Nós, que escrevemos diariamente sobre política precisamos tomar muito cuidado para não nos tornarmos neurastênicos. Até porque a tendência é esta. Tantas intrigas, frustrações, mentiras, traições, embora pontuadas por seus raros contrários positivos, exigem um grau de resistência física e espiritual que poucos possuem.
Por isso, é tão comum, em momentos de tensão, manifestações de desistência. “Chega, cansei, desisto, não quero saber de mais nada”, são frases comuns, vindas de ambos os lados.
A vida já é dolorosa por natureza. Conectar as dores individuais às dores da coletividade, por isso mesmo, é quase um gesto de insanidade. Mas é esta loucura que dá liga à democracia, que a impede de se tornar uma doutrina puramente burocrática e ser, ao menos num grau mínimo, um sistema que permite a um cidadão, ou grupo de cidadãos, influenciar concretamente os rumos das políticas públicas.
Cada um de nós guarda um conjunto de ideias sobre como o Estado deveria resolver este ou aquele problema. E a tensão se dá não apenas quando uma autoridade que você ou seu grupo não elegeu começa a tomar decisões frontalmente adversárias às nossas crenças. A luta para harmonizar o fluxo das vontades individuais num conjunto equilibrado de vontades sociais coletivas, não acontece apenas de fora para dentro. A democracia implica, necessariamente, em ajustes internos das forças políticas, em lutas intestinas.
Quer dizer, não há apenas uma oposição versus situação. Há conflito e deve haver conflito, no interior de cada oposição, e no interior de cada situação. Em cada escola, em cada hospital, em cada núcleo partidário ou sindical, existe um microuniverso onde estão em jogo forças muito maiores, muito mais importantes, do que seus atores imaginam. Uma mudança na política de uma escola de periferia, por exemplo, pode gerar uma pequena melhora que será decisiva para que uma determinada criança suba alguns degraus culturais e, mais tarde, torne-se um grande cientista, cujos feitos serão determinantes para o futuro do país, ou mesmo do mundo.
Estes conflitos se dão inclusive dentro de nós mesmos. O trabalho que eu faço aqui, por exemplo, apesar das suas vantagens em termos de liberdade, traz algumas dificuldades que gostaria de partilhar com vocês, até mesmo para que eu as entenda melhor, e possamos construir um ambiente mais arejado de debate político.
Por exemplo, de cara eu me deparo com uma tensão natural entre o repórter investigativo, o colunista de opinião e o estrategista político. Num grande jornal, cada uma dessas funções são exercidas por departamentos diferentes, o que gera tanto problemas como vantagens.
O repórter faz suas investigações sem se preocupar, em tese, com sua própria opinião. Mas o seu trabalho é orientado. É o que faz os jornalões deixarem repórteres acampados por dias a fio na porta da Papuda, e não haver um jornalista para encher o saco na porta da casa de Robson Marinho, do Tribunal de Contas de São Paulo, envolvido até o pescoço nas denúncias do trensalão.
O colunista político dá suas opiniões com relativa liberdade, mas uma liberdade vigiada e pre-acordada com a direção do jornal e com seus interesses políticos e econômicos. E, sobretudo, este colunista não investiga nada. Ele apenas repete, qual papagaio, informações que ele pega nos jornais. Ele não tem compromisso com a objetividade. E caso não seja um daqueles colunistas contratados para exercer um pequeno (embora sempre importante) contraponto numa redação (é o caso de Ricardo Mello e Janio Freitas, por exemplo; o Globo não tem sequer figuras assim), você tem de escrever segundo a linha dominante no jornal. Na maioria das vezes, você é contratado por demonstrar essa afinidade.
A estratégia política é monopólio dos proprietários dos jornais e empresas de mídia em geral. Estes se reúnem com as cúpulas de governos, com grandes empresários, e conspiram dia e noite. Sempre o fizeram.
Um blogueiro, como eu, é meio que isso tudo, guardadas as proporções liliputianas. O profissionalismo no meu trabalho está em ser transparente. Quando faço um trabalho de investigação, revelo as fontes, publico os documentos e procuro sempre deixar claro qual é a minha opinião e qual é o objeto investigado.
