Conclusões finais sobre o Inquérito 2474

Neste post, espero terminar a análise do Inquérito 2474. Desde que iniciei uma série de análises sobre o relatório do delegado Zampronha sobre o caso, já escrevi vários posts sobre o documento. Ao fim do post, dou o link para os posts anteriores. Desta vez, faço uma análise das partes 6,7 e 8.

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Em abril de 2011, a revista Época publicou uma reportagem bombástica, assinada pelo diligente Diego Escosteguy, e com auxílio de Mariana Sanchez. Ambos, Diego e Mariana, tinham sido agraciados, um ano antes, pelos Institutos Millenium e Ling, com uma bolsa para fazerem cursos de pós-graduação em universidades norte-americanas. A bolsa, chamada “Jornalista de Visão”, conta com patrocínio da Braskem e do Escritório Gouvea Vieira.

Cito as empresas não porque tenha, necessariamente, qualquer suspeita sobre elas, mas porque, após desmantelar a Ação Penal 470, iremos atrás dos patrocinadores da farsa, e por isso precisamos estar atentos a todas as pontas soltas do processo.

A reportagem se baseia exclusivamente no relatório do delegado Zampronha do Inquérito 2474, mas estranhamente não dá essa informação ao leitor. O documento é apresentado como “relatório final da Polícia Federal sobre o caso mensalão”. Mas não divulga a íntegra do documento.

Primeira contradição: Joaquim Barbosa, ao defender o sigilo do Inquérito 2474, não disse que ele não tinha nada a ver com a Ação Penal 470? Então como é que a reportagem da Época afirma que se trata do “relatório final do mensalão”?

Recortei o trecho do vídeo onde Joaquim Barbosa, ao defender a manutenção do sigilo do Inquérito 2474, acaba soltando uma informação importante: “o procurador pediu…”

Talvez o som do vídeo não esteja bom, então reproduzo abaixo o que Barbosa disse, textualmente, segundo consta nos arquivos do próprio STF:

Observe bem o que diz Barbosa. “Nesse inquérito paralelo, não tem nada (…) não tem nada relativo a este aqui”. 

Ora, com toda vênia, a afirmação é completamente absurda. Me desculpem se eu fico repetitivo, mas o relatório do Zampronha para o Inquérito 2474 é apresentado pela Época como “relatório final do mensalão”. E se o lermos, ele só fala de mensalão, cita a Ação Penal 470, investiga a fundo as movimentações de Marcos Valério, Delúbio Soares, Daniel Dantas…

Deixemos Barbosa para lá. Está claro que ele mentiu deliberadamente para prejudicar os réus, e que havia um acordo obscuro com o procurador-geral, que “pediu que se interrompesse, naquele momento, o fluxo de informações”.

Vamos ao relatório do Zampronha. Ao inquérito 2474.  Mas vamos abordá-lo a partir da reportagem da Época.

A matéria da revista pertencente às Organizações Globo faz uma completa mistificação do relatório. O texto é cheio de adjetivos. Ele já começa com uma conclusão definitiva:

“Era uma vez, numa terra não tão distante, um governo que resolveu botar o Congresso no bolso.

A reportagem não esconde que seu objetivo não é levantar questões. Ao contrário, o texto de Escosteguy tem o tom autoritário de quem pretende enterrar qualquer questionamento.

A investigação da PF dissolve essas incertezas – e faz isso com muitas, muitas provas(…) Derrubam-se, assim, os mitos que setores do PT, sobretudo sob a liderança moral e simbólica do presidente Lula, tentaram impor à opinião pública. O mensalão não foi uma farsa. Não foi uma ficção(…)

Quando uma reportagem dedica mais espaço a afirmações como essa, de que o “mensalão não foi uma ficção” do que a analisar, objetivamente, os dados apurados, é porque tem alguma coisa estranha no ar.

O inquérito 2474, eu já disse alhures, é uma peça de acusação. Zampronha a escreveu tendo sempre em mente a acusação da Procuradoria na Ação Penal 470. Por que mantê-lo em sigilo?

Depois de analisar o relatório inteiro, várias vezes, eu concluo o seguinte: Zampronha bem que tentou respeitar a orientação dada pelo procurador-geral e por Joaquim Barbosa, mas deixou muitos furos. Não furos no sentido de defeitos; ao contrário, Zampronha abre pequenos, mas inúmeros furos por onde a luz entra.

