O colunista Antonio Lassance fez uma importante comparação.
Dilma foi a presidente que menos assinou atos em seu período de governo.
Alguém poderia dizer que ela é mais “democrática” por causa disso.
Não necessariamente. Os atos de uma presidenta, se discutidos com a população, e atendendo o interesse popular, constituem uma ferramenta democrática que, não usada, permite que espaços de poder sejam ocupados pelos grupos privados dominantes. Ou seja, pelos mais fortes.
Isso não é democracia, mas barbárie.
Dilma assinou o ato de participação social fora do timing, observa Lassance. Se o tivesse feito durante as manifestações de junho, teria encontrado ressonância social.
Eu acrescentaria: quando for assinar um decreto, seria de bom tom lembrar à imprensa que outros presidentes assinaram muitos mais decretos que ela.
A mídia joga com a desinformação o tempo inteiro, para acuar o governo e impedir que ele tome decisões que signifiquem maior empoderamento de setores populares, e redução do espaço dos plutocratas.
Neste momento, em que se vê diante de um congresso mais conservador, e ao mesmo tempo contando com maior apoio das ruas (apoio que declinará rapidamente se a presidenta e o governo insistirem no silêncio), o poder da caneta presidencial ganha outro peso, naturalmente.
As primeiras canetadas de Dilma poderiam ser justamente no sentido de gerar uma atmosfera política mais participativa, resgatando a energia criada pela polarização eleitoral.
É burrice jogar fora o que se conquistou no segundo turno, sem trabalhar o símbolo, a comunicação, os sonhos.
A mídia está apostando pesado na divisão dos grupos que apoiaram a eleição vitoriosa da presidenta Dilma.
E está conseguindo. Sem uma grande ação para explicar as metas e as diretrizes, haverá dispersão e, pior, proliferação de grupelhos barulhentos de oposição.
A primeira canetada poderia ser a criação de um serviço de porta-voz para fazer um contraponto diário à mídia.
Um rebate democrático, moderado, elegante. Poderia até usar o humor e a ironia, por que não?
Criou-se uma estranhíssima jurisprudência no Brasil.
A presidenta da república, o maior cargo político nacional, é aquele que parece ter menos liberdade para se expressar.
Com Lula não era assim, porque ele mesmo falava à vontade. Inclusive besteira, mas falava e isso era importante.
O problema agravou-se terrivelmente com Dilma.
Temos uma inversão de valores aqui. A Constituição proíbe, terminantemente, magistrados de exercerem atividade político-partidária. E eles fazem proselitismo político diariamente, às vezes até durante a leitura de uma sentença.
Já a presidenta, que é um representante político, eleita pela maioria da população numa vitória épica, em que a lucidez e o bom senso venceram a máquina monstruosa de mentiras e desinformação da grande mídia, não pode falar nada?
Os ataques à presidenta costumam vir sempre acompanhados de ataques aos movimentos sociais e à esquerda.
A presidenta não é atacada quando cede à direita; apenas quando atende aos trabalhadores.
Por isso um sistema defensivo é tão caro ao movimento social, porque não é uma defesa do governo, mas uma proteção das decisões oficiais em favor dos interesses populares.
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O maior desafio de Dilma
O maior desafio da presidenta não é o de derrotar a oposição, nem o de recuperar a economia, nem garantir maioria no Congresso. É o de fazer o governo fluir.
Por Antonio Lassance, na Carta Maior.
A caneta de presidente é para ser usada
Para quem tem o desafio de realizar um governo novo com ideias novas, a presidenta tem que fazer diferente do que fez em seu primeiro mandato.
Durante a II Conferência Internacional de Estudos Presidenciais (UFMG, 13 e 14/11), mostrei um gráfico que considero deveria ser objeto de preocupação política, mais do que de curiosidade acadêmica:
Gráfico – Número de atos presidenciais por tempo de mandato
O gráfico demonstra o quanto os presidentes da República tomaram decisões em nível suficiente para responder às situações que enfrentaram, dar rumo ao governo, fazer coisas novas ou desfazer o que não andava bem ou não fazia mais sentido.
É preciso descontar alguns exageros. O pico da curva é a curta presidência de José Linhares, o presidente do STF que, tutelado por militares, sucedeu Getúlio Vargas quando este foi derrubado em 1945.
Muitos presidentes gastaram seu tempo não só construindo um novo governo, mas desfazendo a herança de governos anteriores – caso dos presidentes generais de 1964 a 1985, do governo Sarney e do citado Linhares.
