Lima Barreto e o “jornalismo de campanha”

Em texto publicado no site do Observatório da Imprensa, Luciano Martins faz uma observação interessante. No sábado, o Estadão criticou os metroviários por exigir reajuste acima da inflação, e deu um número baixo para inflação até abril, mês base para os salário da categoria.

Só que o próprio Estado, quando na divulgação daquele número pelo IBGE, não tinha dado esse número. Tinha dito que a inflação estava alta, ascendente, etc. Ou seja, o “jornalismo de campanha” entra em contradição permanente consigo mesmo, porque seu objetivo não é mais dar informação, e sim cumprir um objetivo político-eleitoral, que é tirar o PT do poder.

Eu só faria uma ressalva ao raciocínio de Martins. O jornalismo brasileiro sempre foi assim. Leia o primeiro romance de Lima Barreto, Recordações do Escrivão Isaías Caminha. Uma vez, eu escrevi um post sobre o assunto, em meu blog antigo, o Óleo do Diabo. Destaco alguns textos (do romance, não do meu post).

A Imprensa! Que quadrilha! Fiquem vocês sabendo que, se o Barba Roxa ressuscitasse, só poderia dar plena expansão à sua atividade se se fizesse jornalista. Nada há tão parecido como o pirata antigo e o jornalista moderno: a mesma fraqueza de meios, servida por uma coragem de salteador; (…) um olhar seguro, uma adivinhação, um faro para achar a presa e uma insensibilidade, uma ausência de senso moral a toda prova… E assim dominam tudo, (…) fazem que todas as manifestações de nossa vida coletiva dependam do assentimento e da sua aprovação. Todos nós temos que nos submeter a eles, adulá-los, chamá-los gênios, embora intimamente os sintamos parvos, imorais e bestas… (…) E como eles aproveitam esse poder que lhes dá a fatal estupidez das multidões! Fazem de imbecis gênios, de gênios imbecis; trabalham para a seleção de mediocriades (…)

Lima ainda parece mandar um recado, lá do início do século XX, para nosso amigo Ali Kamel:

Pelos longos anos que estive na redação do O Globo, tive a ocasião de verificar que (…) a submissão dos subalternos ao diretor de um jornal só deve ter equivalente na administração turca. É de santo o que ele faz, é de sábio o que ele diz. Ninguém mais sábio e poderoso do que ele na terra.

E agora uma citação do meu post:

O primeiro jornal que o protagonista conhece é O Globo (jornal fictício, o real seria fundado apenas em 1925; o Globo e o diretor ao qual o narrador se refere são, na verdade, o Correio da Manhã e seu proprietário, Edmundo Bittencourt), para onde vai atrás de um emprego que um dos jornalistas, que conhecia, havia lhe prometido. Caminha está sem comer há dois dias e espera seu amigo, que estava fora da redação naquele instante. Ouve as conversas dos jornalistas. E o narrador (o próprio personagem, mais velho), enquanto isso, faz comentários sobre a fundação daquele jornal. Esse é um trecho interessante também, mas não copiei. Ele diz que O Globo fora criado há pouco tempo, pela iniciativa de um playboy nunca antes vinculado ao jornalismo ou à literatura. E logo chama a atenção do público pela virulência com que passa a atacar o governo e as autoridades. A redação do Globo, diz o narrador, funcionava com um pequeno exército. O general (o dono do jornal) escolhia suas vítimas entre as espécimes da classe política e ordenava que seus soldados disparassem impiedosamente contra o alvo. Todos trabalhavam com esse objetivo, inclusive os comediantes, ou chargistas, que se encarregavam de aplicar o tiro de misericórdia na vítima já combalida, em retirada.

*

Um punhado de contradições

Por Luciano Martins Costa em 09/06/2014 na edição 801, no Observatório da Imprensa.

Comentário para o programa radiofônico do Observatório, 9/6/2014

Quando o jornalismo se desvia de seus princípios, sendo instrumentalizado como recurso para outros fins que não a criação de conhecimento, entra-se numa zona cinzenta onde se torna difícil vislumbrar a realidade.

