Um conto inédito misturando carnaval e thriller político

O texto abaixo é uma ficção, mas qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência.

 

A tarde não foi triste, Barbosa

Por Miguel do Rosário

Girando o olhar, Rodrigo podia ver inúmeras beldades. Uns cinco metros à direita, havia uma moreninha fantasiada de índia, pintada de guerra. Era mais para baixa, com seios grandes. Por trás da maquiagem vermelha, e apesar da ginga com que dançava, notava-se os olhos sérios e sensuais, de mulher decidida e independente.

À sua frente, duas amigas, uma preta outra branca, dançavam distraídas, também olhando ao redor, mas sem notá-lo. A branca era magra demais, porém com formas bem pronunciadas. Falsa magra, dir-se-ia. Seus movimentos eram meio duros, quase severos, inconscientemente expressando a arrogância típica de quem se sabe desejada.

A negra, rechonchuda sem ser gorda, tinha uma aura leve, autoconfiante, levemente maternal em relação à amiga.

Rodrigo bebia rápido, como se deve fazer num dia ensolarado de carnaval, para que a cerveja não esquente. De vez em quando, vira o pescoço para trás, para se certificar de que o maldito segurança continua por ali, perseguindo-o.

Cara, quanta mulher bonita, pensava Rodrigo, e ensaiava alguns movimentos. Sentia-se um pouco solitário. Não conseguira contatar nenhum de seus amigos no Rio. Quer dizer, ninguém o atendeu, mas ele até entendia. Sua vida se tornara estranha após o pai assumir a presidência do Supremo Tribunal Federal, e, sobretudo, após a deflagração da última crise política.

Sua presença constrangia os amigos, ainda mais em tempos de carnaval, quando todos tentavam esquecer por um momento as coisas sérias.

Ele mesmo não gostava de política. E agora mais ainda, depois que seu pai converteu-se em paladino nacional da luta contra a corrupção.

Queria brincar carnaval. O sol faiscava em toda parte, mas não escaldava, não incomodava. Antes banhava suavemente os foliões, quase todos segurando latinhas de cerveja.

E as fantasias. Que criatividade!

A seu lado, a moça usava um chapéu com a inscrição: “caubói fora da lei”. E tinha pendurado à sua frente um painelzinho, com o logo do jornal O Globo e a frase abaixo: “mentir sozinho eu sou capaz.”

O bloco chamava-se Toca Raul, interpretava canções de Raul Seixas, e era um dos mais hipsters do momento. Por isso tanta gente bonita.

Entretanto, Rodrigo não conseguia relaxar totalmente. Jogou a latinha fora antes de terminá-la e comprou outra no ambulante. Quem sabe, bebendo ainda mais rápido não esquecia aquela merda?

“Que pena eu não ser burro, não sofria tanto”, dizia Raul. Rodrigo lembrou-se da frase enquanto virava a latinha com tanta gana que sentiu uma leve ânsia de vômito. Respirou fundo e sentiu-se melhor.

E o filho da puta do segurança continua lá, vigiando-o a curta distância. Rodrigo ficou desconfiado. E se o pai suspeitasse do que ele estava prestes a fazer, embora nem ele mesmo soubesse o que faria?

Havia apenas aquela comichão no estômago, que sentimos antes das grandes decisões, aquelas que irão mudar nossa vida para sempre.

O vocalista cantava: “Eu não preciso ler jornais, mentir sozinho eu sou capaz”.

Ele olhou a garota de chapéu de caubói, que sorriu em sua direção. Os dois estavam mais próximos. Rodrigo não saberia dizer se foi ele que se aproximou alguns passos, ou se foi ela.

Agora estavam já dançando juntos. Rodrigo puxou o celular e fez um gesto de quem pede autorização para tirar uma foto. Ela assentiu com a cabeça, ainda sorrindo e fez pose. Com o rabo do olho, Rodrigo viu o segurança se aproximar rapidamente. Teve a impressão mesmo que ele esticava o braço, como que para pegar o celular de sua mão.

Guardou o celular rapidamente. O segurança agora estava quase colado nele. Rodrigo lhe fez uma careta. O segurança sorriu e se afastou pelo outro lado, agindo como se tivesse vindo não em sua direção, mas estivesse apenas passando perto dele antes de ir a outro lugar, ao banheiro, por exemplo.

A comichão no estômago virou um calafrio. Lembrou da gravação que fizera em casa, poucos momentos antes. Testava um aplicativo novo de gravação de vídeo, e flagrara o pai, de costas, ao telefone, conversando.

“Vocês têm que fazer pressão máxima agora. Qual será o editorial?”

Era óbvio que seu pai falava com algum figurão do jornal. Provavelmente do Globo. Rodrigo sabia que era um escândalo um juiz falar assim com a mídia. E que o vídeo que gravara, sem querer, poderia derrubar seu pai.

Nunca faria isso, mas as frases seguintes tiveram um efeito curioso na personalidade de Rodrigo. Como se agora estivesse em jogo alguma coisa bem maior do que a lealdade filial.

“Sim, em sessenta dias, a gente derruba o apedeuta… Não… Sim… Se eu tiver que assumir por uns meses, não tem problema. Eu aguento o tranco.”

Rodrigo sabia muito bem que o apedeuta era o presidente da república, assim chamado por pedantes reacionários, como seu pai.

Agora estava rodeado de garotas, mas não por sua causa. É que o lugar estava cheio de mulher mesmo. Matou a latinha e examinou a si mesmo para se estava bêbado. Já estava, muito bem. Checou as adjacências e lá estava ele de novo, o segurança, atento a todos os seus movimentos.

