Dias atrás, publiquei no blog uma nota pública de políticos do PSOL e PT, protestando contra a prisão de ativistas nas vésperas da final da Copa do Mundo, e houve um pequeno curto-circuito. A maioria dos comentaristas aprovou a prisão, e quase todos manifestaram curiosidade, alguns até mesmo um pouco agressivamente, quanto à minha opinião sobre o assunto.
Eu não quis dá-la porque queria, pelo menos uma vez, ouvir a opinião dos internautas antes de dar a minha. Como o espaço é meu, é evidente que eu influenciaria os comentários se, de cara, eu já desse a minha opinião.
Pois então, agora vai.
Não concordo. Acho que o Judiciário e a Polícia se excederam, mais uma vez. Há formas infinitamente mais democráticas e inteligentes de se coibir a violência em manifestações.
Aboliram de vez os departamentos de inteligência, por exemplo?
Já deixei bem claro, aqui no blog, que sou radicalmente contra o uso de violência como “ferramenta popular” em manifestações.
É uma estratégia que apenas dá razão aos setores conservadores, porque conseguem vender mais fácil o discurso de que é preciso ampliar a violência do Estado.
A bandeira da “desmilitarização da polícia” perde o sentido se os manifestantes apelam para a violência.
E faz o povo votar em figuras que alardeiam ter “mão forte” para coibir a “bagunça”.
Sem contar que assistimos, desde o “despertar do Gigante”, a explosão do sentimento antipolítica, que flerta com um autoritarismo às vezes até pior do que aquele da polícia, porque é um autoritarismo sem lei, sem comando. Um voluntarismo truculento em estado puro, essencial, que tem – ironicamente – as mesmas raízes conservadoras que levaram à criação das polícias militares, à ditadura e a implantação de uma cultura violentíssima em nosso poder público.
No entanto, o Estado precisa cuidar da sua imagem democrática. Em primeiro lugar, não vale prender pessoas “antes” que elas façam alguma coisa. Isso é loucura. Ah, mas elas iam fazer. Se há suspeitas e se tudo ocorrer conforme o aval de um Judiciário prudente e democrático, então que se amplie a vigilância sobre aquela pessoa.
O que não tem sentido é lhe enviar para Bangu I antes que ela tenha feito alguma coisa.
Além do mais, é contraproducente. Gera revolta, descontentamento, desconfiança. Um processo contra ativistas políticos tem de ser transparente.
Quando eu fazia críticas à prisão de um José Genoíno doente do coração, vários internautas me acusaram de só defendê-lo porque ele era do PT, partido que supõem ser defendido pelo blog.
Não é verdade. Minhas opiniões sobre filosofia penal e carcerária sempre foram muito claras, muito antes dos problemas de Genoíno.
Em geral, sou um cara de ideias relativamente moderadas, que acredita que o sistema democrático pode ser constantemente aperfeiçoado, sem necessidade de nenhuma ruptura violenta. Aprimoremos nossa representação política, nossas leis, nosso sistema de informação, e seja o que Deus quiser.
Entretanto, sou radical numa coisa: acho que o nosso sistema penal não é moderno, nem democrático. Deixamos pessoas apodrecer em masmorras quando teríamos tecnologia social para resolver esse tipo de problema de maneira muito mais humana, muito mais eficiente.
É preciso manter vigilância sobre uma pessoa cujas opiniões políticas flertam com a violência antidemocrática? Então que se lhe obrigue judicialmente a frequentar um curso de direitos civis e políticos. Se não houver esse curso, que se crie imediatamente. Ou então que se obrigue a ativista a escrever um texto explicando porque acredita nisso ou naquilo. Em caso radical, e após um processo judicial transparente, aplique-se uma tornozeleira eletrônica. Há mil soluções criativas que passam longe da brutalidade, inaceitável para mim, de encarcerar outro ser humano.
Claro que se a pessoa tiver cometido algum crime, o fato de fazê-lo por convicção política não a ajudará. Ao contrário, acho que há algo de hediondo, num país que vive uma transição democrática difícil mas cheio de esperanças, em defender a violência como forma de promover avanços políticos. Mas que se puna com provas convincentes, e depois que a pessoa tiver infringido a lei.
Prender por “precaução” não é válido numa democracia.
Não gosto de ver um bicho engaiolado, que dirá um ser humano?
Apenas assassinos, sequestradores e estupradores deveriam ficar atrás das grades, por razões óbvias.
