O Brasil ganhou da Croácia e quase tudo deu certo na estreia da Copa. A um grupo de endinheirados truculentos coube o papel de nos fazer passar vexame.
Nenhum brasileiro foi tão lembrado ontem e hoje como Nelson Rodrigues. Os elementos de suas crônicas estavam todos lá: os vira-latas, os grã-finos, as vaias, o futebol, a vitória da seleção. A própria Dilma encarnou a heroína rodriguiana. Aliás, de repente nunca ficou tão claro como Dilma nos lembra um personagem de Nelson. Desajeitada, sem graça, trabalhadora, esforçada, ética. Sujeita a terríveis pressões políticas, morais, psicológicas. Nosso maior assombro é que Dilma sobreviva a tudo isso.
Nelson comentou, certa feita, uma experiência similar sofrida por Paulo Cézar Caju, ponta-esquerda da seleção, na Copa de 70:
Paulo Cézar sofreu uma experiência inédita: — uma vaia de noventa minutos. Isso corresponde a um linchamento. Só não entendo, até hoje, como ele conseguiu sobreviver. Nem se pense que foi ele o único. Mas não vamos amaldiçoar as vaias ao escrete. Elas o ?zeram, elas o virilizaram. A jornada brasileira no México é uma vingança contra as vaias.
A mesma coisa valerá para Dilma. Se sobreviver a esta nova onda de hostilidades da classe média, ela poderá emergir fortalecida pelo sofrimento.
Nelson diria que os xingamentos “humanizaram” a presidente. Ela voltou a ser um igual, uma sofredora. O Brasil não amanheceu pensando na seleção. Amanheceu pensando em Dilma. Com raiva, com pena, com solidariedade, não importa o sentimento. Todos acordaram pensando nela.
Em junho de 1970, Nelson iniciava sua coluna diária assim: “Por que o Brasil não gosta do Brasil e por que nos falta um mínimo de autoestima? É a pergunta que me faço, sem lhe achar a resposta.”
Em seguida, Nelson analisa a Passeata dos Cem Mil, com uma crítica à esquerda. Uma crítica correta, sobretudo quando a lemos hoje:
Quem quiser entender as nossas elites e o seu fracasso encontrará nos Cem Mil um dado essencial. Não havia, ali, um único e escasso preto. E nem operário, nem favelado, e nem torcedor do Flamengo, e nem barnabé, e nem pé-rapado, nem cabeça de bagre. Eram os ?lhos da grande burguesia, os pais da grande burguesia, as mães da grande burguesia. Portanto, as elites.
Só que a “passeata dos 100 mil”, hoje, não se identifica mais com a esquerda. A classe média brasileira continua bipolar. Num dia, marcha com a família e pede o fim do governo. No outro, marcha com os intelectuais e pede o fim da ditadura.
Um dia acha o governo Dilma o melhor de todos os governos: uma mistura benigna da solidariedade do PT para com os mais pobres, somada à severidade em relação à imagem na mídia dos tucanos.
Sim, durante um bom tempo, os segmentos de maior renda deram ao governo Dilma a maior aprovação que talvez já tenham dado a uma administração.
Em abril de 2012, 70% das famílias com renda superior a 10 salários consideravam o governo Dilma “bom ou ótimo”; apenas 2% consideravam-no “ruim ou péssimo”. Hoje, 48% acham seu governo ruim e apenas 23% gostam dele.
Não vou falar hoje das notórias falhas de comunicação do governo Dilma. Mas vou trazer alguns dados interessantes que andei estudando nas últimas horas.
É interessante analisar, por exemplo, as licenças televisivas vendidas pela Fifa para a Copa.
Em quase todos os países europeus, com exceção da França, a Copa será exibida por canais públicos. Na Inglaterra, será, naturalmente, a BBC. Na Alemanha, o ARD. Na maioria dos outros, será o EBU, o canal público da União Europeia.