Um dos sinais dessa circunstância, na qual a busca da objetividade perdeu espaço para a perseguição de objetivos políticos ou econômicos, é a eclosão de contradições aqui e ali, que vão minando a confiança por parte daquela fração do público ainda capacitada a interpretar o noticiário. Por exemplo, quando um jornal passa meses insistindo que o país vive imerso na inflação e na carestia, e de repente precisa afirmar que a inflação, afinal, não é assim tão grave, um texto é suficiente para invalidar todos os discursos anteriores.

Ou quando outro jornal, diante de manifestações violentas, exige uma ação mais rigorosa da polícia e, no dia seguinte, se vê obrigado a dar um passo atrás, porque o rigor preconizado acabou gerando mais violência, agora contra seus próprios repórteres, o que fazer da verdade anterior?

Situações como essas podem ser observadas na imprensa brasileira quase diariamente, e refletem um aspecto determinante da prática que pode ser chamada de “jornalismo de campanha”. Como numa guerra, a atividade da imprensa hegemônica do Brasil tem sido marcada pela obsessão em tirar do poder o grupo político que chegou ao Planalto em 2002, pela via democrática das eleições.

Como não há justificativa possível para um golpe como o que foi patrocinado e insuflado pela imprensa em 1964, trata-se de minar a confiança do eleitor com a construção de um cenário catastrofista. O objetivo é implantar a insegurança nas classes médias, sempre mais vulneráveis a crises, porque seus integrantes, empenhados em consolidar o bem-estar conquistado a duras penas, tornam-se suscetíveis a variações bruscas em suas rotinas.

Porém, quando a campanha do pessimismo passa do ponto e começa a ameaçar os interesses do negócio jornal, o discurso muda subitamente.

Escolhendo o pior

Observe-se, por exemplo, como o noticiário sobre a inflação traz uma mistura deliberada de análises que ignoram variações sazonais de preços e a volatilidade característica de países cuja economia depende muito do mercado interno de consumo. Registre-se, também, como uma campanha explícita pelo aumento da taxa oficial de juros ou do câmbio acaba produzindo uma situação incômoda para as empresas, e de repente o discurso muda de direção.

Circunstâncias como essas podem ser encontradas reiteradamente nos arquivos da imprensa. Mas, ainda que o leitor possa apenas vasculhar jornais de dois ou três dias atrás, vai identificar essas variações até mesmo nos editoriais. Veja-se, por exemplo, o que publicou o Estado de S. Paulo no último fim de semana: no sábado (7/6), para contestar os metroviários que deflagraram uma greve na capital paulista, o diário afirma que a reivindicação de 16,5% de aumento salarial é escandalosa, porque a inflação ficou em 5,2% nos 12 meses encerrados em abril – a data-base dos metroviários.

Então, o leitor atento corre a procurar a manchete na qual o Estado teria informado o público de que a inflação havia caído em abril – e vai ficar muito frustrado, porque, naquela ocasião, o jornal escondeu essa informação em meio a previsões alarmistas.

Ora, se a informação é boa como argumento contra os grevistas, também deveria ter sido destaque no noticiário – ou não interessa arrefecer a campanha de terror sobre uma suposta carestia? No dia seguinte ao desse editorial, domingo (8/6), o tema inflação volta à página de opiniões do jornal, sob o título: “Inflação ainda ameaça”.

Vai o leitor prestigiar o editorialista e se depara com um texto no qual se afirma que também a inflação de maio foi mais baixa do que o esperado pelos analistas – subiu 0,46%, “bem menos que em abril”. Note-se: desta vez, o editorial evitou a análise ano a ano, e optou por comparar dois meses seguidos.

Evidentemente, esses números, isoladamente, pouco falam sobre o que irá acontecer no futuro próximo, porque, numa sociedade onde um grande contingente de indivíduos amplia seu potencial de consumo, ocorrem movimentos bruscos de preços conforme a demanda massiva. Mas pode-se apostar que, se houver duas alternativas, a imprensa vai escolher a projeção mais pessimista.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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