Dilma rompe o silêncio


 

Ela falou, finalmente.

Aproveitando a primeira reunião ministerial, a presidenta fez um discurso nitidamente voltado à nação.

Entretanto, ao assistir os 35 minutos de discurso da presidenta, sinto mais uma vez um grande alívio por termos sobrevivido às eleições.

E entendo melhor porque a presidenta resiste tanto a falar mais e a dar entrevistas.

É patente que Dilma, definitivamente, não se sente à vontade como oradora.

A eleição foi vencida pelo projeto, e sobretudo pelo repúdio da população a um retrocesso neoliberal (o mesmo que tenta se imiscuir agora no governo, via Levy), não pelas qualidades retóricas da presidenta.

Dilma é uma pessoa tímida, que fica nervosa, que gagueja, que se absorve tanto na angústia de se expor que tem dificuldade de se concentrar.

Quando improvisa, é um desastre.

Ela tentou, por exemplo, fazer graça com o fato do Brasil figurar como maior mercado mundial de cosméticos.

Após sorrir timidamente, dirige um olhar cúmplice aos ouvintes. A linguagem corporal diz: quero falar uma coisa engraçada, me ajudem.

Só que, para o ouvinte, o efeito é inverso. O ouvinte fica ainda mais aflito, quase com pena, porque sabe que ela quer dizer alguma coisa divertida, sabe até o que ela quer dizer, porque em geral é alguma piada trivial, e sabe que ela não está conseguindo encontrar a expressão.

A presidenta então hesita mais que nunca. Por fim, após torturantes décimos de segundo de silêncio constrangedor, ela consegue soltar a frase engasgada.

No caso dos cosméticos, a frase engraçada é uma expressão pernóstica: “a vaidade intrínseca” da mulher.

De resto, o texto do discurso é, como sempre, repetitivo, medíocre e confuso.

Ao invés de incutir entusiasmo, provoca desânimo.

O problema de comunicação, portanto, vem de cima, da própria presidenta.

Não me levem a mal.

Eu votei em Dilma, apoio seu governo (com críticas, claro), e todos os dias respiro aliviado por termos vencido uma eleição tão difícil em 2014.

Também acho que a história será justa com Dilma, e ela poderá ser considerada uma das melhores presidentes que o Brasil já teve.

Uma presidenta que implementou e ampliou os maiores programas sociais da nossa história, ao mesmo tempo em que deu início e coordenou o maior conjunto de obras de infra-estrutura dos últimos séculos.

Nenhum outro presidente jamais fez tanto pela educação pública brasileira, ampliando o Prouni, criando o Ciência sem Fronteiras e o Pronatec, aumentando o salário de professores universitários, expandindo e aprimorando o Enem.

Nenhum presidente enfrentou a corrupção com tanto respeito às instituições como Dilma.

Mesmo diante de inúmeros abusos, a presidenta manteve uma postura serena e confiante no Ministério Público e no Judiciário, de maneira que, com o passar do tempo, a história poderá lhe dar o crédito por ter sido a responsável por um grande avanço do país na luta contra a corrupção.

E fez tudo isso enfrentando o mais concentrado, poderoso e agressivo conglomerado midiático do mundo.

É incrível, portanto, que a pessoa que enfrentou e enfrenta tudo isso seja uma mulher tão tímida, dotada de uma retórica tão pobre.

A explicação, mais uma vez, é simples.

A rusticidade oratória da presidenta, a sua incrível dificuldade para se comunicar, são compensadas por uma grande ferocidade política, uma coragem extraordinária e uma incomparável disposição para trabalhar.

A ferocidade política se evidencia quando ela fala em corrupção. A sua linguagem corporal muda completamente – e não creio que seja algo planejado porque a postura da presidenta transpira espontaneidade por todos os poros.

Uma espontaneidade absolutamente desastrada, ou “gauche”, como diria Drummond, e por isso mesmo autêntica.

Aliás, isso confirma uma teoria de Carlyle sobre o “heroi político”, segundo a qual as pessoas admiram suas lideranças políticas por suas virtudes, mas as amam por seus defeitos.

Explica também a estranha alquimia operada no frenesi da campanha eleitoral, quando todos os defeitos da presidenta foram convertidos em virtudes, ao passo que as virtudes de Aécio, a sua oratória impecável, a sua fleuma, o seu sorriso triunfante, se tornaram defeitos.

