Em Numero Zero, novo romance de Umberto Eco, um dos personagens ensina como inserir a opinião política do jornalista dentro da notícia, sem que o leitor se aperceba. Basta entrevistar duas pessoas com opiniões diferentes. Para a opinião da qual você discorda, use um entrevistado de baixa qualidade, ou pegue uma frase tola. Em seguida, faça uma entrevista consistente com a pessoa com a qual você concorda. Pronto. Você posará de imparcial e terá expresso a sua opinião.
No caso da imprensa brasileira, eles sequer têm esse escrúpulo. Entrevistam apenas a pessoa que tem a opinião do jornal e ponto final.
Um exemplo é a matéria publicada na Folha, de hoje, reproduzida abaixo.
A reportagem integra a incansável rotina da grande imprensa de mostrar o Brasil à beira da ruína econômica. Se agiam assim quando a economia brasileira batia recordes de crescimento, ao fim do governo Lula, agora estão mais felizes do que pinto no lixo, diante das dificuldades passageiras enfrentadas pelo país.
Dê uma olhada na matéria. Eu volto em seguida.
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País regride em avanço do poder de compra
ÉRICA FRAGA, DE SÃO PAULO
04/05/2015 02h00
O Brasil voltou a ficar estagnado na sua trajetória rumo ao desenvolvimento econômico, na contramão de um grupo de países emergentes de diferentes regiões que continua avançando para um nível de renda mais elevado, como Chile, Uruguai, Coreia, Taiwan, Polônia e Estônia.
O aparente fim do ciclo de alta dos preços das matérias-primas -carro-chefe das exportações brasileiras-, aliado à falta de reformas que poderiam aumentar o ritmo de crescimento, dificulta a retomada do desenvolvimento brasileiro.
O poder aquisitivo do brasileiro como fatia da renda americana -referência para comparações globais- começou a se recuperar em meados da década passada. Em 2011, chegou ao patamar de 30% pela primeira vez desde o fim da década de 1980.
Depois de três anos nesse nível, no entanto, a proporção voltou a recuar levemente em 2014, para 29,5%.
Os cálculos foram feitos com base em dados do PIB (Produto Interno Bruto) per capita dos países, expresso em Paridade do Poder de Compra (PPC), divulgado em abril pelo FMI (Fundo Monetário Internacional). Essa medida é comumente usada para comparar o poder aquisitivo médio de diferentes nações.
Um país consegue se desenvolver à medida que a sua renda média se aproxima do patamar de países ricos.
Esse processo, chamado de convergência econômica, ocorre em etapas. A primeira é a transição de um nível de renda baixo para médio. A seguinte, bem mais difícil de ser atingida, é a evolução para um patamar de renda alto.
A transformação do Brasil em um país de renda média ganhou fôlego entre as décadas de 1950 e 1970, embalada pela urbanização e pelo surgimento da indústria básica.
“O crescimento inicial é mais fácil. Você consegue evoluir acumulando capital. Mas, depois, o retorno sobre esse capital decresce e outras fontes são necessárias”, afirma Filipe Campante, professor de políticas
públicas da universidade Harvard.
Em 1980, a renda per capita brasileira medida em PPC chegou a equivaler a 38% da norte-americana.
MUDANÇA
Com a crise econômica dos anos 1980, o processo de convergência sofreu um revés que se estendeu até meados da década passada, quando teve início uma modesta recuperação, abortada com a perda de fôlego do crescimento nos últimos três anos.
“A convergência da renda brasileira para o nível americano aumentou nos anos 2000 graças ao boom das commodities”, afirma Robert Wood, analista sênior da consultoria EIU (Economist Intelligence Unit).
Segundo o economista Otaviano Canuto, consultor do Banco Mundial, a transição para um nível de renda alto depende, principalmente, da adoção de um conjunto de normas na economia que sejam favoráveis ao desenvolvimento de capital humano e tecnológico.
“Nesses quesitos, o Brasil e parte da América Latina pararam no tempo”, afirma.
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Voltei.
Nunca li um texto mais idiota na minha vida. Falar em “renda média” no Brasil, sem mencionar, nem que fosse “en passant”, a desigualdade social (até há pouco a maior do mundo), é um atentado terrorista à inteligência humana.
Repare que a reportagem exalta a renda per capita de 1980, que teria chegado a 38% da americana.
Que cinismo!
Ora, em 1980, estávamos iniciando um dos períodos mais trágicos da nossa história, quando a inflação explodiria a níveis completamente descontrolados. O repique inflacionário de hoje não corresponde nem a um centésimo do que foi naquela época.
Desemprego, dívida externa, fome, miséria, um país sem obras de infra-estrutura, sem plano de crédito popular, sem programas sociais, sem futuro.
A matéria estende as considerações neoliberais para toda a América Latina, que viveu, nos últimos 15 anos, uma das maiores revoluções sociais da história da humanidade, com a emergência de dezenas de milhões de pessoas à um padrão de consumo melhor.
Esses cálculos de poder de compra, lastreados no dólar, me parecem totalmente anacrônicos. O percentual de brasileiros que viajam ao exterior hoje é infinitamente maior do que antes. Os aeroportos estão lotados. Nova York, Miami, Paris, Buenos Aires, foram invadidas por turistas brasileiros, que são os que mais compram.
Nunca se vendeu tanto carro, casa própria, eletrodomésticos, no Brasil como nos últimos dez anos.
Como assim o poder de compra estagnou-se?
A matéria da Folha é um engodo, e uma prova de que, com um pouco de criatividade e entrevistando-se as pessoas certas, pode-se fazer o que quiser com estatísticas.
E ainda deixei de lado qualquer observação sobre o título grotesco: “país regride em avanço”… Regride em avanço?