Tudo bem, eu aceito as críticas.
Até porque entendo que entramos num terreno extremamente perigoso.
Não sei até que ponto é um fenômeno brasileiro ou mundial, mas é impressionante a facilidade com que casos polêmicos se transformam, nas redes sociais, em processos de linchamento.
Alguém opina que o jornal Charlie Hebdo era racista, xenófobo, islamófobo, e todos começam a emitir a mesma opinião.
Quem discorda, entra no pau.
Baixemos as armas.
O que nos interessa é o debate, a polêmica. Esta dialética é a essência não apenas da democracia, mas da própria vida.
Mas é preciso participar sem ódio.
Então vamos começar de novo.
Quis a fortuna, por razões particulares várias, que eu viesse à Paris. Cheguei hoje. Aproveitei para comprar os principais jornais, que, na França, felizmente, trazem opiniões diversas, e tem um viés fortemente progressista.
Os jornais são apenas jornais, não braços de um monopólio que explora concessões públicas.
A França está profundamente consternada com o assassinato dos desenhistas e outros inocentes, no atentando ocorrido há poucos dias, em Paris. O evento é chamado de seu “11 de setembro”.
Consternada não apenas com a barbaridade, mas pelas perigosíssimas armadilhas interpostas diante de si.
Afinal, a França tem mais de 6 milhões de muçulmanos, ou quase 10% de sua população (que é de 66 milhões) para falar apenas nos que possuem cidadania legal. E está plantada diante de centenas de milhões de muçulmanos, vivendo logo ali, do outro lado do Mediterrâneo.
É evidente que o debate sobre liberdade de expressão remexe em feridas políticas e sociais ainda abertas, na França, na Europa, no mundo.
A França inteira se tornou uma grande e efervescente ágora.
O Liberación, nesta quinta-feira, discute a liberdade de expressão com bastante cuidado, sobretudo em face do desafio de explicar, aos franceses e ao mundo, porque se protege as charges de Charlie e se ataca as piadas do humorista Dieudonné, consideradas antissemitas e, no caso mais recente, apologia ao terrorismo.
Em editorial, o jornal admite que há um equilíbrio tênue, em perpétuo estado de ajustamento, entre o direito à palavra livre e o respeito às crenças religiosas.
“É preciso repetir pela enésima vez: Charlie tem razão”, diz o editorial assinado por Laurent Joffrin, que traduzo e reproduzo abaixo:
“O princípio que nos governa em matéria de liberdade de expressão é claro: nós somos livres para falar, escrever, desenhar, publicar, mas também devemos responder pelo abuso desta liberdade. A regra é a liberdade. A exceção, que deve ser tão rara quanto possível, é o excesso, definido por lei.
Charlie e os jornais que publicam suas caricaturas são o excesso? Não.
Temos o direito, na França, de zombar das religiões, seus símbolos, e mesmo de blasfemar. Assim decidiram os tribunais ao termo de uma jurisprudência longa e evolutiva.
Então, o que são os excessos? A difamação contra pessoas, a incitação à violência ou ao ódio, o racismo no sentido lato, com seu irmão maléfico, o antissemitismo.
As proibições compreendem as injúrias feitas a indivíduos em razão de sua etnia ou religião. A lei é clara: aos indivíduos, vivos, de carne e osso, não aos dogmas e aos símbolos.
É por essa razão que se equivocam profundamente – ou deliberadamente – os que acusam a justiça de praticar dois pesos e duas medidas. Há duas medidas porque a sátira, tal qual a pratica Charlie Hebdo e o antissemitismo de Dieudonné, ou bem a sua apologia ao terrorismo, não se situam no mesmo plano.”
Em seguida, o jornal publica uma longa análise sobre liberdade de expressão. A França sempre viveu um debate feroz sobre o assunto. A reportagem lembra que Charlie Hebdo já foi condenado algumas vezes por seus excessos, assim como Dieudonné já foi absolvido e protegido pela Justiça francesa em várias ocasiões.
As decisões são analisadas caso a caso.
A lei que proíbe a apologia ao terrorismo é antiga, de 1881, mas só foi incorporada ao Código Penal em novembro do ano passado.
Sendo a Justiça uma instituição humana, é claro que a comoção do atentado faz os juízes reagirem com mais dureza.
Dieudonné comparou-se a um dos terroristas envolvidos nos atentados, apenas dias depois dos crimes. É lógico que ele procurou surfar na polêmica, num momento em que milhões de franceses ainda sofriam com a morte de seus artistas, e conseguiu.
