Acabo de ler, no Conversa Afiada, um artigo do Breno Altman, editor do site Opera Mundi, que me provocou algumas reflexões. É um texto interessante, e eu gostaria de comentá-lo.
O título: “O que pode aprender o PT com os comunistas italianos?” traduz nossa mania intelectual (me incluo totalmente nisso) de achar que a história pode nos ensinar alguma coisa. Ela ensina, mas em se tratando de política, num mundo cada vez mais frenético e dinâmico, somos nós, talvez, que ensinamos à história. E por uma razão lógica: as circunstâncias de um acontecimento ou conjuntura política de trinta ou quarenta anos atrás, jamais se repetem. E mesmo se se repetissem, não caberiam as mesmas soluções. A história deve ser conhecida, em detalhes, em profundidade, justamente para não ser repetida, nem em seus erros, e talvez nem em seus acertos.
Mas isso são firulas. Vamos à essência do artigo. Altman inicia o texto relatando a decisão do Partido Comunista Italiano, em 1976, quando alcançou expressiva votação nas eleições parlamentares (36% do total de votos, quase o dobro do PT hoje), de compor com a Democracia Cristã, que era a centro-direita da época, e detinha a hegemonia no parlamento.
Embora sem afirmá-lo com todas as letras, está bem claro que Altman considera esse o pecado original do PCI. A decisão partidária seria o estopim do surgimento de dissidências radicais, algumas violentas, como as Brigadas Vermelhas. Vários atentados ocorrem na Itália, e por fim as Brigadas sequestram Aldo Moro, respeitado líder da Democracia Cristã, produzindo uma grande comoção nacional, contra a violência e contra o terrorismo político.
Nas palavras de Altman: “O PCI vive, então, um impasse. Romper com a política de solidariedade nacional, defendendo a Constituição e recompondo sua influência à esquerda. Ou manter seu compromisso com a DC, abraçando as políticas repressivas. Prevalece a segunda hipótese. A Itália passa a ter juízes sem rosto, suspensão de garantias constitucionais, aceitação de culpa por presunção, repressão massiva sem ordem judicial. Com o aval comunista.”
Aí se daria o segundo grande erro do PCI, segundo Altman. Depreende-se de seu artigo que o PCI deveria ter rompido com a política de alianças. É um tanto problemático dar lições ao que um partido deveria ter feito há quarenta anos. É extremamente difícil reconstituir a atmosfera política da época, os cálculos feitos, os debates travados. Como o partido comunista italiano possuía os melhores quadros intelectuais do país, herdeiros das teorias socialistas mais modernas e democráticas do Ocidente, imaginemos que eles tenham tomado a decisão que consideravam a mais acertada, para a sobrevivência do partido e para os objetivos que se propunham.
Os trágicos acontecimentos forçam o partido a aderir a uma política de repressão que a sociedade italiana passara a desejar com aquela euforia doentia e vingativa na qual os europeus, tão civilizados, às vezes parecem mergulhar. É difícil julgar, de qualquer forma, uma sociedade que guardava ainda tantos traumas de guerra.
Mas não é tão dificíl imaginar que a violência da esquerda radical tenha despertado lembranças terríveis, do fascismo, das carnificinas, da política enquanto expressão da truculência e do arbítrio, e não mais do diálogo pacífico entre partes contrárias.
Entretanto, vamos problematizar um pouco. Vamos avaliar, apenas pelo amor ao debate, que tudo se deu ao contrário.
Imaginemos que a aliança do PCI com a democracia cristã, em 1976, tenha sido uma decisão correta, quase inevitável, um desdobramento lógico dos debates sobre o socialismo democrático, no qual a Itália havia sido uma das mais brilhantes pioneiras no mundo ocidental. A única maneira de se provar, concretamente, a adesão à doutrina democrática é fazer acordos políticos fora de seu partido, especialmente com forças ideologicamente diferentes. É muito fácil se dizer democrático e não fazer alianças. No norte da Europa, os socialistas também fizeram, na mesma época, alianças com a centro-direita e vinham se transformando, rapidamente, nos regimes mais socialmente justos do mundo.
Era uma tendência europeia, continente que abraçara a democracia com entusiasmo e alívio, depois do pesadelo fascista que levara milhões à morte e suas economias à beira da auto-destruição. Como reunir essa nova paixão democrática com o antigo amor europeu pelo socialismo?
Não era fácil porque a sociedade europeia, talvez mais que qualquer outra, era dividida entre direita e esquerda. Como conciliar os anseios por democracia e paz, tão gritantes, quase desesperados, em sociedades profundamente traumatizadas pela guerra e pela violência, com as clivagens políticas e ideológicas da realidade?
O partido comunista italiano, seguindo o exemplo de seus iguais na Escandinávia, resolveu fazer alianças. Isso não significava, necessariamente, um esvaziamento ideológico no campo de esquerda. Era democracia. A Itália havia se tornado, ao final da década de 70, um dos países com as melhores legislações trabalhistas do mundo – uma legislação que perdura, em grande parte, até hoje. Os salários haviam crescido. A Itália havia superado a terrível crise de pauperismo do pós-guerra e caminhava para se tornar uma das maiores potências industriais da Europa e do mundo.