Não sei se Zampronha se deu conta do que fez, mas ele conseguiu imiscuir, nas entrelinhas de seu relatório, uma outra história, muito mais verossímil, porque fundamentada em dados, do que a própria história que ele tentava chancelar, seguindo a narrativa que lhe foi imposta pelo procurador.

Por exemplo, Zampronha investiga a tese da procuradoria, de que o Fundo de Incentivo Visanet teria sido desviado para abastecer o esquema de compra de apoio político. Como bom policial, Zampronha suspeita de tudo e todos, e investiga cada nota fiscal e cada documento relacionado ao Visanet.

Publica, com destaque, logo nas primeiras páginas, que os pagamentos à DNA foram assinados pelos servidores tais e quais, e não por Henrique Pizzolato. Primeiro furo de luz.

Entretanto, quando chega o momento de falar de Pizzolato, Zampronha volta ao texto da procuradoria, como se os próprios documentos que tivesse publicado não signifcassem nada. O delegado soube adaptar-se às circunstâncias.

Seu estilo lembra um pouco o discurso de Marco Antônio, na peça Julio Cesar, de Shakespeare. Antônio elogia os assassinos de César, mas aos poucos, vai introduzindo no discurso alguns elogios à César, e assim num crescendo, até que, ao fim, consegue mobilizar o povo em favor do líder morto e contra os conspiradores.

Zampronha não conseguiu fazer nada parecido junto à opinião pública, porque seu relatório foi mantido em segredo, e a mídia, quando o usou, mistificou-o totalmente.

A reportagem da Época destaca quatro pontos no relatório. Todos são mistificações que não estão no Inquérito 2474, com exceção de um, do último. Estranhamente, o único ponto verdadeiro é justamente aquele que nunca mais voltaria a ser abordado pela imprensa.

Os pontos:

O primeiro ponto ilustra bem o tratamento quase religioso dado ao mensalão. Tornou-se uma questão de fé. Deus existe ou não? E o diabo? A mesma coisa para o mensalão. Usando uma antiquíssima técnica do catolicismo, a mídia passou a tratar o mensalão como um dogma. Ele existiu e pronto. Não pode ser contestado.

Entretanto, não tem sentido pensar nesses termos. É preciso problematizar. Tudo bem, o mensalão existiu, mas e daí? O problema não é se ele existiu, e sim apurar o que, exatamente, aconteceu. O que foi o mensalão? Foi caixa 2 para pagar dívidas de campanha ou foi compra de apoio político para “perpetuação no poder”? Os estrategistas do mensalão foram muito espertos, porque eles deixaram essa questão em aberto, como se fosse algo menor, até o momento em que os ministros iniciaram, de fato, o julgamento. Aí era tarde mais. Liderados por Barbosa, Fux, Gilmar e Brito, a tese da “compra de apoio político” prevaleceria, porque só ela teria o peso político que se queria dar ao mensalão. Caixa 2? Dívida de campanha? Isso não acarretaria em condenações pesadas. Não daria os resultados políticos desejados.

O ponto 2 é uma mistificação grosseira. O desvio do Visanet,  uma tese da procuradoria, era a única maneria de enfiar o verbete “desvio de verba pública” na condenação. Isso também era necessário para dar peso político ao escândalo. Sem dinheiro público, não tinha graça. Não haveria sequer peculato. O fato do Visanet ser inteiramente privado não foi grande problema, porque esta era uma informação difícil de ser passada à população. Parecia relativamente fácil confundir a opinião pública nessa questão, e conseguiram.

Entretanto, Zampronha não chega a essa conclusão.  Ele só consegue provar que “ao menos R$ 4,6 milhões oriundos do Fundo de Incentivo Visanet foi repassado por Marcos Valério aos agentes públicos e intermediários denunciados na Ação Penal 470”.

Só que essa é a grande confusão nascida da maneira como Valério lidava com seu dinheiro, conforme o próprio Zampronha irá descobrir. Valéria usava os recursos que ganhava de um contrato para fins que não tinham nada a ver com este contrato. Só que isso não implicava, necessariamente, no não-cumprimento de contratos ou desvio. Valério fazia o que bem entendia com seu dinheiro.  Valério também recebia dinheiro, por exemplo, de estatais e governos tucanos, e aplicava o dinheiro em campanhas petistas.

No inquérito 2474, há uma lista das empresas que recebiam dinheiro da DNA, relativo, na maioria das vezes, a um contrato de publicidade entre Marcos Valério e o cliente.

