Hora de virar o disco


 

Bem, peço desculpas pelo mau humor do último post.

Foi um dia péssimo.

Política pede calma e sangue frio, duas coisas que talvez andem faltando à minha análise.

Li outro dia, num blog, uma entrevista com um jurista que fala sobre a influência das emoções no trabalho de juízes.

“O juiz penal, embora não seja inerte, é imparcial — ao menos em tese. A gente sabe que não existe imparcialidade. Nós inventamos que ele é imparcial. É coisa nenhuma. Ele depende até mesmo do estado de humor, se trepou com a mulher na noite anterior etc. Você acorda bem, acorda mal, acorda deprimido, impressionado. O juiz acorda assim.”

Se um juiz age assim, o que dirá um blogueiro político, cujo trabalho lida com questões às vezes puramente subjetivas, as quais precisa expressar apelando para ferramentas quase literárias?

Não tem jeito. É preciso manter o coração tranquilo e o espírito firme, e vice versa.

Há um tempo que venho lendo (já comecei, parei, recomecei, diversas vezes) um romance de Anatole France, intitulado Les Dieux ont soif, Os Deuses têm sede.

É a história do terror na revolução francesa.

Uma denúncia contra a violência revolucionária, mas feita por alguém com uma grande compreensão do que estava em jogo ali.

A luta entre milhares de anos de tradição e preconceitos e um presente que não pedia para nascer: simplesmente nascia, brutal, faminto, irreversível.

A revolução francesa tinha elementos espirituais, mas a força que a deflagrou veio do que existe de mais profundo na alma humana: o estômago.

E só foi possível através do esforço de milhares e milhares de camaradas, trabalhando quase sempre em condições precárias.

Logo no primeiro capítulo do livro, na terceira página, o personagem principal, o jovem Evariste Gamelin, um orgulhoso e severo jacobino, visita uma seção onde funcionavam alguns comitês da revolução.

Ele encontra Fortuné Trubert, secretário do comitê militar, em cujas costas repousavam responsabilidades imensas, as vidas de milhares de pessoas envolvidas nas escaramuças que tomavam conta de todo o país.

Perguntado sobre sua saúde, Trubert sempre respondia que tudo bem andava às mil maravilhas, apesar de estar doente de tanto trabalho.

Perguntado sobre a situação, respondia:

“- A situação continua mesma”.

É a deixa para o autor revelar o que se passava:

“A situação era terrível. O mais belo exército da República acossado em Mayence; Vallencienes cercada; Fontenay tomada pelos Vendéens; Lyon revoltada; os Cévennes insurgidos; a fronteira aberta aos espanhóis; dois terços dos departamentos invadidos ou sublevados; Paris sob os canhões austríacos, sem dinheiro, sem pão.”

(…)

“Enquanto isso, Fortuné Trubert escrevia tranquilamente. (…)

Trabalhando doze ou catorze horas por dia, diante de sua mesa de madeira branca, na defesa da pátria em perigo, este humilde secretário de um comitê de seção não via a desproporção entre a enormidade de sua tarefa e a pequenez de seus meios, tanto ele se sentia unido ao esforço comum a todos os patriotas, tanto ele partilhava o corpo com o resto do país, tanto sua vida se confundia com a vida de um grande povo.

Ele era daqueles que, entusiastas e pacientes, após cada derrota, preparava o triunfo impossível. Esses homens simples, que haviam destruído a monarquia, revirado o velho mundo, esse Trubert, pequeno engenheiro óptico, esse Gamelin, pintor obscuro, não esperavam agradecimento de seus inimigos. Eles não tinham escolha entre a vitória ou a morte. Daí o seu ardor e a sua serenidade”.

*

É tão bonito, não?

Eu acho que devemos aplicar esses princípios à situação política atual.

A direita avança em todas as frentes. Também na revolução francesa, e isso está no livro de France, os capitalistas se ocupavam continuamente de tentar corromper os políticos influentes da revolução. E conseguiam.

O terror, de certa maneira, foi uma reação histérica da própria revolução para extirpar a corrupção de si mesma.

Acabaram todos na guilhotina.

A revolução então termina com a tomada do poder por Napoleão, derrubando seus anseios democráticos, mas implementando alguns princípios legais que transformariam o mundo inteiro.

Em seguida, há reação, outra revolução, outra reação, num movimento pendular que culminará na França de hoje, um país amargurado pelo pessimismo, mas orgulhoso de suas conquistas no campo da cultura, do bem estar social, da mobilidade urbana.

Eu quero dizer o seguinte.

Não temos como escapar de um eventual pessimismo, diante da nova ofensiva midiática, conjugada à apatia do governo.

Quem sofre, naturalmente, é o trabalhador, preso em meio a uma crise que paralisa a atividade econômica.

Lembro-me que, certa feita, li um desses caricatos conservadores de jornal escrever: “A França, como a Inglaterra, teria se modernizado sem a maldita revolução”.

Maldita revolução…

É muito curioso alguém pretender julgar a história.

Mais curioso ainda, depois de tantos séculos, odiar a revolução francesa.

Como se os fatos históricos não fossem todos encadeados, como se a revolução francesa fosse um livro que não devesse ter sido escrito.

Um dia, num futuro distante, algum historiador poderá catalogar o período histórico que vai dos anos 50 aos dias de hoje, como uma sucessão ininterrupta de golpes políticos articulados com auxílio da mídia.

Talvez possamos, desde já, chamar esse período, iniciado em 1954, com o suicídio de Vargas, até 2015, quando se articula um segundo golpe, muitas vezes mais sofisticado, como a “era da mídia”.

Livros serão escritos, num ambiente já mais tranquilo, estável, sobre décadas e décadas de histeria midiática e técnicas de tortura semiótica aplicadas à política.

O poder da nossa mídia para torturar, destruir e humilhar é extraordinário. É a única coisa que explica o suicídio de Vargas e o golpe de 64.

A última eleição de Dilma foi, por isso mesmo, um verdadeiro milagre, só explicável pela comunicação produzida na campanha.

Não me refiro apenas à propaganda eleitoral da TV, mas ao contato direto entre Dilma e o povo, através dos comícios e dos encontros.

Mas não vou mais falar de comunicação, porque isso já encheu o saco. Hora de virar o disco.

Encerro com uma notícia que, acho eu, nunca contei por aqui.

Vocês sabiam que a indústria do cinema e audiovisual nos EUA é altamente sindicalizada? Isso desde a década de 20, ao menos.

Claro que vocês nunca verão isso no Globo Repórter…

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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