Todos querem bater na Petrobrás

Georg Baselitz


 

Depois de contemplar por quase duas semanas aquele exemplar da Piauí sobre o móvel da sala, resolvi folheá-lo pela segunda vez.

Eu poderia gostar da Piauí.

Não fosse o seu tom, como descreve um amigo escritor, de revista de banqueiros feita para banqueiros (o dono dela é o João Salles, um dos herdeiros do Itaú-Unibanco), não fosse aquela insuportável arrogância paulista que engordura suas páginas, seria uma leitura bem mais agradável.

Mas ninguém é perfeito, nem revistas, e os textos da Piauí são escritos com uma elegância aristocrática que nos acaricia o ego, mesmo que, no caso de um jacobino, seja uma carícia clandestina, quase subversiva.

A Piauí cultiva a vaidade mais poderosa num cidadão culto: a de comungar junto a um pequeno grupo de iniciados. É a mesma vaidade que nos leva a ler até o fim (ou pelo menos se esforçar duramente) os livros de Luiz Ruffato, experimentando as mais atrozes dores do tédio.

Escapei há anos desse mundinho abafado e sufocante dos literatos de segundo caderno, o que significa que a Piauí não me engana mais.

No entanto, às vezes ela aparece em casa, por conta do trabalho da minha esposa, e não vejo mal em dar uma olhada para ver se encontro alguma coisa interessante.

Enfim, na edição de março (número 102), há uma matéria de Daniela Pinheiro sobre a Petrobrás, de seis páginas, intitulada Outra história americana. O subtítulo: “Como a Petrobrás negociou pagar quase seis vezes mais por uma área de exploração de petróleo e gás nos Estados Unidos”.

É a matéria principal de capa.

Na capa, o título é: Padrão Petrobrás: o que uma operação malograda nos Estados Unidos ensina sobre os negócios da estatal.

Resolvi ler, embora já antevendo que poderia estragar meu bom humor matinal, um estado de espírito que venho cultivando na proporção inversa com que me interesso pelas novas polêmicas da grande mídia.

Quase estragou. O que me faz lembrar, pela milionésima vez, a razão que me leva a ter um blog: para não desenvolver úlceras.

É uma matéria bem escrita e detalhista, como todas de Daniela Pinheiro, repórter fixa da Piauí.

(Pinheiro esteve em meu apartamento, na Lapa, em 2010, entrevistando-me para uma reportagem eleitoral sobre blogueiros e tuiteiros políticos. Conversamos por mais de uma hora. Tagarela insanável que sou, contei-lhe a história da minha vida. Ela admitiu, não sei se sinceramente, que gostava do meu trabalho, mas parecia não entender do que eu vivia. Na época, nem eu sabia como eu vivia. Eu fazia bicos para todo lado, e jejuava. Meu blog ainda não era o Cafezinho, mas o Óleo do Diabo, que tinha também assinantes e alguns doadores eventuais. Lembro-me de que, perto de nos despedirmos, ela já se encaminhando à porta, eu lhe disse, num rasgo de orgulho viril, que tirava uns 2 ou 3 mil reais por mês do blog. Foi meio patético aquilo. Ela não me citou na matéria.)

Bem, voltando à matéria sobre a Petrobrás, é uma dessas reportagens que explicam porque a Piauí nunca será uma New Yorker: parece que todo empreendimento cultural no Brasil, se quiser conquistar as agências de publicidade e os leitores cult das grandes capitais, precisa posar de caderno B da imprensa tucana.

Falta originalidade e coragem.

Se a moda é bater na Petrobrás, a turminha toda vem dançar de mãos dadas.

A matéria de Pinheiro é um exemplo: uma denúncia de um negócio que não aconteceu.

Com tantos escândalos dando sopa por aí, a Piauí deu capa para uma matéria sobre o nada.

Em resumo, é o seguinte: uma empresa americana, chamada West Hawk Energy, sediada nos Estados Unidos, tentou vender à Petrobrás o direito de explorar gás na bacia de Piceance, noroeste dos EUA, em meio às Montanhas Rochosas. Só que a área pertencia mesmo à Encana Oil & Gas. A West Hawk, descreve a reportagem, tentou uma malandragem. A Petrobrás pagaria 273 milhões de dólares, dos quais a West Hawk repassaria menos de 50 milhões à Encana.

A matéria dá a entender que houve um ensaio de fraude contra os interesses da Petrobrás.

O negócio não foi para frente porque um dos advogados americanos contratados pela Petrobrás contou tudo a diretoria da estatal. E a operação foi cancelada.

Onde vejo problema na matéria?

Onde eu vejo contaminação política?

Em primeiro lugar, é meio forçação de barra dar capa de revista à uma denúncia de um negócio que não aconteceu. Além disso, há inúmeros elementos que a repórter não apurou.

