação moral de delatá-lo. Mas aí a questão não é a delação, e sim o crime de permitir que haja uma matança.

Reitero: o criminoso deveria estar disposto a colaborar com o Estado para receber um tratamento melhor, e não de olho num prêmio. ]

Por outro lado, por que seria antiético tomar a palavra de uma pessoa contra a outra e confirmá-la com documentos apreendidos, obtidos ou localizados graças a sua colaboração? Não é exatamente isto o que ocorre quando tomamos o depoimento de uma testemunha “Fulano“ contra o réu “Beltrano”? Acaso é (anti)ético “falar mal dos outros” ou contar em juízo aquilo que só nós sabemos? A testemunha no processo penal também não seria um alcagüete?

[Outro erro crasso de Aras, que é apelar para um sofismo barato. Ou seja, subestimou o leitor. A testemunha de um processo penal não espera receber nenhum “prêmio”. Seu objetivo principal não é delatar ninguém, e sim ajudar a sociedade a saber a verdade sobre um determinado ilícito. Ela também não está sob chantagem do Estado, de ter que delatar ou ser presa. A parte em que Aras questiona se é antiético “falar mal dos outros” é positivamente hilária. Mas não creio que isso tenha alguma importância aqui. O que se discute é a validade ética de conceder “prêmio” para criminosos.]

Doravante, abdicaremos do uso de testemunhas porque não é “ético” forçar uma pessoa (é disso que se trata a tomada de um depoimento sob compromisso legal de dizer a verdade) a comparecer em juízo e contar tudo o que sabe sobre as malfeitorias de outrem? Não seria também antiético, de parte do Estado, impor esse dever a uma pessoa e não a proteger de eventuais e quase certas represálias da pessoa acusada nesse depoimento?

[Aras volta a sofismar miseravelmente, ao tentar comparar um depoente qualquer a um “delator premiado”. Em primeiro lugar, um depoente qualquer não tem qualquer obrigação de falar nada: não receberá nenhum “prêmio” nem está em situação de coação penal, ou seja, não pesa sobre a sua cabeça a espada de Dâmocles de uma prisão preventiva que, no Brasil, foi transformada em moderno instrumento de tortura.]

Toda testemunha é delatora. Todo colaborador é, em sentido lato, uma testemunha. Ambos têm deveres de veracidade, embora, em regra, a primeira seja desinteressada no resultado do processo penal, e o segundo seja uma parte com interesse no resultado jurídico-penal de seu agir.

[O artigo desaba completamente ao afirmar que “toda testemunha é delatora”. É uma profunda agressão à inteligência e a esta instituição tão nobre que chamamos linguagem, a qual estabelece nomes diferentes para coisas diferentes. É triste que um procurador, um defensor da lei, alguém que deveria prestar lealdade ao valor sagrado do verbo constitucional, ofenda de maneira tão rude uma palavra e um conceito. As palavras têm peso legal, histórico e literário. Por isso existem livros sagrados, constituições e poemas. A palavra testemunha vem do latim, testis, da mesma raíz de “terceiro”, porque a testemunha seria a terceira pessoa que poderia descrever os fatos com maior isenção do que os que estavam diretamente envolvidos na disputa judicial. Uma testemunha pode salvar uma pessoa de uma condenação injusta, o que aliás é a sua função mais nobre. A testemunha pode, portanto, ser um defensor. Já um delator vem do latim “delatio”, que significa acusação, denúncia. Ao contrário da testemunha, o delator nunca defende ninguém. Só acusa. Além disso, a palavra delator tem um peso histórico, muito antigo e muito negativo. Judas Iscariotes, que entregou Jesus, foi um delator, não uma testemunha. Joaquim Silvério, que entregou Tiradentes, foi um delator, não uma testemunha. Todos eles visaram um “prêmio” e se tornaram símbolos de mau caratismo. ]

Se a testemunha (em sentido estrito) falta com a verdade ou cala o que sabe, comete falso testemunho, crime previsto no art. 342 do Código Penal. Já se o colaborador mente contra outrem, imputando-lhe falsamente conduta criminosa, a pretexto de colaboração com a Justiça, também comete um crime, o de delação caluniosa, previsto no art. 19 da Lei 12.850/2013.

[Sim, mas esse é exatamente o problema. O Ministério Público brasileiro tem abusado das delações de maneira absurdamente leviana, sem se importar em nada com casos de “delação caluniosa”. Os delatores simplesmente não são punidos. No caso Lava Jato, que é do que se trata aqui, os depoimentos dos delatores são contraditórios entre si, os delatores são pegos sistematicamente em contradição consigo mesmos, e mesmo assim sua palavra continua valendo para a justiça. Mais: os delatores se converteram em figuras públicas, cujas delações, antes mesmo de serem provadas, influenciam o debate público, político e eleitoral. O próprio Aras, num evento recente, admitiu que Youssef mentiu na sua primeira delação premiada. E aí? Aconteceu alguma coisa? Não. Quer dizer, aconteceu sim. Youssef não apenas mentiu como manipulou a delação premiada para destruir seus concorrentes e emergir como o maior doleiro do país. Ou seja, ganhou dinheiro com a delação premiada. Há pelo menos um “delator” que denunciou existir, na 2ª Vara Criminal Federal de Curitiba, onde atuava e atua Sergio Moro, e Vladimir Aras, uma “indústria da delação premiada”. A imprensa nunca investigou essa denúncia, e Aras, a meu ver, teria de ser responsabilizado de alguma maneira pelo que aconteceu: deixou que Youssef voltasse a delinquir e a corromper.]