A lei não é perfeita, sobretudo uma lei que flerta com o elemento subjetivo.
Mas Dieudonné terá direito à defesa, a recursos, dentro de um dos sistemas penais mais humanistas do mundo. Aos desenhistas e demais inocentes mortos no atentado da semana passada, não houve nada disso: foram executados a sangue frio.
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O Le Monde também transpira a tensão do momento, e vai procurar a opinião do lado contrário, em jornalistas da esquerda síria, ainda traumatizados pela campanha criminosa patrocinada por EUA e Europa, com participação especialmente ativa da França, contra o presidente Assad.
A esquerda síria fazia oposição a Assad, mas viu-se obrigada a defendê-lo em face dos ataques imperialistas ao país.
“Charlie, uma ferida árabe-francesa”, diz matéria que entrevista jornais da esquerda e da direita sírias.
Le Monde lembra ainda do blogueiro saudita condenado a levar mil chicotadas e 10 anos de prisão, por ter “insultado o Islam”.
Na página de opinião, o jornalista Arnaud Leparmentier faz observações pertinentes sobre a necessidade da Europa de adaptar a sua laicidade à presença crescente do islamismo no continente.
Ele conta a história, na Europa, dos choques religiosos, que já produziram inúmeras guerras e milhões de mortos. E que só foram resolvidos após uma catástrofe, a II Guerra.
As leis francesas concernentes à laicidade foram feitas para o homem branco e católico, diz Leparmentier.
Não depreendi de seu texto que ele defenda qualquer recuo, por parte dos legisladores franceses, em relação à laicidade ou liberdade, mas simplesmente que a França procure uma abordagem mais sensível da questão do aumento da presença muçulmana, que já se consolidou como a segunda religião mais importante do país.
Ao final do texto ele sugere, por exemplo, que o Estado introduza feriados muçulmanos no calendário nacional. Uma iniciativa bem bobinha, admito, pois seria muito mais produtivo que a França revisse algumas posições internacionais que andou adotando, como o seu apoio à invasão da Líbia e o suporte aos rebeldes islâmicos que tentavam derrubar o governo sírio.
Um editorial, na mesma página, trata das mortes na Nigéria, mas fazendo uma observação que, acho eu, faltou em nossos debates. Os quase dois mil mortos nos últimos dez dias, na Nigéria, em atentados terroristas e execuções, foram vítimas de extremistas islâmicos, ou seja, foram vítimas do mesmo tipo de violência política, e da mesma ideologia, que matou os desenhistas do Charlie Hebdo.
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Há o caso, por fim, da demissão de Sine um chargista do Charlie Hebdo, por “antissemitismo”, um fato que está sendo usado hoje no “tribunal moral” montado para condenar o Charlie. Não vou defender o jornal neste caso. Sine era um chargista premiado, e sua demissão se deu por notória pressão do presidente da República, Nicolas Sarkozy, em função de piadas feitas sobre seu filho, Jean Sarkozy, que iria se casar com uma rica herdeira judia.
Talvez tenha havido covardia da direção do Charlie, tanto é que Sine ganhou, na Justiça, uma indenização de 40 mil euros, por demissão injusta.
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Agora que já pincelei como anda o debate em Paris, trato de dar a minha opinião sobre o tema.
Explicarei porque aceito as críticas, e as responderei, humildemente.
Em primeiro lugar, limpemos a mesa de alguns conceitos envenenados.
Eu sei que quase todo mundo – em especial no Brasil – é contra a violência política. O nosso debate não é entre os que defendem a execução dos desenhistas e os que a condenam.
A nossa sociedade se tornou por demais complexa, por demais irritada com as mídias corporativas, para aceitar rótulos fáceis, como “je suis charles”.
Se há um movimento forte de “je suis charles”, cria-se logo uma força contrária, dissidente, daqueles que não se sentem confortáveis com esse tipo de slogan.
Isso é normal. A questão não é essa.
O debate sobre liberdade de expressão, no entanto, incendiou-se também no Brasil, e isso nos interessa profundamente.
Alguns disseram que foi um atentado terrorista, à vida humana, e não um ataque à liberdade de expressão.
Não concordo. Foi sim, um atentado precisamente à liberdade de expressão, porque eles foram mortos por causa de suas charges de Maomé.
