O título é o mesmo de um livro de Marcelo Mirisola. Sempre achei um belo título, por se tratar de uma expressão exótica, dessas que, aparentemente, nunca usaremos numa situação normal.
Mas eis que, finalmente, encontro oportunidade de usá-la.
Faço-o neste brevíssimo prefácio para um texto de Mario Magalhães, que esteve no jogo de Brasil e Chile, e produziu comentários argutos sobre tática de jogo, o nervosismo dos atletas, e a enervante homogeneidade racial da torcida.
E, especialmente, sobre o heroi da partida.
O texto de Magalhães me inspirou até um haikai:
Julio Cesar, querido.
Nosso heroi, enfim,
devolvido.
*
Meninos, eu vi: aqui no Mineirão, um povo anistiou seu herói
Por Mário Magalhães, em seu blog.
Em meio a hits do Skank e do Michael Jackson, e antes de os alto-falantes tocarem aquela música do filme ‘Meu Malvado Favorito 2’, o Mineirão ouviu a voz de Lulu Santos cantando “Assim Caminha a Humanidade”.
As caixas ecoaram:
Ainda vai levar um tempo
Pra fechar o que feriu por dentro
Natural que seja assim
Tanto pra você
Quanto pra mim.
Eram 11h, e a delegação brasileira só chegaria ao estádio meia hora mais tarde.
Portanto, Júlio César não ouviu a linda canção de Lulu.
O goleiro fora demonizado na Copa de 2010 com um dos malvados (não) favoritos da torcida nacional, atrás somente de Felipe Melo, o vilão tresloucado.
Poucos se lembraram de que Júlio não falhou sozinho no gol fatal holandês. Ele caiu em depressão, os clubes europeus o desprezaram, e a antiga revelação rubro-negra acabou num time canadense. Para a Copa em casa, Felipão e Parreira apostaram nele.
Às 12h11, quando Júlio César e seus companheiros de posição desgraçada, os que batalham “onde a grama não cresce”, entraram em campo para se aquecer, provavelmente ele não avistou um cartaz entre os poucos milhares de torcedores chilenos aqui: “Mineirazo: Hoy hacemos historia”.
Se a equipe de Alexis Sánchez fizesse história eliminando o Brasil, sucumbiria o sonho de Júlio César de dar a volta por cima.
Os três goleiros foram saudados pelo público: “O campeão voltou, o campeão voltou…”.
Alguns poucos torcedores do Atlético tentaram puxar o coro: “Puta que pariu, é o melhor goleiro do Brasil: Vítor!”.
Sendo ou não, o coro em prol do reserva da seleção não pegou.
O goleiro chileno Bravo pisou no gramado às 12h16 e saudou seus compatriotas nas arquibancadas.
Com exercícios na grande área que aparece à esquerda na transmissão da TV, os brasileiros aceleravam. Então, às 12h23, eles pararam.
Graças ao convite de um amigo generoso, eu estava na terceira fila grudada ao campo, na altura da marca do pênalti e no lado oposto ao dos bancos de suplentes. Tuitei em menos de 140 toques o que acabara de ver:
“Em tuas mãos: no aquecimento, Vítor se aproxima de Júlio César e lhe conta, apontando com um dedo, os segredos do gramado do Mineirão”.
Quando o telão e o locutor anunciaram as escalações, o brasileiro mais aplaudido foi Neymar. Em seguida, na escala de decibéis, equivaleram-se David Luiz, Fernandinho e Fred. Foi pelo menos o que eu ouvi.
Felipão, que afiançara o desacreditado Júlio César, foi muito aplaudido. Certamente, não por esse motivo.
Com o sol da uma da tarde, o prejuízo inicial foi do arqueiro do Brasil, virado para a luz mais intensa e cegante.
Pouco depois de David Luiz abrir o placar, aos 17 min, Bravo reuniu seus companheiros. Conferenciou, orientou, motivou.
O chileno se preparava para bater os tiros-de-meta, e uma parcela da torcida mostrava que aprendeu a provocação trazida pelos mexicanos, brindando-o com um sonoro “puto!”.
No empate chileno, aos 31 min, o gol de Sánchez foi rebatido com gritos de “Brasil!”.
Breves, como quase sempre, com uma audiência sem calça puída de frequentar os velhos estádios de futebol _ou, vá lá, as novas arenas.
Logo escutei um resmungo de um espectador contra Júlio César.
No intervalo, como antes do jogo, o gramado foi regado. É ótimo para a bola correr. Mas não sei se os goleiros aprovam a medida ou a julgam temerária.
Como eu não paro de fazer anotações, mais por vício que por virtude, dois sujeitos com a camisa do Brasil me peitaram, indagando se sou olheiro. Queriam dizer espião de outra seleção. Não respondi, e eles deram de ombros: “Se fosse, a gente ia rasgar tudo”.