Quando faço colunismo político, novamente procuro ser transparente, embora navegando em terreno mais subjetivo e mais dialético. Minhas opiniões são bastante evidentes. Pago um preço alto por isso: sou chamado de governista e petista, e meus protestos contra isso em geral são tão ridicularizados que já desisti de me defender. No entanto, é melhor pagar esse preço do que vender uma imparcialidade oleosa e hipócrita. Mesmo quando eu critico o governo, meus adversários entendem como a crítica de um governista contra o governo. Ao menos, contudo, as pessoas vêem alguma coerência em meus escritos, e isso faz com que o blog seja lido e respeitado até por adversários (embora dificilmente eles irão admitir isso). Além do mais, há um preconceito antipolítica e antidemocrático quando se “acusa” um blogueiro de governista. Afinal, a sua identificação ideológica se dá, naturalmente, com um governo eleito, e este mesmo blogueiro se converterá em oposicionista em outra situação política.
Setores do jornalismo convencional parecem mesmo acreditar no conto-de-fadas de que as empresas para as quais trabalham são “apartidárias” e “imparciais”. Não são.
Aliás, vale uma pequena digressão para falar da relação complicada entre intelectuais e corrupção. Sou da opinião que os intelectuais, aí incluindo jornalistas, colunistas políticos, escritores, artistas e blogueiros, não deveriam opinar levianamente sobre corrupção, porque eu observei que, tanto hoje, como ao longo de toda a história da intelectualidade, não existe figura mais corruptível do que um intelectual. Explico: é difícil achar um rico intelectual. Se eu fosse rico, talvez não tivesse perdido os melhores anos da minha vida enterrado em livros de filosofia, história, literatura, aprendendo línguas a duras penas. Lembro-me de uma entrevista com Céline, o terrível e incompreendido Céline, que, ao ser perguntado porque escrevia, respondeu singelamente: porque preciso ganhar dinheiro; não fosse isso, já teria parado há tempos. Às vezes eu me pergunto, seriamente, se eu teria a disposição de remexer diariamente nesse chorume da imprensa brasileira não fosse a necessidade de me sustentar de alguma forma, e a generosa, quase piedosa, disposição dos internautas, de compensar meus esforços investindo em assinaturas do blog. Esta talvez seja a razão de não ter interesse sequer em apostar na Megasena: tenho medo de ganhar e trocar imediatamente o trabalho no blog por uma vida de playboy em Paris, Nova York, passeios de iate ao longo do Mar Egeu. Tudo isso, após indenizar magnificamente cada assinante, e criar uma fundo de assistência aos pobres para confortar os escrúpulos de um ex-esquerdista pobre…
Sendo assim, quase todo intelectual é pobre, mas não pobre o suficiente para ser resignado com a pobreza. O intelectual é alguém que passa a vida cheirando o aroma que se desprende da mesa dos ricos. E, no entanto, não é exatamente um materialista. Ás vezes, é o mais ascético, o mais puro, o mais capaz de renunciar a tudo, em troca de paz, silêncio e ócio, caso sejam estes seus objetos de prazer. Mas ele fará de tudo, venderá facilmente sua alma (até porque não acredita em alma), por um pouco de tempo livre para meditar, ler e escrever. Não foi isso que fez Ayres Britto, o poeta sergipano que usou seu cargo de Ministro do Supremo Tribunal Federal para patrocinar um golpe midiático contra o PT, em troca de uma sinecura de luxo no Instituto Innovare, da Rede Globo?
O intelectual está sempre disposto a trair a sua causa política em troca de um pouco de alívio às suas angústias materiais. Por isso eu não confio em intelectuais. Não confio nem em mim mesmo, por isso deixo sempre meu lado não-intelectual em estado de alerta.
A terceira função de um blogueiro como eu corresponde àquela do proprietário do jornal, ao blogueiro enquanto um Cidadão Kane microscópico. Esta é a função mais perigosa e mais secreta, que assume ares golpistas quando se trata dos barões da mídia, mas que sempre é algo alegremente ridículo no caso de blogueiros. Também conspiramos. Dois ou mais simpatizantes da blogosfera num botequim é conspiração certa. Mas é uma conspiração divertida e inofensiva, porque não conhecemos altas autoridades da república, não temos acesso aos recursos dos grandes capitalistas nacionais ou internacionais, nem nos encontramos periodicamente com diplomatas norte-americanos.
Mas temos nossas estratégias, e pequeninos como somos, temos conseguido fazer alguns gigantes dar gritos de susto, tanto na mídia quanto no governo.
Entretanto, o maior risco que enfrento, como blogueiro político, é o de contaminação psicológica. Por isso o título deste post. Ontem, caminhando no aterro, eu meditava melancolicamente sobre a enésima vez em que me deixei enganar. Até mesmo um blogueiro experiente como eu, às vezes se deixa capturar por essa odiosa armadilha psicológica, que nos transforma num bando de neurastênicos irritadiços.
