Publico abaixo, com alguns dias de atraso, o último texto de Wanderley Guilherme dos Santos. E acrescento breves comentários, à guisa de introdução.
O complexo de vira-latas também se manifesta, em nosso colunismo ancien regime, na xenofobia contra os argentinos, compreensível e tolerável como brincadeira popular, mas inaceitável enquanto política editorial de jornalões metido a sérios. A insinuação reiterada de que seria uma “vergonha” entregar a taça à Messi apenas revela a pobreza de espírito da nossa mídia.
O Chile, desclassificado nas oitavas de final, foi recebido com festa pela multidão, tirou selfie com a presidenta. Tudo alegria. Aqui, há um processo de envenenamento diário do povo, através do monopólio da mídia.
Observe como Cantanhede encerra sua coluna de hoje:
“Inacreditável Cristina”?
“Acendendo velas para vitória da Alemanha”?
Inacreditável, por que? Cristina invadiu algum país, como faz EUA e França? Espionou o Brasil? Acho incrível o desrespeito gratuito, puramente adjetivo, contra uma chefe de Estado.
E vem esse “acendendo vela”. Qual o problema em entregar a taça para a Argentina?
Uma mídia responsável não deveria estimular a convivência harmônica entre Brasil e Argentina?
As secretarias de Educação de todos os governos tucanos distribuem milhares de assinaturas da Folha para crianças brasileiras, e é isso que se lhes ensinam? Que um chefe de estado “acende velas” para a vitória da Alemanha, porque a Argentina é feia, má e boba?
Ora, a mídia desinforma. A Argentina tem sido infinitamente mais importante para a economia brasileira do que a Alemanha. A Argentina compra máquinas do Brasil. A Alemanha compra café.
Não estou falando que devemos torcer pela Argentina. Torce-se pra quem quiser. Seria meio ridículo torcer apenas por razões “geopolíticas”. Só estou dizendo que não é vergonha entregar taça para um jogador argentino.
Outra coisa grotesca é essa grita contra uma reforma do futebol brasileiro.
Em primeiro lugar, é óbvio que os jogadores ficaram psicologicamente abalados pela campanha de terror promovida pela mídia. As comissões técnicas, seus familiares, todos estavam com medo, e quando a Copa começou, houve uma reversão de expectativa muito brusca. Toda “vergonha” que se dizia que o Brasil iria passar, com uma organização mal feita, passou para dentro de campo.
Os jogadores não tinham liberdade. O Fantástico fazia até leitura labial do que diziam em campo, nos treinos. A cena de um jogador conversando com o técnico com um tênis sobre a boca, para que a Globo não fizesse leitura labial do que estava dizendo, expressa um ambiente opressivo, um Big Brother exagerado, que prejudicou emocionalmente os atletas.
No dia seguinte à derrota, houve reportagens falando sobre a decisão da Alemanha, anos atrás, de reformar seu futebol, através de intervenção estatal. O governo concedeu subsídios para o país melhorar seus estádios. Acertou a dívida dos clubes, mas impondo modelos rígidos de organização.
Quer dizer que o governo alemão pode intervir, democraticamente, para moralizar o futebol de seu país. O Brasil, não.
Ora, a Globo não quer mudanças no futebol justamente porque o modelo atual lhe beneficia. A Globo ajusta horários de jogos do campeonato brasileiro de acordo com a sua grade de programação. Isso é um absurdo! O povo é obrigado a assistir aos jogos num horário desconfortável, apenas para a Globo não perder anúncios.
O Brasil precisa lutar pelo controle democrático de sua subjetividade.
Nenhum veículo de mídia vai comentar essa matéria, publicada na Economist?
Ao artigo do Wanderley:
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Abaixo o complexo de vira lata!
Há nações capazes de superar seus períodos de subordinação a potências estranhas. Mas há momentos de ruptura em que o viralatismo tem que ser vencido.
Por Wanderley Guilherme dos Santos, na Carta Maior.
O complexo de vira lata existe e com freqüência se disfarça. Por exemplo, é crucial não confundir mudança com retirada, recuo. Avançar na política social é mudança, enfraquecer a Petrobrás, retirada; modernizar a infra-estrutura é mudança, reduzir os planos estatais de investimento, retirada; expandir os canais de participação política é mudança; frear os aumentos do salário mínimo, retirada. Tudo é movimento, mas há uma diferença de natureza entre o movimento para frente e o movimento para trás. A oposição vende gato por lebre ao insistir em mudanças abstratas sem esclarecer a direção delas. No essencial, são todas mudanças para trás, retiradas, recuos, viralatice diante dos desafios.