No Brasil, houve uma enxurrada de acusações contra a revista, com a reprodução de charges e desenhos fora do contexto. É o tal processo de linchamento. Se o contexto de uma charge é explicado, a pessoa, ao invés de refletir, parece ficar ainda mais irritada, e então procura outro desenho, apresentando-o igualmente sem contextualização. Isso aconteceu até o ponto das pessoas começarem a divulgar uma capa do Charlie de 35 anos atrás.
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Percebi, então, que o debate sobre liberdade de expressão corrompeu-se no Brasil. O entendimento sobre liberdade, tão forte na ditadura, envenenou-se após 20 anos de monopólio da mídia.
Criou-se, de um lado, uma classe, reduzidíssima, de jornalistas e intelectuais, com empregos na grande mídia, que passou a entender a liberdade de expressão como uma liberdade exclusiva das empresas.
De outro, temos um número crescente de pessoas que passou a associar a liberdade de expressão ao arbítrio da mídia para destruir reputações.
O editorial do Liberación, citado acima, trata bem deste ponto no conceito de liberdade de expressão. Busca-se a liberdade total para se criticar instituições, dogmas, religiões. Mas os indivíduos de carne e osso devem ser protegidos.
No Brasil, a mídia conseguiu a proeza de enfiar a injúria aos indivíduos, o assassinato de reputação, dentro do mesmo saco da liberdade de expressão.
No caso da militância petista, que sofre na pele desde 2003 uma guerra sem quartel da mídia contra suas lideranças, ela passou a associar liberdade de expressão às diatribes de Diogo Mainardi e Reinaldo Azevedo.
Em função do monopólio, de um lado, e do abuso, de outro, a liberdade de expressão se tornou sinônimo, para setores da esquerda, da humilhação imposta pelos ricos e seus meios de comunicação, aos símbolos e representantes políticos das classes trabalhadoras.
Mas é um erro, claro. A liberdade de expressão sempre foi, e sempre será, uma grande conquista de todas as classes, e como qualquer conquista universal, beneficia muito mais o pobre, que é maioria, do que o rico. Desde que, é claro, se combata o monopólio, que provoca uma absurda e injusta desigualdade na distribuição do direito à opinião e ao humor.
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Outro motivo de confusão, no debate, corresponde à sensibilidade do brasileiro.
Diante daquelas capas escandalosas do Charlie Hebdo, mostrando candidatos ao Vaticano enrabando-se uns aos outros, o presidente de pinto de fora, maomé mostrando a bunda, etc, os brasileiros tiveram, de maneira geral, a mesma reação de Leonardo Boff.
Nosso teólogo da libertação, em tese um religioso mais liberal, mandou-me um twitter, anexado a uma compilação de capas do Charlie, com a frase fatal: “para tudo tem um limite”.
Este é um erro, porém, gerado por um choque de culturas, e se nós sentimos isso, imaginem o choque entre a França e as sociedades ultraconservadoras do oriente médio?
Imaginamos o francês como um sujeito sóbrio, sério, moderado. Pode até ser, mas a sua tradição, no campo das artes, é profundamente anárquica, iconoclasta, escandalosa.
Estive relendo, justamente para escrever este post, os livros daquele que alguns clamam ser o fundador do francês moderno, e da literatura francesa, François Rabelais. Assim como temos nosso Camões, a Inglaterra tem Shakeaspeare, a Itália tem Dante, a França tem Rabelais.
Suas duas obras mais famosas são Gargantua e Pantagruel. Vou abordar, por economia de espaço, apenas o Gargantua.
Vê-se claramente que o Charlie praticava um humor rabelaisiano, a saber, radical, sarcástico, cruel, escatológico.
Um pequeno poema que abre o Gargantua vale como uma apologia eterna ao humor, à liberdade artística e à paz. Parece que Rabelais o escreveu pensando especialmente nos extremistas:
Amis lecteurs qui ce livre lisez,
Dépouillez-vous de toute affection,
Et le lisant ne vous scandalisez.
Il ne contient mal ni infection.
Vrai est qu’ici peu de perfection
Vous apprendez, sinon em cas de rire:
Autre argument ne peut mon coeur elire.
Voyant le deuil, qui vous mine e consomme,
Mieux est de rire que de larmes écrire.
Pour ce que rire est le propre de l’homme.
Tradução literal minha:
Amigos leitores que este livro lêem,
Libertem-se de todo preconceito,
e o lendo não se escandalizem.
Ele não contém nenhum mal ou infecção.
Verdade que tampouco nenhuma perfeição
eles vos ensina, é feito apenas para rir:
e meu coração não poderia ter outro objetivo.