Fora isso, o gráfico é um bom indicador da capacidade presidencial de tomar decisões e implementá-las por meio de seus atos (decretos, medidas provisórias e, nos casos mais antigos, decretos-lei).
Analisando desde Deodoro (o primeiro), Dilma (a última da linha) está, até agora, entre uma das presidências que menos tomou e implementou decisões.
Entre os presidentes de maior atividade, fora os da ditadura e Vargas – no Estado Novo – está o presidente JK. Ou seja, presidências democráticas também podem e devem fazer uso do poder que têm à disposição, e podem fazê-lo da forma mais amigável possível – sem melindrar o Congresso.
Lula, extremamente cuteloso em seu primeiro mandato, imprimiu ao segundo uma trajetória ascendente de reformismo. Passou a usar mais e melhor suas canetadas.
Essa curva ascendente foi não apenas interrompida no primeiro mandato de Dilma.
A presidenta hoje figura entre aqueles de menor ativismo, junto com a maioria dos presidentes da República Velha, a época em que a República era sobretudo comandada pela chamada “política dos governadores”.
É preciso trocar o remo pelo leme
Como Dilma está longe de ter uma concepção de governo minimalista, muito pelo contrário, o diagnóstico mais provável do que está acontecendo não é muito difícil de ser extraído.
A Presidência acumulou para si mais tarefas do que consegue lidar, com um grau de concentração e gosto pelos detalhes que tornam qualquer mudança e melhoria incremental um verdadeiro parto.
Os ministérios, que são os grandes responsáveis por propor tais melhorias e patrocinar ajustes na administração, se sentem esvaziados e desestimulados a propor, a não ser em casos graves, muitas vezes, quando a porta já foi arrombada.
Paradoxalmente, Dilma usou pouco a caneta de presidente por conta do excesso de centralismo de sua presidência. Por isso há tinta sobrando.
No seu dia a dia, a preocupação maior do governo não tem sido a de navegar, mas simplesmente remar.
Salvo pela criação de alguns novos programas, o que aconteceu nas demais situações é que a principal atividade do governo tem sido apenas a de tocar a máquina, pondo lenha na fogueira e confiando que tudo o mais já está devidamente nos trilhos.
O retrospecto da política de comunicação, ela própria não tendo passado por qualquer grande mudança institucional, mostra que o governo mal se preocupou em melhorar até mesmo o apito do trem.
Já passou da hora de descer do umbuzeiro
O caso do decreto da política e do sistema nacional de participação popular (Decreto nº 8.243/2014) é um exemplo.
O governo demorou quase um ano, desde as manifestações de junho de 2013, para baixar uma norma interna quase banal.
Quando finalmente o decretou saiu, o governo já havia perdido o famoso “timing”.
A janela (“policy window”) aberta pelas manifestações, que pediam maior abertura, transparência e participação aos governos, já se havia fechado e o clima de campanha tomava conta do país.
A proposta virou polêmica e foi duramente criticada não por suas linhas ou entrelinhas, mas pelo momento e por supostas intenções. Há inúmeros outros exemplos similares.
Por isso, o maior desafio da presidenta não é o de derrotar a oposição, nem o de recuperar a economia, nem o de garantir maioria no Congresso. Antes, é o de fazer o governo fluir para que todas as demais coisas possam acontecer.
Dizem que Dilma leu e gostou da biografia de Getúlio Vargas escrita por Lira Neto.
Um dos achados do biógrafo, em seu primeiro livro, foi a descoberta da primeira lição política aprendida por Vargas.
Quando criança, sempre que seu pai queria castigá-lo – em uma época em que espancar crianças era tido como parte da educação familiar -, Getúlio aprendeu a se esconder no alto de um umbuzeiro e só descer quando todos se desesperavam com seu sumiço.
Era então a hora de descer do umbuzeiro. O castigo já tinha sido deixado de lado e a preocupação com o menino dava a ele a oportunidade de ser recebido de braços abertos.
Getúlio está entre os presidentes que melhor souberam usar sua caneta de presidente, mesmo quando estava escondido em cima do umbuzeiro.
Hoje, o que se espera de quem prometeu um governo novo e com ideias novas é entender que já passou da hora de descer do umbuzeiro. Principalmente quando já se vê uma oposição disposta a golpear o tronco com machados.
(*) Antonio Lassance é cientista político.