Será?

Resolveu testar. Puxou o celular e olhou para o segurança. Ele quase deu um salto em sua direção. Começou a mexer a esmo no aparelho e viu o sujeito se desesperar, vindo em sua direção.

Pegou na mão da garota de chapéu e se enfiou na muvuca. Ela o acompanhou docemente. Viu uma máscara no chão do Hulk. Apanhou-a e botou-a no rosto. Jogou fora seu chapéu de pirata. Ficou bizarro, um hulk com roupa de pirata e espada à cintura. A garota riu. Continuou avançando.

Então encontrou o Leo, o velho Leozinho de guerra, velho companheiro de movimento estudantil.

A banda tocava “Viva, viva, viva a sociedade alternativa!” E todo mundo pulava.

Leo fumava um baseado no meio da multidão, acompanhado de duas lindas garotas fantasiadas de Marilyn Monroe: perucas blond e vestido branco. O próprio Leo também estava de Marilyn.

Rodrigo ergueu a máscara e cutucou o amigo.

“Digão!”

Abraçaram-se.

Rodrigo deu um tapa no baseado, e passou para sua companheira. Então cochichou no ouvido do amigo.

“Tem uma bomba gravada aqui, publica essa porra. A senha é 1010”.

Leo o encarou com um olhar divertido, mas perspicaz. Como se houvessem combinado, há tempos, que aquela hora chegaria.

“É um vídeo”.

E afastou-se, segurando a mão da caubói. A garota protestou, com voz incomodada: “Aqui tá bom!”

Ele a encarou rapidamente, deu-lhe um beijo relâmpago, na boca, e foi embora sozinho.

O sol projetava luzes alaranjadas sobre a praça tiradentes, uma praça contraditória visto que a estátua que ocupa o seu centro é a de Dom Pedro I, representante do mesmo governo que mandou esquartejar o herói da independência.

A caubói ficou parada, olhando o estranho rapaz, novamente de máscara de hulk, que se afastava rapidamente, quase correndo. Notou um homem mais velho indo na direção dele, como que o seguindo.

Que bizarro, pensou, e se voltou para o novo amigo que fizera, o rapaz vestido de Marylin, que lhe oferecia mais um trago.

*

“Onde você vai, Rodrigo?”, perguntou o segurança, apertando fortemente seu braço.

“Cara, roubaram meu celular! Acho que o ladrão veio nessa direção. Estou atrás dele”, respondeu, com uma voz ofegante e nervosa que não era fingida. O medo e confusão que se via em seus olhos também eram verdadeiros.

“O quê?”, perguntou o segurança, incrédulo, não exatamente em relação à história contada por Rodrigo, mas à situação. Era azar demais para ser verdade. Mas seu olhar logo se tornou desconfiado.

“Roubaram meu celular! Minha vida está ali!”

“Mas tem senha, não?”, rebateu o segurança. Aliás, o título de segurança é um tanto falso. O sujeito era antes um assessor de seu pai, para os assuntos mais delicados, mas seu emprego oficial era o de segurança pessoal.

“Pior que não!, eu tirei justamente hoje. Que merda!”

O segurança então ligou para um número, e manteve uma conversa nervosa com alguém do outro lado.

“Vamos rastreá-lo e encontrá-lo agora mesm…”, não conseguiu terminar a frase. Alguém o golpeara com força na nuca. Leo viu alguém com peruca loira se afastar.

*

No dia seguinte, um vídeo viralizou em todas as redes sociais. Mostrava o presidente do Supremo Tribunal Federal conspirando ao telefone, provavelmente com o editor ou proprietário de um grande jornal.

Rodrigo o assistiu quarenta e oito horas depois já em outro país. Não teve coragem para encarar seu pai após tê-lo traído daquela forma. Voltou para casa de madrugada, como um ladrão, entrando pelos fundos, pegou seus documentos, algumas roupas e se mandou.

No entanto, tinha a consciência tranquila. Traíra seu pai, mas manteve-se fiel a seu país. Possuía dinheiro para se sustentar por alguns meses e conhecia gente que poderia ajudá-lo depois disso.

No entanto, a imagem que não saía de sua cabeça não era a de pai conspirando contra a democracia, nem as milhões de mensagens de indignação que pululavam nas redes, e sim a da moça de chapéu de caubói e a plaquinha que dizia: mentir sozinho eu sou capaz. Ela tinha olhos castanhos e doces. Nunca soube seu nome. A única frase que ouvira de sua boca fora: “Aqui está bom!”

Em momentos de nostalgia do Brasil, bebendo longnecks à beira do Sena, aquela frase reverberava em seu espírito com um sentido quase metafísico. Aqui está bom!

Talvez se seu pai fosse a um bloco de carnaval como aquele, e conhecesse uma garota como aquela, que lhe dissesse aquela frase, não teria conspirado contra o Brasil, não teria traído a democracia.

Aqui está bom, pensou Rodrigo. O Brasil era como o rio Sena. Instável e calmo. Nunca era o mesmo, e no entanto, algumas coisas pareciam jamais mudar, para o bem e para o mal.

As águas do Sena desfilavam à sua frente, emitindo brilhos loiros, qual uma grande manada de marilyns. As ondinhas semelhavam às cabeleiras que subiam e desciam conforme avançavam.

Dentro de si, sentia o coração aquecido pelos raios alaranjados do sol carioca, o sol dos trópicos, o sol dos golpes, o sol dos carnavais.

Foliã no bloco Toca Raul 2014

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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