O réu colaborador é, nesse sentido, equiparável a uma testemunha, com uma notável diferença: seu depoimento vale muito pouco, porque sempre interessado. O que vale nas declarações do colaborador é o mapeamento do esquema por ele exposto, a indicação da trilha, da pista, do norte, enfim, o que importa é o que se tira de concreto do seu depoimento, e não as palavras mesmas do colaborador. Declaração de réu colocador sem corroboração documental, pericial ou de outra ordem não vale para nada, muito menos para condenar alguém. É fofoca ou maledicência. E, se for mentira, é crime.

[Ao dizer que o depoimento do réu colaborador “vale muito pouco, porque sempre interessado”, Aras deixa escapar uma contradição e uma hipocrisia. As delações de Youssef e Paulo Roberto Costa foram a principal prova para o Ministério Público pedir a prisão preventiva dos empreiteiros. Isso não é valer pouco. No julgamento do mensalão, o texto de acusação da Procuradoria Geral da República, escrito com auxílio de Aras, alçou a palavra de Roberto Jefferson à condição de principal prova de todo o processo, tanto que a condenação de Dirceu teve que se valer do conceito do “domínio do fato”. Isso é valer “muito pouco”? E tudo isso começou no Ministério Publico. Portanto, não venha dizer que o depoimento do réu colaborador “vale muito pouco”.

Além disso, temos aí uma incomensurável hipocrisia, já que Aras finge ignorar o mais importante: a condenação política e midiática. Desde que o depoimento do delator é vazado para a mídia, a condenação real, a condenação humana, emocional, psicológica, política, dos réus, se dá muito antes da conclusão do processo penal. Em função de uma delação que “vale muito pouco”, o sujeito se torna um pária antes que tenha qualquer direito à defesa. Isso é valer “muito pouco”?]

Advogado ético não é aquele que, por mera solidariedade profissional ou coleguismo, recusa-se a negociar acordo de colaboração premiada para seu cliente, a fim de evitar prejuízo a teses jurídicas de outros advogados que defendem corréus em situação vulnerável pelo acordo. Bom advogado é aquele que melhora as chances exoneratórias de seu cliente ou diminui seus riscos penais, na forma da lei, usando todas as teses e mecanismos juridicamente possíveis, ainda que para isto tenha de orientá-lo a expor antigos cúmplices, dificultando, por tabela, a vida de seus patronos em juízo.

[Se o advogado entender que delação premiada não é um procedimento ético, então que se lhe respeite a opinião. Ética é uma posição subjetiva e individual. Aras não tem nenhuma prerrogativa para decidir que advogados são éticos ou não.]

O colaborador não é estimulado a mentir em razão do acordo. Ao contrário: a lei exige que ele seja veraz[1]. A lei não exige que ele cometa crimes. Ao revés: estimula a que não os cometa mais. A colaboração não incentiva o réu à traição de comparsas criminosos. Pelo contrário: a norma instiga o colaborador a romper laços deletérios com pessoas entregues à delinquência e a interromper relacionamentos viciosos, com vistas à sua própria reinserção social, às vezes fora das grades.

[Desculpe, procurador, mas é mentira. O colaborador tem sido estimulado a falar qualquer coisa. Pior, há um constrangimento brutal dos réus, através do uso da prisão preventiva como tortura. Os próprios procuradores publicaram artigo defendendo isso, que a prisão seja usada como coação para a delação premiada. A frase: “a lei não exige que ele cometa crimes” consuma a sucessão de platitudes desse artigo. O problema do instituto de delação premiada é, sobretudo, a enorme margem para manobras e manipulações, através de vazamentos seletivos à imprensa, a qual, por sua vez, destaca este ou aquele trecho, conforme seus interesses. A primeira delação premiada de Youssef, por exemplo, da qual Aras participou, teve como resultado o contrário de tudo que o procurador fala agora: Youssef ampliou seus “laços deletérios com pessoas entregues à delinquência”, e não interrompeu seus “relacionamento viciosos”. Ao contrário, conforme os próprios autos do atual processo confirmam, Youssef usou a sua primeira delação premiada para esmagar a sua concorrência e emergir como principal doleiro do país. Essa foi a “reinserção social” de Youssef.]

Um último comentário neste item. Condutas verdadeiramente antiéticas pululam no foro criminal. A colaboração premiada não é uma delas. Citemos quatro que inegavelmente o são: a combinação de teses para iludir os juízes em detrimento das vítimas; a preparação de testemunhas para mentirem em juízo; a ocultação de provas que aproveitem a defesa; ou o recebimento de honorários pagos por clientes sem fontes lícitas de renda. O crime compensa?

[É opinião do procurador. A delação premiada é, sim, um procedimento antiético, sobretudo pela maneira como ele é manipulado por procuradores, que se portam como aliados da mídia numa operação que, apesar de parecer tão importante na luta contra a corrupção (e talvez seja mesmo, após suas perigosas contingências políticas desaparecerem com o tempo), tornou-se uma odiosa conspiração judicial, uma parceria entre mais um juiz submetido à lógica dos holofotes globais, procuradores movidos por uma paixão acusatória antidemocrática, e uma mídia desesperada para repôr no poder seus lobistas de sempre, os que lhe permitirão sobreviver por mais tempo numa era em que as novas tecnologias devoram, diariamente, suas entranhas. ]

[1] Segundo o artigo 4º, §14 da Lei, o colaborador está sujeito ao compromisso legal de dizer a verdade.

O procurador da República Vladimir Aras é soteropolitano, nascido em 1971, mestre em Direito Público pela UFPE, professor assistente de Processo Penal da UFBA e membro do Ministério Público Federal. Atuou no caso Banestado, entre outros.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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