O erro, portanto, talvez não tenha sido do PCI. O erro foi das correntes radicais, que deviam ter, como sempre tem (como tem no Brasil de hoje), seus professores, seus mestres, seus financiadores. A juventude é sempre a bucha de canhão. A violência das Brigadas Vermelhas foi uma das maiores idiotices históricas da esquerda. Tão idiota que envergonha a Itália até hoje, e o ódio irracional a Cesare Battisti é a prova disso, e pudemos ver, durante os debates sobre a tentativa de sua extradição, que a esquerda italiana é que mais o odiava, incluindo nosso querido Mino Carta.
Após a onda de repressão – que imagino ter sido causada por uma lamentável explosão emocional de uma sociedade traumatizada pela guerra e pela violência, associada à manipulação espertíssima de uma direita oportunista – o PCI consegue se recuperar. O país voltava à normalidade. Um novo pacto pela paz, ao qual o PCI não poderia deixar de aderir, sob o risco de ser massacrado, havia se firmado.
Nas palavras de Altman:
“O partido recupera um pouco de sua força. Com a morte súbita do secretário-geral, em 1984, chega aos 33% dos votos nas eleições européias e é, pela primeira vez, o partido mais votado da Itália. O “efeito Berlinguer”, no entanto, dura pouco. A decadência eleitoral e social se impõe nos anos seguintes. Uma forte corrente revisionista, forjada durante a política de solidariedade nacional, impede que se consume a guinada proposta pelo líder comunista antes de sua morte.”
A razão da vitória seria uma nova postura partidária, de confronto diante do conservadorismo, liderada por Berlinguer. E aí topamos com uma contradição: não era Enrico Berlinguer, secretário-geral do partido, justamente um dos defensores da política de alianças anunciada em 1976?
Sim.
Ora, coube ao destino que justamente o grande teórico da “concepção dialética da história” fosse um italiano, Antonio Gramsci, que propunha que os intelectuais jamais perdessem a conexão sentimental com o “povo nação” e suas “paixões elementares”. Ou seja, havia o momento de fazer alianças, havia o momento de rompê-las, de acordo com as circunstâncias que a história e a necessidade impunham.
Altman diz que o “efeito Berlinguer” dura pouco e uma “forte corrente revisionista, forjada durante a política de solidariedade nacional, impede que se consume a guinada proposta pelo líder comunista antes de sua morte”.
Pois é. Mas, repetindo, não fora justamente Berlinguer um dos teóricos da política de solidariedade?
O PCI, de fato, entra em decadência, mas tragado pelo fim do bloco socialista europeu. E aí temos uma situação quase irônica. A nova política de enfrentamento de Berlinguer não teria criado uma polarização e um tensionamento no momento errado? Berlinguer não poderia prever, claro, o súbito desmoronamento do bloco soviético. Mas quando este ocorre, a pedra que ele lançara com muita força na direção de seus adversários, voltaria com a mesma força na sua direção.
Isso faz parte, no entanto, da política. Era inevitável que o partido comunista italiano, um dos mais orgulhosos da Europa, com seus cineastas brilhantes (Ettore Scola, Visconti, Pasolini, todos comunistas), com seus escritores, as suas festas vermelhas em todo o país, sofresse profundamente com o debacle dos regimes do leste europeu e da União Soviética.
Até aí tudo normal, já que inevitável. A direita ergue-se, naquele momento, como uma força avassaladora, em todo mundo. No Brasil é diferente porque saíamos de uma ditadura de direita, e a esquerda, ao contrário, surgia como uma campeã da democracia. A esquerda brasileira que nascia do pós-ditadura, com a fundação do PT, respirava um outro ar. União Soviética e Leste Europeu eram mundos distantes. Não para a Itália, porém, vizinha do Leste Europeu. A esquerda italiana foi afetada de maneira profunda e inexorável pelo fim do comunismo europeu.
Até mesmo a mudança de nome do PCI para Partido Democrata não precisa ser condenada. Os estrategistas do PCI devem ter feito seus cálculos e entendido que, se quisessem disputar a hegemonia, precisavam mudar o nome.
O apoio ao neoliberalismo, à política norte-americana, ao conservadorismo (se é que aconteceram mesmo), esses foram possivelmente os grandes erros, que levaram o agora Partido Democrata a um papel subalterno. Inaugurava-se a era Berlusconi. O Roberto Marinho italiano era dono dos três principais canais de TV privados e, com a ascenção de seu partido, passou também a controlar os três principais canais públicos.
Felizmente, passados quase vinte anos, o pesadelo Berlusconi terminou e o Partido Democrata (ex-PCI) voltou ao poder. O novo primeiro-ministro, o jovem Matteo Renzi, substituiu há pouco outro representante do PD.
Mas deixemos a Itália com seus problemas para lá. Voltemos ao Brasil e vamos ao final do artigo de Altman.