No caso da França, será o TF1, um canal que pertencia ao Estado até o final dos anos 80, quando foi privatizado, mas guarda ainda a sobriedade de um canal público.
Nos EUA, a licença foi vendida para a ABC, o maior canal aberto do país. Isso me despertou a curiosidade para saber como é a ABC, como ela se porta politicamente. Então descobri análises (aqui também) que mostram a ABC como um canal de perfil pró-democrata, o que, nos EUA de hoje significa estar alinhado à esquerda no espectro ideológico médio nacional. Agradou-me, sobretudo, o fato de uma instituição renomada como a Pew fazer pesquisas tão detalhadas sobre as empresas de mídia nos EUA, analisando o viés político e ideológico de cada uma. No Brasil, a mídia não é pesquisada, não é debatida, não é analisada, a não ser pela blogosfera “suja”. A mídia brasileira paira acima do bem e do mal.
Aliás, acabei descobrindo várias coisas interessantes sobre a mídia norte-americana, que podemos discutir depois, sobretudo a partir desta pesquisa Pew, bastante recente.
Rápida digressão.
Há uma outra pesquisa extremamente interessante da Pew, que vamos debater aqui em breve, que fala do forte aumento da polarização política nos EUA, com mais republicanos se dizendo de direita e mais democratas se dizendo de esquerda. Parece que é uma tendência global, e o Brasil pode estar também entrando nessa onda.
“Hoje, 92% dos republicanos estão à direita do democrata médio, e 94% dos democratas estão à esquerda do republicano médio”, diz a pesquisa.
Alguns gráficos:
Voltando ao Brasil e ao jogo de ontem, os xingamentos à presidenta corresponderam, de certa maneira, a uma vingança do “controle remoto”. A Globo é a única licenciada para exibir os jogos. Ela vendeu o direito à Band, mas a sua hegemonia na cobertura televisiva do evento é absoluta.
Dilma disse que, se não gostássemos de um canal, podíamos usar o controle remoto. E agora, que a Copa só pode ser vista praticamente num só canal, na Globo? Cadê o poder do controle remoto?
Durante 30 dias, a Globo terá um poder monstruoso sobre a sociedade brasileira. E ela não irá usá-lo com moderação, como já deixou bem claro. Há tempos que esta Copa se tornou a mais politizada da história. Muito mais até do que em 1970, na ditadura. Em 70, não havia eleições, a imprensa era controlada (ou auto-controlada) e a disputa simbólica não tinha tanta importância. As Copas recentes aconteceram em países distantes. Não era interesse da mídia mostrar seus problemas, apenas faturar o máximo com o evento.
À presidente, na minha opinião, cabe entender que o xingamento que recebeu não foi apenas à sua pessoa. Todos nós, que defendemos políticas sociais para os pobres, também fomos xingados. Sim, porque a Dilma que foi xingada não foi aquela que fez omeletes com Ana Maria Braga. A Dilma que foi xingada foi a Dilma que aumentou o bolsa família, que expandiu os investimentos em educação e que levou médicos a regiões e cidades que nunca viram um em séculos.
A Dilma que foi xingada foi a protagonista do processo mostrado no gráfico abaixo:
Observe que, em 1992, os 50% mais pobres detinham 13,11% da renda nacional; ao fim de 2002, sua participação diminuíra para 12,98%. Ao final de 2012, atingiu o recorde de 16,36%.
Aí houve uma crise de pânico da classe média, porque chegamos, talvez, ao limite onde o pobre não irá avançar sem tirar do rico. É o que já começou a acontecer. Quando a empregada doméstica começa a erguer a cabeça para responder ao patrão, e a exigir não apenas salário maior mas uma relação profissional mais igualitária, aí sim a classe média sente que o processo de mudança está afetando, diretamente, sua qualidade de vida. A classe média brasileira está apavorada diante da possibilidade de ter de arrumar a própria casa.