A troco de que eu me sinto assim?, pensei com meus intrigados botões. O Cafezinho nunca esteve tão bem. As assinaturas estão entrando. Quem diria, há uns anos atrás, que um jovem intelectual esquerdista poderia viver apenas de seus escritos na internet? Não é isso também um sinal dos tempos? O desemprego está baixo, a inflação sob controle, e as pessoas hoje têm dinheiro até para investir num blog! Do que eu estou reclamando?
Quanto à Petrobrás, já disse o que tinha de dizer. Eles voltaram a investir no blog Fatos e Dados, embora ainda de forma insatisfatória. Ao menos já entenderam que o caminho é esse. Fiquei chateado com a história de Pasadena, porque tive a impressão que Dilma e Graça Foster podiam ter jantado a oposição com os dados que eu comecei a levantar, e que depois a própria Foster apurou, que a Astra pagou dez vezes mais que os alegados US$ 42 milhões pela refinaria de Pasadena. Até hoje não entendi porque o assunto é tratado apenas de forma contábil, como se carros, caminhões e fornos industriais pudessem ser alimentados com dinheiro vivo e não com gasolina, diesel e gás. A hostilidade de Dilma e da própria Graça Foster contra refinaria de Pasadena me pareceu insensata. Mesmo que a refinaria tivesse custado 30 bilhões de dólares e houvesse centenas de escândalos na origem de sua compra, desde que se sabe que ela funciona, que processa cem mil barris por dia, mereceria um gesto de simpatia por parte de seus novos donos. Não entendi a falta de vontade de lhe dar um pouquinho de valor estratégico. Mas deixa para lá, depois voltamos a falar disso.
Quando cheguei do aterro, já à noite, me deparo com o discurso de Dilma na televisão, trazendo um grande alívio a seus eleitores. É incrível a capacidade do núcleo dilmista de tensionar a performance da presidente até o limite do desespero. Foi a mesma coisa em 2010. Quando seu eleitorado já estava em pânico, quase prostrado, diante do silêncio burocrático, pontuado por estratégias desgastadas de marketing, da campanha dilmista, perante os ataques violentíssimos, maciços, de um serrismo enlouquecido e sem escrúpulos, a presidente resolve tirar a máscara do marketing e ser ela mesma, naquele último debate com Serra. Uma pessoa de respostas ágeis e duras, de temperamento forte mas sem perder jamais a elegância quase aristocrática. Esta é a Dilma que novamente vimos ontem na televisão. Uma aristocrata jacobina, valente, agressiva e sedutora!
Acho que a própria Dilma não entendeu o valor de marcações políticas como a de ontem. A campanha contra seu governo mina a sua tão querida gestão, atrasando obras e devorando o Estado por dentro. Em cada recanto do país, em cada repartição pública, lá temos um monte de aparelhos de TV fazendo campanha política 24 horas por dia contra o governo. Se Dilma não fizer um contraponto, e só ela possui o patrimônio de quase 60 milhões de votos, seus adversários vão envenenando todo o corpo social, paralisando o Estado em nome de um pessimismo puramente psicológico, sem fundamento na realidade. Se até blogueiros escaldados como eu se deixam enganar às vezes, que dirá o resto da população?
Tenho a impressão que o discurso de Dilma marca o início de uma reação. Tardia, mas não tarde demais. Nunca é tarde demais, quando se trata de defender o povo. E por mais que tenhamos críticas ao governo Dilma, e que bom que as tenhamos, porque é para isso que existe democracia, não podemos negar que ele ainda representa o que há de mais politicamente progressista e socialmente responsável, dentre as principais forças políticas que disputam o poder. Sua política econômica, independentemente das críticas e pressões que sofre, de todos os lados, se mantém prudente e austera e a Polícia Federal tem se mostrado tão independente que vem recebendo até mesmo acusações de trabalhar para a oposição. Que diferença do passado, quando tudo era lançado para debaixo do tapete!
Acho que chegou o momento, portanto, de nos mantermos firmes diante das intrigas, das pesquisas e das mentiras. Uma eleição presidencial é sempre um momento de crise nacional, como observou Tocqueville, porque traz consigo grandes riscos.
Mas será o bom senso do povo, de um povo tranquilo e bem humorado, apesar de séculos de opressão, e não os neurastênicos 80% politizados de facebook, dentre os quais eu, às vezes, infelizmente, me incluo, que dará a palavra final sobre o nosso futuro. E o povo, mesmo quando erra, tem sempre razão.