Confissões de um quase vagabundo


 

Em primeiro lugar, desculpem-me o ritmo lasso dos últimos dias. Acho que ainda não peguei no tranco.

A minha decisão de não mais consultar a mídia familiar criou-me uma armadilha. Há tempos não me sentia tão leve e tão feliz.

Sem o contato venenoso dos jornalões, ganhei tempo e tranquilidade espiritual para botar minhas leituras em dia. Já consegui organizar um excelente sequência e tenho avançado formidavelmente.

O perigo, naturalmente, é ficar como um adolescente preso à cama, recusando-se a abandonar o mundo dos sonhos, e enfrentar a vida.

Em suma, vagabundear pelos campos da literatura.

Para alguém como eu, que sempre trabalhou por conta própria, desde os 16 anos, sempre dependendo do número de horas trabalhadas para ganhar o pão de cada dia, a vagabundagem sempre teve o doce sabor da fruta proibida.

Entretanto, 2014 foi um ano tão difícil na política, e encerrou de maneira tão turbulenta, que me sinto obrigado a uma abordagem bem mais distensionada nesses primeiros meses do ano.

Sou um blogueiro talvez um pouco mais emotivo do que recomendaria o tema sobre o qual escrevo, de maneira que terminei o ano com os nervos em frangalhos.

Claro que se trata de pura megalomania, que suponho ser doença comum a blogueiros e militantes digitais: é como se eu lutasse, sozinho, contra a máquina inteira da mídia.

Daí que a única coisa que me acalma é mergulhar em meus livros, que me levam a tempos remotos, ao tempo da revolução francesa, a histórias mirabolantes de espiões, a teorias complicadas de filosofia. Ou então, numa pirueta meio bandida, a consumir noites assistindo, de enfiada, quatro ou cinco episódios de Breaking Bad.

Para não falar na cerveja, este produto sagrado que nos permite rir de tudo e de todos.

A coisa que mais me dá prazer na vida, no entanto, tirando as coisas óbvias, é andar de bicicleta escutando música.

Finalmente, após mudar de operadora, o 3G do meu celular funcionou a contento e pude fazer isso, escutando o rádio da Spotify enquanto pedalava do Arpoador ao Leblon, do Leblon ao Arpoador.

Daí a minha crise.

Ando naqueles dias nos quais, mesmo se houvesse bombas sendo lançadas sobre os prédios vizinhos, meu humor se manteria sereno e alegre.

Acostumei-me, no entanto, a escrever sob pressão da minha úlcera mental, que por sua vez ardia ao contato das xaropadas manipulativas da mídia familiar.

Escrevia para me salvar.

Com o tempo fui me profissionalizando, mas a motivação fundamental continuava lá.

Mas agora as coisas estão diferentes. A mídia não consegue sequer me despertar aquele sentimento de indignação de outrora.

Hoje, sinto apenas desprezo infinito.

Com o advento da Netflix, abandonei definitivamente a tv aberta.

A troco de quê estragarei meu humor assistindo o Jornal Nacional ou, pior, para que me torturar olhando o semblante de conde drácula e a voz tenebrosa de William Waack?

Tudo isso é passado.

Entretanto, ainda sou um blogueiro político.

Então preciso procurar outras motivações para escrever.

Preciso me adaptar ao hábito de assistir os canais da TV Câmara, TV Senado, TV Justiça, EBC, ouvir os discursos parlamentares, como fazia Machado de Assis no tempo em que escrevia crônicas políticas para jornais.

Hoje no site da Câmara Federal, por exemplo, há uma notícia importante, e que alívio saber por lá ao invés de ver a mesma notícia, deturpada, na mídia familiar!

Governo reduz em 33% limite de gastos com despesas não obrigatórias


É uma notícia ruim, sobretudo porque inclui o bloqueio de até R$ 7 bilhões no Ministério da Educação. No total, há esforço para se bloquear R$ 1,9 bilhão por mês.

Entretanto, eu seria hipócrita se fingisse ser tão esquerdista a ponto de não entender a necessidade de se conter os gastos públicos.

Claro, se o governo reduzisse os juros básicos, economizaria ainda mais, sem agredir nenhum gasto social.

Mas o debate sobre os juros, no Brasil, há tempos perdeu a sua qualidade democrática. As autoridades se recusam a desenvolver uma teoria plausível, em linguagem acessível aos mortais, para nos explicar porque o Brasil precisa manter os juros mais altos do planeta.

No jogo da política macro-econômica, parece que é preciso deixar o grande público em estado de absoluta ignorância.

De qualquer forma, sinto-me melhor em saber disso pelo site da Câmara, onde tenho acesso às posições do governo e da oposição.

Para que preciso da mídia?

Para que preciso saber a tola e inútil opinião de um colunista?

No caso dos cortes, por exemplo, a notícia traz a opinião do vice-líder do PSDB, o deputado Nilson Leitão (MT), para quem “o anúncio de cortes no orçamento antes mesmo de sua aprovação pelo Congresso demostra que o governo se planejou apenas para a campanha eleitoral.”

“A eleição era algo fictício, era uma fantasia de Brasil, agora é a vida real e agora o Brasil vai pagar caro por isso”, disse Leitão.