O negócio seria revisado e analisado por outras instâncias, antes de ser aprovado? Provavelmente sim.

Uma empresa do porte da Petrobrás deve receber dezenas de propostas de negócio por semana, e suponho que nem todas sejam viáveis ou idôneas.

Mas o que estraga mesmo a reportagem, ou melhor, o que entrega o seu objetivo, que é apenas participar, à sua maneira, do bullying midiático que se tenta inflingir à estatal, é que a repórter, após ter feito a “denúncia” (ainda sem informar que o negócio não seria fechado), tenta inventar um “padrão”:

“O caso evoca um padrão, um modus operandi, uma similaridade inconteste com o ocorrido pouco tempo antes. Havia menos de dois anos, a Petrobrás finalizara a compra da refinaria de Pasadena, no Texas – uma operação na qual a estatal desembolsou 1,8 bilhão de dólares por uma sucata negociada um ano antes por 42 milhões de dólares. Um prejuízo de quase 700 milhões de dólares para a empresa. ”

Esse é o trecho onde a Piauí rasga a fantasia de revista cult e aparece a velha e caquética mídia de guerra.

O parágrafo é mentiroso do início ao fim.

Primeiramente, os exemplos não tem nenhuma “similaridade”, quanto mais “inconteste” (um adjetivo que, aqui, tem como única função reforçar a arrogância paulistona que é o estilo da revista).

Não evoca nenhum padrão, nem nenhum modus operandi.

Nem Petrobrás pagou 1,8 bilhão de dólares pela refinaria de Pasadena, nem a Astra pagou somente 42 milhões pela mesma refinaria um ano antes.

A refinaria de Pasadena não é uma “sucata”, como a ela se refere, raivosamente, a até então elegante Daniela Pinheiro. É uma refinaria moderna, que processa de 100 a 120 mil barris/dia, localizada no ponto mais estratégico dos EUA, no meio do corredor petrolífero de Houston, a apenas alguns quilômetros das novas e enormes jazidas de petróleo de xisto.

A Petrobrás pagou menos de 500 milhões para adquirir 100% da refinaria. O resto do dinheiro inclui os custos judiciais e as garantias bancárias pagos pela Petrobrás para ser a dona completa do negócio. No total, foram gastos 1,18 bilhão. Não 1,8 bilhão.

A história de que a Astra pagou somente 42 milhões por Pasadena é outra balela, uma mentira que a mídia martelou por meses a fio, e que uma repórter tão detalhista como Pinheiro deveria, no mínimo, questionar.

Afinal, na mesma época, qualquer refinaria do mesmo porte custava dez, vinte vezes, esse valor. Por que a Astra pagaria tão pouco?

Os 42 milhões pagos pela Astra foram apenas a conclusão final do processo de aquisição de Pasadena. A Astra vinha comprando de Pasadena há alguns anos, e a negociação se dava na compra dos estoques, nos empréstimos, nas garantias bancárias, pagos pela Astra para salvar Pasadena, que até então pertencia a um empresário em dificuldade financeira, cheio de dívidas tributárias e trabalhistas, e que provavelmente não queria revelar, nem ao Tio Sam nem aos trabalhadores para quem devia dinheiro, o valor real que obteria da venda de suas instalações. Nem ele nem a Astra, por razões tributárias similares.

Pinheiro vai além, e cita uma conta de padaria que a Morgan Stanley fez para estimar os desvios da Petrobrás, segundo a qual, estes poderiam chegar perto de R$ 21 bilhões.

É obviamente apenas um exercício estatístico da Stanley, sem nenhum valor contábil. O ministério público federal do Paraná, para efeito de comparação, estimou os desvios apurados na Lava Jato em torno de R$ 2 bilhões, e também ainda não provou nada.

A Morgan Stanley pegou a delação de Paulo Roberto Costa, que falou em comissões de até 3% nos negócios de fornecedores com a estatal, e calculou os prejuízos à Petrobrás de R$ 5 bilhões a R$ 21 bilhões. A mídia brasileira fixou-se, naturalmente, no número máximo. E Pinheiro o usa na matéria como se a Morgan Stanley tivesse feito uma detalhada “auditoria” dos negócios da estatal. Não fez. Era apenas um exercício, muito vagabundo por sinal, correspondente a um intervalo de tempo, por incrível que pareça, indeterminado (ou que pelo menos não é informado, nem pela Piauí, nem por fonte nenhuma).

Esses erros, leviandades típicas de uma Veja, envenenam toda a matéria de capa da Piauí, que emerge como uma versão cult da mesma imprensa mentirosa e histericamente partidária da qual – em nome da minha saúde mental – venho tentando fugir.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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