O complexo de vira lata se manifesta no pânico diante de vitórias históricas. Às responsabilidades assumidas pelos vencedores, os vira latas preferem a glória das derrotas heróicas. Assim foi, registro respeitosamente, com o México diante da Holanda, a Nigéria diante da França, a Argélia diante da Alemanha, e até mesmo com o Chile diante do Brasil, pois aquele chute na trave de Julio Cesar no minuto final da prorrogação e os dois pênaltis perdidos pelos chilenos devem muito à influência do complexo, solicitado em ajuda à competência do goleiro canarinho.
Todos esses times foram recebidos de volta em casa como heróis, quais os trezentos de Esparta, heroicamente derrotados. Ao contrário dos espartanos, se acaso voltassem, contudo, os vira latas temem a igualdade e se auto crucificam como subordinados perpétuos. Não é que não tenham valor e honra, mas falta-lhes algo na hora das grandes decisões. Parece previsão depois do fato, mas é a crônica reiterada dos campeonatos.
No futebol, países vencedores são aqueles que entram em campo com a convicção de que merecem a vitória, independente de clima, horário ou cor da camisa do adversário. Até o último segundo do apito final do árbitro não se curvam à hipótese de que a derrota seja inapelável e de que seja justo perderem para o opositor do momento. Não é fortuito que as emocionantes vitórias nas prorrogações, nos minutos finais e nos pênaltis só tenham beneficiado vencedores reconhecidos. O complexo independe de diferenças econômicas. Estou inclusive inclinado a listar a Suíça como vítima circunstancial de viralatismo futebolísitico, recaída no papel tradicional de ir embora mais cedo.
Assim fora do campo como dentro dele. Há nações capazes de superar seus períodos civilizatórios de subordinação econômica e cultural a potências estranhas. Mas há momentos de ruptura em que o viralatismo tem que ser vencido para que os povos adquiram autonomia de julgamento e conduta. Por qualquer análise isenta o Brasil tem enfrentado nos últimos anos precisamente um desafio de tal magnitude. Diante da oportunidade de ingressar em patamar superior de coexistência internacional, é fundamental que forje a convicção de ser um País vencedor, potente por sua economia, cultura e sociedade, e em busca da igualdade em todas as arenas. E não se trata estritamente de futebol, porque os vencedores, ocasionalmente, também perdem uma partida. Perdem, mas não cabisbaixos, conformados, apenas adiam a decisão para futuros embates.
Do mesmo modo na vida aqui fora. Há que ignorar os vira latas que entregam o jogo antes mesmo que comece. Há que mudar para frente, sempre, pois o tempo não para, interessa é saber onde se encaminha e orientá-lo em nosso favor. Os distraídos, ou de má fé, talvez não se dêem conta de que, no fundo, aderiram à corrente do “não vai ter País”, facção com que a comunidade brasileira tem se havido, e vencido, ao longo de sua história. É o partido do “não vai ter indústria”, da década de 50, do “não vai ter petróleo e ferro”, dos anos setenta, do “não vai ter democracia”, dos anos 80, da Constituição de 88. Assim tem sido neste século XXI: o governo de um metalúrgico seria um fracasso, e foi o que se viu: o início da maior transformação social na história brasileira, que, aliás, não pode ser reduzida à baboseira oposicionista de que vai manter o que estiver certo nas políticas sociais do governo. Não existe “política social do governo” dissociada de sua ideologia nuclear de governar para os mais carentes, seja nas decisões de política social, econômica ou internacional. Está em curso magnífica transformação da pirâmide brasileira e esse é o sentido da mudança que deve continuar.
Quem governa em busca da vitória aceita com humanidade a glória e admite alguns escorregões na travessia. A política dos vira latas prefere recuar, propor “remédios heróicos”, e quando ganha uma pequena batalha aqui ou ali “é por milagre”. Milagre é a esperança de sobrevivência dos vira latas. O Brasil não deve ganhar seu futuro por milagre, mas por convicção.