Foi o momento em que dezenas de milhares de pessoas, durante comícios em São Paulo, Rio, Recife, gritavam juntos: “Dilma, eu te amo”.

Ninguém jamais gritou: “Aécio, eu te amo.”

Os defeitos de Dilma, sua dificuldade para falar, confirmam a sua coragem. Pois é como alguém que tivesse uma horrível fobia do mar e mesmo assim insistisse em trabalhar num navio.

Voltando à corrupção, Dilma deixa bem claro, ao abordar o tema, mais pela linguagem corporal e pelo tom de voz, do que por suas palavras, a sua ferocidade política.

É como um recado à própria base aliada, onde ela sabe se encontrar os maiores corruptos, porque estes sempre se refugiam sob as asas do poder.

Como se ela dissesse: “não adianta, não vou mover uma palha para ajudar ninguém. Vai todo mundo se ferrar. Quem mandou roubar?”

*

Sobre o conteúdo da fala, comento os principais pontos:

1) Proposta de segurança pública.

É um dos pontos essenciais, e que pode granjear uma grande popularidade para a presidenta, se o projeto for bem sucedido. A presidenta quer estabelecer um sistema de segurança público unificado, em todas as federações, o que convêm ao país e às novas circunstâncias tecnológicas.

2) Proposta de desburocratização.

Outro ponto importantíssimo para destravar investimentos no país e gerar empregos. Entretanto, é um desses projetos prometidos por todo governo. Vamos ver se agora isso avança. A burocracia no Brasil, em todos os níveis, atrapalha muito a nossa produtividade. Suponho que, se for bem encaminhado, será aprovado com facilidade, visto que não encontrará objeções ideológicas por parte de nenhum partido.

3) Comunicação melhor dos ministérios.

Foi um dos momentos mais duros de seu discurso. Ela falou explicitamente em travar a batalha da comunicação e combater a desinformação. É também o ponto que os internautas mais politizados ouviram com mais ceticismo, visto que a própria presidenta jamais seguiu o conselho que agora dá aos ministros. Afinal, o governo vai continuar cevando os cofres da grande mídia, aquela mesma que desinforma, com dinheiro público? É evidente, além disso, que a iniciativa, neste ponto, precisa ser centralizada pela presidência da república. Dilma não tem sequer um porta-voz. Nem os ministros sabem o que se passa no governo, ou o que pensa a presidenta, como eles poderão defender a sua administração?

4) Direitos trabalhistas.

O discurso soou um pouco falso, por causa da recente investida do governo contra alguns direitos constituídos, como reduzir a carência do seguro desemprego. De qualquer forma, é reconfortante ouvir a presidenta afirmar que os direitos trabalhistas seguirão intocáveis.

5) Quanto ao ajuste fiscal, Dilma poderia ter lembrado que o seu governo implementou mudanças importantes no imposto de renda, isentando mais trabalhadores e criando degraus progressivos de cobrança. Seria essencial, neste momento, a presidenta fazer um discurso duro contra a sonegação e a evasão fiscal, de longe o maior problema do Brasil, muito maior inclusive do que a corrupção. O sindicato nacional dos auditores fiscais estima que o Brasil perde mais de 400 bilhões de reais por ano com sonegação. A ong Tax Justice já posicionou o Brasil como um dos países com maior índice de sonegação do mundo. Como isso não sai na mídia, que também sonega, o governo parece não se interessar tanto pelo tema.

6) Dilma falou da necessidade de se investigar a Petrobrás, e os esquemas que a prejudicaram, sem quebrar empresas que formam a base da infra-estrutura no país. É um posicionamento político importante da presidenta, uma chamada para o bom senso. Só que o Ministério Público Federal já andou tentando agir com bom senso, e o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, foi acusado de fazer um acordão para salvar o governo. Janot então, para salvar a pele, recuou e aderiu à mídia, fazendo discursos raivosos e udenistas. A mídia não quer saber de bom senso ou interesse nacional. Ela quer crise política e paralisação de obras fundamentais, para prejudicar o governo e preparar o terreno para seus candidatos em 2016 e 2018. Ou seja, o governo terá de “travar a batalha da comunicação” principalmente neste caso da Lava Jato. Não é o que tem feito até o momento.

Assista ao discurso da presidenta:

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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