Uma das poucas desvantagens de ver futebol no estádio ocorre em momentos como o dos 9 min do segundo tempo. O árbitro Howard Webb anulou um gol de Hulk, e eu não soube se o inglês acertou ou nos garfou.
Lance controverso, o telão não o repetiu.
O bis só é exibido quando serve para referendar o árbitro, como no gol legal de David Luiz.
Não demoraria para o meu pai telefonar e chamar o juiz de “um tremendo sem-vergonha”.
Uma filha também ligou, porém disse ter ficado na dúvida.
Sim, amigos, o celular, incluindo o 3G, funcionou muito bem. Num estádio belíssimo, de assombrar a quem, como eu, já cobriu confronto de Copa em cancha com dimensões fora das especificações da Fifa (nos Estados Unidos, em 1994).
Bola que rola.
Sem mais nem menos, um menino de uns dez anos, bem na fila de trás, explicou para o pai por que Júlio César é “ruim”: joga no Toronto.
Ele não aprendeu sozinho. Há quatro anos o Brasil malha o jogador que viveu seu auge vestindo luvas na Internazionale de Milão.
Aos 18 min da segunda etapa, o camisa 12 salvou, e o Mineirão se curvou: “É… Júlio César! É… Júlio César!”.
A trilha sonora era só a do futebol, mas foi como se continuasse a canção de Lulu:
Ainda leva uma cara
Pra gente poder dar risada.
O tempo regulamentar acabou, e os torcedores chilenos gastaram o gogó, sobrepujando os brasileiros, mais quietos.
O contra-ataque, uma vez mais, foi com o “Sou brasileiro, com muito orgulho, com muito amor…”.
Parece ladainha de procissão, e não grito de guerra.
O estádio ficou de pé ao cantar novamente o hino nacional, e principiou a prorrogação.
“Sai do chão, sai do chão, quem é pentacampeão”, berraram milhares de torcedores, sem contagiar a maioria, que permaneceu inerte.
A despeito da combatividade maior dos visitantes, eles estavam em franca minoria entre os 57.714 presentes. Foram sufocados pela massa brasileira.
Um antropólogo se divertiria no Mineirão. Todo mundo já sabe, mas a impressão é de estarmos numa festa da corte nos tempos da escravidão: quase só aparecem convidados de pele clara. Testemunhei raros negros na plateia.
No Brasil do ex-esporte bretão, o lugar de negros e mestiços é como jogador e massagista, e não com ingressos da Copa de 2014.
Daniel Alves errava e se escondia. Marcelo errava, mas chamava o jogo. Quase ao nível do campo, eu não acreditava na impulsão de Medel, zagueiro-mola, um nanico que ganhava as bolas no alto. E contemplava a ousadia de quem cultiva a bola no pé, como os chilenos. Torcia para Neymar resolver na frente e Júlio César nos salvar atrás.
Duas filas à minha frente, um cidadão na cadeira destinada a deficientes pulava e caminhava sem nenhum constrangimento físico.
O futebol, de fato, obra milagres.
No último lance do primeiro tempo da prorrogação, Alexis Sánchez chutou para fora, e um cidadão surtou:
“Esse goleiro é vagabundo!”.
Referia-se, nonsense, a Júlio César.
Mudança de lado e, aos 5 min, o estádio vociferou “Eu acredito!”.
Novos tempos do futebol, com menos palavrões. Clima de vôlei, não de várzea.
No finalzinho, bola no travessão de Júlio.
Não entrou, e os brasileiros se uniram numa prece:
“É… Júlio César! É… Júlio César!”.
Vieram os pênaltis, e todo mundo já sabe: Brasil 3 a 2, com duas defesas do goleiro canarinho.
Assim é o futebol: jogo tecnicamente mais ou menos, uma seleção sem brilho, Neymar solitário, mas um épico de maltratar os corações cá nas Minas Gerais.
Na terra onde jogam ou jogaram Fred, Jô e Bernard, a torcida gritou o nome de Júlio César.
Olhei para trás e reconheci o menino, ao lado do pai.
Com carinho, disse-lhe: “O Júlio César joga no Toronto, mas é fera”.
O garoto, simpático, prosseguiu sorrindo.
Com a prece transformada em ovação, o estádio tremia _no espírito, e não no concreto: “É Júlio César!”.
O herói acenava, mas a multidão não o deixava partir.
O público branco do Mineirão não tem a cara mestiça brasileira, mas hoje falou por um povo. Quatro anos depois, Júlio César foi anistiado.
Ele teve tempo para isso. Barbosa, bode expiatório da derrota de 1950, não ganhou a chance da Copa redentora.
Ao contrário da música de Lulu Santos, a história de Júlio César teve _até agora_ final feliz.
Olhei para o campo, e ele ainda estava lá.
Enchi o peito e me pus a aclamá-lo: “Bravo! Bravo! Bravo!”.
Mais longe, o chileno Bravo acenava para seus conterrâneos.
Bravo jogou muito bem, mas hoje seu nome cairia melhor no oponente.