Por isso, eu achei corajoso, da parte do senador Lindberg Farias, unir-se ao PSOL, legenda que se porta muitas vezes como o pior adversário político do PT, num protesto público contra as prisões arbitrárias.
Alguns críticos chamaram de “oportunismo eleitoral”, outros comentaram: “ah, eleição faz milagres”.
Ora, esses comentários estão certos.
Oportunismo eleitoral, milagres.
Acontece que, sem querer, esses comentários refletem um preconceito antipolítica. É como se alguém, em 1965, acusasse um político que decidisse se opor à ditadura de “oportunista eleitoral”.
Ora, eleições pedem oportunidades, que por sua vez implicam riscos.
Se os petistas compreendem a necessidade de seu partido e suas lideranças de serem “pragmáticos” e “oportunistas” quando se aliam à direita em busca de tempo de TV e governabilidade, devem usar a mesma compreensão quando se trata de defender bandeiras sensíveis do movimento jovem contemporâneo.
É melhor que Lindberg defenda essas bandeiras por “oportunismo eleitoral” do que se aliar à truculência do Estado por outro tipo de “oportunismo eleitoral”.
Há oportunismos eleitorais de um lado e para o outro. Cabe ao cidadão de ideias progressistas apoiar o político cujo oportunismo eleitoral lhe parecer mais sensato, mais democrático e mais humanista.
As bandeiras anárquicas e confusas de setores da juventude podem conter diversos erros de análise, perspectivas históricas equivocadas, exageros retóricos, voluntarismo burguês, etc. Empurrá-las, contudo, para longe da esquerda, criminalizá-las, brutalizá-las, prender seus poucos representantes, não vai trazer nada de positivo.
Essas mesmas lideranças ganharão mais notoriedade, se radicalizarão, e, o que é o pior dos mundos, a doutrina democrática terá sua reputação arranhada.
Meu novo livro de cabeceira tem sido Democracia na América, do Tocqueville.
Quando o político francês chega à América, na metade do século XIX, para estudar sua organização política, a primeira coisa que lhe surpreende, é a aparência de caos do país. Onde ele chegava, havia uma balbúrdia de demandas sociais, algumas inclusive defendidas com violência.
Com sua genialidade, porém, Tocqueville enxerga, através daquela névoa de caos, a luz da liberdade cintilando em todo seu esplendor. Até porque ele, como francês, também testemunhara, em seu próprio país, a liberdade nascendo em meios aos mais violentos tumultos.
E conclui que “não há nada mais fecundo em maravilhas do que a arte de ser livre, mas não há nada mais duro do que o aprendizado da liberdade”.
Continua Tocqueville: “O despotismo se apresenta como o reparador de todos os males; é o suporte das leis; o protetor dos oprimidos e fundador da ordem. Os povos adormecem ao seio da prosperidade provisória que ele faz nascer; e quando eles despertam, estão miseráveis.
A liberdade, ao contrário, nasce de ordinário em meios às tempestades, ela se estabelece penosamente entre as discórdias civis e apenas quando ela já está velha, podemos conhecer seus benfeitos.”
Que lição extraio das palavras de Tocqueville? Que temos de suportar, no limite máximo, as agruras que o sistema democrático nos impõe. Não digo que devemos passar a mão na cabeça de ativistas violentos. Não. Ao contrário. Acho que o Estado deveria ser muito mais eficaz no combate à violência em manifestações, até porque isso as desqualifica.
Prender ativistas com base em acusações genéricas, contudo, ou ainda com base apenas em ideias, isso é absurdo. A liberdade não pode jamais ser o preço da incompetência da polícia.
A violência em manifestações, o uso de máscaras, o voluntarismo político, tudo isso tem sido rechaçado cada vez mais pela sociedade, através de seus instrumentos democráticos e pacíficos de repressão: artigos, entrevistas, depoimentos, enquetes.
O Estado, com sua mão grande e pesada, apenas irá atrapalhar um processo em curso, e elevar à categoria de heróis justamente aqueles que pretende criminalizar.
E, no entanto, não vivemos um tempo de heróis. Nem queremos viver. Queremos um país onde os cidadãos tenham liberdade para tomar suas decisões políticas, inclusive as erradas.
Um Estado que pune o erro político com prisão não é democrático.
Se Tocqueville estiver certo, o barulho que ouvimos hoje nas ruas, todo esse caos que às vezes nos assusta, será um dia lembrado com carinho, como um tempo tumultuoso, onde aprendíamos, a duras penas, a sermos livres.