E os pobres que ascenderam à classe média talvez estejam absorvendo os mesmos valores. É o sentimento egoísta de querer trancar a porta depois de entrar na festa. Só que a festa não acabou. O Brasil ainda é um dos países mais desiguais do mundo. Ainda há muito pobre do lado de fora.
É importante entender: o que assistimos ontem no Itaquerão não foram vaias. Não foi sequer um xingamento. Aquilo foi uma declaração de guerra. A luta de classes voltou com muita força no Brasil, com todos os seus graves riscos à estabilidade social e política.
A democracia é um regime arriscado, até porque tem a vantagem de poder corrigir seus erros em seguida. Tocqueville observava que “a democracia não pode obter a verdade de outra forma que não pela experiência”. No caso dos Estados Unidos, diz ele, o grande privilégio de seu povo “não era ser mais esclarecido que outros, mas ter a faculdade de cometer erros que podiam ser corrigidos em seguida”.
O escritor nos lembra ainda que as nações não envelhecem da mesma maneira que os homens, pois “cada geração que nasce é como um povo novinho em folha que se oferece às lideranças políticas”.
Esse é o grande trunfo da oposição, e Lula tem repetido isso frequentemente. A sociedade mudou, porque há novas gerações de eleitores, que já não carregam, na memória da carne, as dores causadas pelos maus governos anteriores, dos governos apoiados por nossas mídias.
As eleições deste ano serão as mais classistas da nossa democracia. Dilma ganhará com os votos daqueles que ainda não entraram na festa, dos pobres que ganham até um salário mínimo, dos nordestinos, das populações das cidades pequenas, das franjas miseráveis das periferias urbanas.
Por isso é tão importante que haja um movimento efetivo para democratizar a mídia, para que os valores e os projetos interessados no destino da parte mais pobre da população não fiquem abafados pelos xingamentos da Casa Grande.
É importante que o governo entenda que democratizar a mídia não é um debate político, não é uma teoria acadêmica, não é uma polêmica desagradável, que “pega mal” na mídia. Não adianta a presidenta dizer que aceita discutir uma regulamentação “econômica” da midia, ou o PT incluir o tema na campanha.
A democratização da mídia, estamos avisando há tempos, é urgente. Não interessa se é ano de eleição. Aliás, justamente pelo fato de ser ano de eleição ela ganha uma urgência trágica, porque o ambiente midiático atual apenas favorece a Casa Grande, que ampliará seu poder, obterá vitórias políticas e tratará de afastar o tema da pauta. Teremos que esperar mais uma década para voltar a discuti-lo.
Os esquálidos, as grã-finas, os truculentos, os que se comprazem em pagar quase mil reais para xingar a presidenta, os que idolatram o “justiceiro” Joaquim Barbosa, estão armados até os dentes para defender seus interesses. Para eles, agora vale tudo. Dilma pode ter mais tempo de TV, mas a oposição terá a grande inteira de programação.
O governo, mais que nunca, dependerá da combatividade de seu exército liliputiano, de seu exército mambembe, machucado pelos bombardeios diários da imprensa conservadora, criminalizado, chamado de “guerrilha”, sujeito a todo tipo de devassas judiciais, atacado por hackers mercenários, ridicularizado quase diariamente pela grande mídia, que também tem narinas de cadáver. Um exército de garrinchas de perna torta, de cachaceiros, de cidadãos cujo único patrimônio é sua criatividade.
Numa de suas crônicas, Nelson lembra que a vitória de 62, proporcionada por Garrincha, permitiu “ao mais indigente dos brasileiros tecer a sua fantasia de onipotência”, e que “as multidões, sem que ninguém pedisse, e sem que ninguém lembrasse, as massas derrubaram os portões”.
O gráfico abaixo, feito a partir dos últimos números do Ibope para o provável segundo turno das eleições deste ano, nos dão uma ideia de que lado, ao menos por enquanto, estão as “massas”…