“Ou ela [Dilma Rousseff] é bipolar ou está sendo uma grande atriz, ao tentar se promover com a proposta [de austeridade] que era do seu adversário”, completou.

Tirando a linguagem pesada, própria de um partido ainda amargurado pela derrota, o deputado não deixa de ter razão.

Mas é uma razão parcial.

Dilma jamais prometeu que faria um governo descompromissado com a questão da austeridade fiscal, até porque sua primeira gestão sempre se preocupou com isso.

No entanto, o governo dá a estranha impressão de ter um prazer mórbido em apenas anunciar medidas de toque conservador.

Como se o governo aliasse o seu já conhecido masoquismo, que o faz patrocinar uma mídia que lhe fustiga dia e noite, a um sadismo em relação a seu eleitorado.

Se os cortes são necessários para a saúde financeira do Estado, então cortemos.

O governo, todavia, possui instrumentos para colorir esses cortes, para revesti-los de significado político.

Se há necessidade de fazer cortes na educação, então esses cortes deveriam vir acompanhados de uma política inovadora, que permitisse fazer mais com menos, que engajasse a sociedade.

Basta revisar prioridades, fazer políticas transversais entre os ministérios, focar os cortes exclusivamente em gastos supérfluos.

Dar a eles um sentido!

Mais uma vez, voltamos à comunicação, que implica não apenas em falar, mas sobretudo em produzir um novo conteúdo.

Comunicar-se é criar, é fazer política.

Por exemplo, o ministério da Saúde poderia bancar aulas de nutrição e antidrogas para estudantes de escola pública. Numa só tacada, estaríamos fazendo política educacional e promovendo políticas de prevenção.

Outro dia, entre uma cerveja e outra, um amigo me perguntou quais eram minhas expectativas em relação ao governo Dilma.

Eu acho o seguinte: vai cometer muitos erros. Todos nós cometeremos erros. Às vezes o governo acerta, e somos nós que erramos na avaliação.

Só que o governo não tem controle sobre o que vai acontecer. Ele monta o ministério, mas não é humanamente possível adivinhar qual o resultado final.

Só que, independente de todos os erros, as coisas vão dar certo.

Por que não dariam?

Os fundamentos da nossa economia jamais foram tão sólidos.

Os pobres estão menos pobres e mais jovens estão se instruindo.

Para alguma coisa serve o capitalismo: se a balança comercial cai este ano, então o dólar sobe, daí estimula a exportação no ano seguinte.

As coisas se ajustam.

No âmbito da política, a mesma coisa. A Operação Lava Jato, como prevíamos, está lavando todo mundo, do governo, da oposição, e parece estar causando bem mais constrangimento ao Legislativo do que ao Executivo.

A Petrobrás já iniciou um processo ao fim do qual terá um modelo de controles internos muito mais eficiente do que jamais possuiu.

É ótimo, neste sentido, que o escândalo de corrupção na Petrobrás tenha estourado antes do pré-sal começar a jorrar de verdade, porque nos dará mais segurança de que os desvios, a partir de agora, serão mais difíceis.

Quanto ao pré-sal, a mídia está fazendo um jogo sórdido como sempre: está vendendo à opinião pública que o petróleo e a Petrobrás são apenas um papel na bolsa.

Não são!

Petróleo não é só combustível. Este é uso mais atrasado, aliás, que se dá ao petróleo.

O Delfim Neto já até observou que o Brasil não deveria sequer usar o pré-sal como combustível, mas focar na produção de derivados de alto valor agregado, que servirão para o reforço da nossa infra-estrutura.

Com petróleo se faz estradas, trilhos, portos, prédios.

A mesma coisa vale para o ferro, cuja cotação nas bolsas, também desabou.

Enfim, temos aqui os recursos naturais para estabelecer um novo ciclo econômico, já iniciado a partir da inclusão de dezenas de milhões de pessoas no mercado de consumo.

A roda da história não para de girar, independente dos erros e covardias do governo, das manipulações da mídia e dos arbítrios de setores golpistas do Estado.

*

Quanto ao atentado terrorista em Paris, ocorrido ontem, atenho-me ao que disse um desenhista francês, entrevistado ontem, na TV 5.

O assassinato de 12 pessoas, em especial dos desenhistas do Charlie Hebdo, correspondeu ao 11 de setembro da liberdade de expressão. Mas num sentido inverso.

A partir de agora, a liberdade de expressão se tornou, mais que nunca, o ativo mais essencial da democracia.

Uma outra jornalista, que trabalhou no Charlie, explicou que as primeiras charges sobre Maomé, que causaram tanto furor entre os radicais islâmicos, eram um elogio delicado e bem humorado ao Islã.

Esse raciocínio, de qualquer forma, nem vale mais tanto.

Ao atacar desenhistas com tiros de metralhadora, o fanatismo revelou-se, antes de tudo, covarde.

Entretanto, não concordo com as análises de que “o mundo ficará pior” após o atentado. Pode muito bem dar-se o contrário. A história é cheia de malícia e surpresas, e ninguém pode saber, ao certo, o caminho a ser seguido pelo espírito do tempo.

Tenho esperança, contudo, que o zeitgeist, o espírito do tempo, ganhou uma consciência mais profunda e mais doída sobre o significado da liberdade de expressão.

E isso pode ser muito bom.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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