Metade do Brasil recebeu dinheiro de Marcos Valério entre 2000 e 2005. Zampronha menciona centenas de indivíduos e empresas. Alguns deles, no entanto, nos oferecem exemplos esclarecedores.

Vamos a eles:

Observe que a Associação acima recebeu R$ 200 mil e informou se tratar de contrato vinculado ao Banco do Brasil /Ourocard. Ourocard era justamente o produto vendido pela Visanet ao BB.  Trata-se, portanto, de uma campanha da Visanet. Serviços prestados.

Observe a magnitude dos valores pagos pela DNA às empresas acima, e repare nos contratos: são do governo de Minas Gerais. Poder-se-ia dizer, portanto, que Valério também usou dinheiro do PSDB para aplicar em campanhas petistas. Valério era um publicitário, um lobista e uma grande central de caixa 2 criada pelo PSDB.  Ele tinha contratos com centenas de empresas, estatais ou recém-privatizadas, como as de Daniel Dantas, sobre quem falaremos daqui a pouco.

Confira o trecho abaixo, referente à uma empresa que recebeu quase R$ 900 mil da DNA em 2004.

O texto traz várias informações importantes. A primeira delas é que a empresa E.Cunha declarou, em juízo, que emitiu notas fiscais no valor de R$ 859 mil contra a Visanet, mas  foi paga pela DNA. Ora, esse era uma das maneiras combinadas entre Visanet e BB. A Visanet recebia as notas fiscais, mas o pagamento vinha por parte da DNA, que recebia o dinheiro do BB, que por sua vez, lançava mão do Fundo de Incentivo Visanet.

Edison Cunha, proprietário da empresa, tinha consciência de que estava prestando um serviço à Visanet, tanto que declara à Polícia Federal que a Visanet “era a maior interessada nos serviços prestados”.

E olhe quem irá “esclarecer” o senhor Cunha sobre a questão dos pagamentos: Claudio Vasconcelos, “gerente executivo da área de marketing do banco”.

Sempre que se trata de alguma transação monetária entre DNA, Visanet e clientes, nunca aparece Henrique Pizzolato, e sim sempre Claudio Vasconcelos ou Leo Batista. Por que? Porque Pizzolato, como ele sempre repetiu, não tinha ingerência nenhuma nessa parte, que ficava sob as ordens do departamento de Varejo, visto que a Visanet lidava com um produto, o Ourocard.

O terceiro item, sobre Freud Godoy, já foi explicado pelo próprio: Godoy tinha empresa de segurança, e prestou serviços à campanha de Lula, e foi pago com dinheiro proveniente do valerioduto. Ele não estava “a serviço de Lula”, como diz a revista, e sim prestando serviço para uma campanha eleitoral.

O quarto item da revista Época é o único que tem alguns fumos de verdade. Ironicamente, é justamente o único do qual a imprensa jamais voltou a falar.

Zampronha detecta que as agências de Marcos Valério receberam mais de R$ 150 milhões de empresas controladas por Daniel Dantas, mas admite que a maior parte correspondia a serviços efetivamente prestados. Zampronha encuca, porém, com R$ 50 milhões da Brasil Telecom, porque a empresa contrata a DNA de maneira intempestiva, sem consultar seu próprio departamento de marketing, e ainda substituindo de sopetão uma outra agência que, segundo Zampronha, vinha fazendo um bom trabalho. A Brasil Telecom contrata a DNA a partir de uma ordem da própria presidência, então ocupada por Carla Cico, supostamente a partir de uma orientação de Dantas.

O delegado observa que o contrato entre a Brasil Telecom e Valério não chegou a ser honrado na íntegra, por causa justamente do escândalo do mensalão, deflagrado a partir de uma entrevista de Roberto Jefferson à Folha, alguns meses depois. Mas alguns depósitos milionários foram feitos, e Zampronha lança a suspeita de que eles teriam como destino final o Partido dos Trabalhadores.

A suspeita de Zampronha tem uma origem. Ainda no Inquérito 2474, há depoimentos do sócio de Dantas no grupo Opportunity, e do próprio Dantas, de que Delúbio veio lhes procurar, em companhia de Marcos Valério, em meados de 2003, com um pedido de exatamente R$ 50 milhões, para “pagar dívidas de campanha”.

Dantas e seu sócio negam que tenham dado o dinheiro, mas Zampronha desconfia que os R$ 50 milhões que a Brasil Telecom liberou para a DNA poderia ser justamente o dinheiro solicitado por Delúbio.