Contemplando os sofrimentos, que vos consomem,
melhor é escrever com risos do que com lágrimas.
Porque o riso é o mais próprio do homem.
*
O livro, como já disse, é a história de Gargantua, uma espécie de Macunaíma nobre e francês. No capítulo 5, logo antes de Gargantua nascer, há um engraçadíssimo fluxo de consciência com loas ao vinho, e a seu consumo excessivo. “Or çà à boire, boire ç’à”. Beber por aqui, beber por ali! Sem culpa! Se eu montasse tão bem como eu bebo, estaria já cavalgando no ar! Eu molho a garganta, eu me afogo, eu bebo! E por medo de morrer. Beba sempre que você não morrerá jamais! Se eu não bebo, eu fico a seco. Eis-me morto. No seco, nenhuma alma habita. Sommeliers, ó criadores de novas formas, façam de mim, que não bebo, um bebedor! Ó bebedores! Ó alterados! Meu amigo garçom, encha o meu copo de vinho, eu te suplico! Natura abhoret vacuum. A natureza abomina o vácuo.
No capítulo 6, nasce Gargantua. Sua mãe, Gargamelle, sofre algumas complicações no parto e ele acaba nascendo via orelha esquerda. Só que, ao nascer, ele não grita como as outras crianças. Ao invés de berrar “buá, buá”, Gargantua gritava “a boire, a boire!”, a beber, a beber!, “como que convidando todo mundo a beber”.
Seu pai, Grandgousier, ficou maravilhado que as primeiras palavras do filho…
Daí temos alguns capítulos descrevendo a infância e adolescência de Gargantua, na qual ele se destaca por comer muito, além de cenas bastante pornográficas entre o pequeno Gargantua e suas criadas.
No capítulo 13, Grandgousier descobre que seu filho tinha um espírito refinado e criativo, porque Gargantua lhe ensina um método especial para limpar a bunda sem machucá-la.
Sim, limpar a bunda. E tudo é descrito em detalhes assombrosamente escatológicos.
Após muitas bebedeiras, Gargantua chega a Paris, onde ele se depara, segundo o texto, com um povo “tão idiota, tão embasbacado, e tão inepto por natureza: que um palhaço de rua, um artista de marionetes, um jumento carregando sinos, um tocador de viola, reunirá mais gente que jamais conseguiria um bom pregador evangélico”.
Daí que o povo, fascinado por Gargantua, que era um gigante, começa a segui-lo por toda a parte, obrigando-o a se refugiar no alto da Notre Dame.
E o que faz Gargantua, lá no alto, contemplando a multidão reunida abaixo?
Ele tira seu membro para fora e mija.
Um xixi tão abundante que inunda a cidade inteira e afoga milhares.
Daí vem o nome de Paris. Gargantua inundou a cidade com xixi apenas por diversão, “pra rir”, ou em francês, “par ris”.
Em seguida, Gargantua conhece um monge que só pensa em beber, de manhã, tarde e noite, e mesmo assim é o monge mais corajoso e mais guerreiro. Após vencerem uma importante batalha, Gargantua permite que o monge funde um mosteiro só para ele, com regras especiais, onde todos poderão acordar a hora que quiser, comer e beber à vontade, casarem-se com as mulheres, e viverem em liberdade.
Obviamente que o livro de Rabelais foi considerado uma grande ofensa à religião católica.
Sua consolidação como um clássico, também é óbvio, se deu durante o processo da revolução francesa, em que se afirmou o princípio da laicidade do Estado.
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Desde então as artes francesas sempre se notabilizaram pelo escândalo, pelos excessos, pelo enfrentamento atrevido a toda forma de autoridade, no Estado, na Igreja, nas convenções sociais.
Essa é a confusão. Os “leigos” em cultura francesa acham que estão se deparando com xenofobia, islamofobia, porque as charges são agressivas. Mas não é verdade. Os desenhos do Charlie são herdeiros da tradição estética francesa, voltada para a escatologia, o excesso, o escândalo.
Se você pegar as charges do mesmo Charlie Hebdo sobre a igreja católica, o Vaticano, o Papa, o presidente da república, encontrará exatamente o mesmo tipo de estética.
Por isso, eu aceito humildemente todas as críticas dos leitores, respeito todas as suas opiniões, entendo que todos, ou quase todos estão preocupados (às vezes mesmo sem ter consciência disso) com princípios democráticos, a saber, não haver dois pesos e duas medidas, mas insisto que ainda “je suis charlie”.