Importante observar que Delúbio, caso realmente tenha feito o pedido, não estava cometendo, necessariamente, um crime.  Campanhas políticas no Brasil são bancadas pelas empresas, e os tesoureiros dos partidos, portanto, passam a vida com pires na mão atrás dos empresários. É uma realidade triste, mas inexorável.  De qualquer forma, é mais uma informação a reforçar o que Delúbio sempre afirmou: que seus acordos financeiros com Valério tiveram como objetivo pagar dívidas de campanha, e não comprar apoio político.

Comprar apoio político para se perpetuar no poder? E como o PT se perpetuaria no poder: aprovando a reforma da previdência?  A teoria da procuradoria sempre foi ridícula, até porque esquecia o óbvio: se o PT quisesse comprar parlamentares, deveria focar no Senado, onde não possuía maioria, e não no Congresso, onde sua situação era tranquila. 

O próprio Dantas responde, às insinuações de que teria dado R$ 50 milhões para Valério, com objetivo de subornar o PT, lembrando que jamais teria interesse em dar dinheiro a um partido que vinha lhe fazendo dura oposição.

É fato que Zampronha não consegue ligar Dantas ao PT, mas os R$ 50 milhões dados à Valério, caso não correspondessem a serviços publicitários prestados, podiam ter outros fins: patrocinar lobbies no Congresso, corromper servidores, juízes, procuradores, espionar, etc.

Enfim, muita água ainda correrá por esses rios. Gilmar Mendes andou falando há pouco que o STF e o Brasil tinham que “virar essa página”. Não tem nada que virar a página. O Brasil quer passar essa história  a limpo.

A ocultação do Inquérito 2474 prejudicou profundamente os debates em torno da aceitação da denúncia, em novembro de 2007.  O relatório ficou pronto em abril de 2007.

Caso os dados estivessem disponíveis ao público, aos próprios ministros do STF e, sobretudo, aos réus, assim que o relatório foi concluído, poderia ter ajudado a formar convicções diferentes. Haveria um debate mais rico, com mais informações. Talvez a denúncia não tivesse sido sequer aceita, e o mensalão fosse julgado, como convinha, em primeiras instâncias, de acordo com as acusações contra cada réu.

Mas Barbosa justificou o segredo dizendo que, ainda em 2006, “o procurador-geral pediu que se interrompesse o fluxo de informações”. Ou seja, o próprio procurador decidiu parar as investigações, certamente porque já havia chegado a um entendimento sobre como seria a farsa. Barbosa adere alegremente à postura do procurador, e por isso mesmo, ao ser perguntado por Marco Aurélio sobre o porque do sigilo do 2474, responde cinicamente:

“Para o bom andamento do processo, ministro”.

Sim, Barbosa. O processo andou muito bem. O fermento funcionou a contento e a população viu um bolo enorme e apetitoso. Só que no momento de comê-lo, o bolo era de vento. Isso é o mensalão. Um invólucro vistoso, mas oco. Assim são as reportagens sobre o tema: cheias de adjetivos e metáforas grandiosas, mas com quase nenhuma análise séria procurando amarrar os pontos perdidos e discutir os autos do processo.

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Por fim, algumas curiosidades no relatório do 2474:

Olhe quanto o ingrato Correio Braziliense ganhou de Marcos Valério, apenas de 2003 a 2005: R$ 10,37 milhões, referentes a um contrato vinculado ao GDF. Os vínculos de Valério com o governo do DF, então governado por Joaquim Roriz, mostram que suas relações abrangiam todo o espectro político nacional. Só que enquanto mantinha ligações com PSDB, DEM e PMDB, era amado por todos. Quando começou a ajudar o PT, tornou-se o maior bandido da história.

Nem os juízes de Brasília escaparam da generosidade de Marcos Valério.


Os itens acima reforçam a teoria do caixa 2. Repare que os recursos repassados para Valério para o município de Osasco são, indiscutivelmente, para gastos de campanha. João Paulo Cunha, deputado federal pelo PT, com base em Osasco, sempre alegou que o dinheiro que recebera do esquema Valério/Delúbio, nessa mesma época, era para pagar uma despesa de campanha. Com esses outros exemplos, agora vemos que o valerioduto estava mesmo investindo em campanhas petistas em Osasco e outras cidades, confirmando  versão de Cunha, mais um que se pode considerar um preso político.

Posts anteriores sobre o Inquérito 2474.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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