“Mas não é o caso da esquerda brasileira e do PT aprenderem algumas lições com essa experiência? Não seria útil refletir o que acontece quando um partido de matiz socialista passa a defender os instrumentos de repressão de um Estado que segue sob hegemonia burguesa? Não seria importante pensar quais as consequências quando a esquerda abandona o papel de campeã radical da democracia para ser o partido de uma ordem que não é a sua?”
Aprender com a experiência alheia é sempre útil, mas as circunstâncias hoje são tão radicalmente distintas da Itália dos anos 70 ou 80 que não me parece o caso aqui. Sou contra a aprovação de qualquer lei que aumente a repressão a manifestações populares, mas vejo com bons olhos que se debata, por exemplo, a questão dos mascarados, porque os interpreto com uma ameaça ao próprio direito de manifestação.
Já participei de uma manifestação em que a ameaça não era a polícia. Eram os mascarados, que estavam ali precisamente para detonar o protesto. Haveria, ao final da manifestação, um debate público na Cinelândia sobre a democratização da mídia, que os black blocs impediram que fosse realizado porque iniciaram um enfrentamento – idiota e desnecessário – com a polícia e com manifestantes.
Se quisermos aprender com os erros da esquerda italiana, temos que observar que eles começaram não com a política de Berlinguer, de fazer alianças democráticas com outros partidos e outras forças, e sim, fundamentalmente, com a opção de setores radicais da esquerda pela violência política.
À esquerda contemporânea, ao menos no Brasil e redondezas, interessa a democracia e a paz. Tanto é que, na Venezuela, estamos testemunhando a quem interessa que os conflitos ideológicos e políticos se dêem em batalhas de rua. Manifestações populares são essenciais à democracia. Mas as ruas, como bem lembrou meu amigo e sócio Fernando Brito, não são a democracia. Se um milhão de pessoas saírem às ruas defendendo a ditadura, aceitaremos isso? Não. O Brasil tem 200 milhões de pessoas, e o único método confiável de estabelecer nossas diretrizes coletivas políticas fundamentais é através das urnas.
As ruas devem ser respeitadas e suas reinvindicações devem ser ouvidas, assimiladas e debatidas nas instâncias democráticas eleitas para isso. Mas jamais podem ser endeusadas. A direita começou a descobrir que, com o desgaste natural do governo, é muito mais fácil (e barato) para ela botar 1 milhão de pessoas na rua, gritando palavras de ordem contra o governo, do que obter 80 milhões de votos para eleger um presidente da república.
Se as ruas querem mudanças radicais, então que defendam o plebiscito proposto pela presidenta, de criar uma assembléia constituinte exclusiva, que elabore e vote uma reforma política. Seria uma mudança radical, e seria também um risco, porque mudanças radicais também podem ocorrer para pior, ainda mais num país cujo debate político é pautado por uma mídia extremamente concentrada em mãos de uma só família.
Se a Itália pode nos ensinar alguma coisa, aliás, é o perigo explosivo de unir poder e mídia, como foi o caso de Berlusconi. A família Marinho tem uma fortuna quase três vezes maior que a de Silvio Berlusconi, para vocês verem o perigo que estamos correndo.
Nosso combativo Altman encerra seu artigo com uma frase de efeito:
“Não seria importante pensar quais as consequências quando a esquerda abandona o papel de campeã radical da democracia para ser o partido de uma ordem que não é a sua?”
Só que não a entendi. A esquerda, historicamente, não é exatamente “campeã radical da democracia”, tanto é que a bela e antiga doutrina democrática foi esnobada, por muitas décadas, como um engodo burguês, e as Brigadas Vermelhas é um exemplo triste desse preconceito.
A esquerda latino-americana, todavia, traumatizada pela violência política e pela ditadura, abraçou a tese democrática com unhas e dentes. Não queremos saber de violências. Se a direita ganhar as eleições, aceitaremos na boa. Venceremos na próxima, como vencemos no Chile.
Quanto à expressão “uma ordem que não é a sua”, aí mora o perigo. Confusões semânticas já causaram guerras. De que “ordem” falamos? Se for a ordem democrática, então esta é sim, a ordem da esquerda e de seus partidos. Se como “ordem” entendemos o desejo conservador de manter as coisas como estão, imutáveis, então não é esta ordem que queremos.
Entretanto, as coisas estão paradas no Brasil? O salário mínimo tem se mantido estagnado nos últimos dez anos? Os programas sociais deixaram de crescer? O financiamento à agricultura familiar foi reduzido ou parou de aumentar? Não há obras de infra-estrutura em andamento?
Ora, as coisas estão mudando sim. Precisam mudar mais e mais rápido, e por isso precisamos trabalhar para construir uma efetiva hegemonia de esquerda no Congresso Nacional e no Senado.
A economia de qualquer país, contudo, é um ecossistema delicado, que precisa de ordem, paz, equilíbrio. Por isso a democracia é vencedora, porque ela é o único sistema que permite que as clivagens ideológicas lutem entre si de maneira pacífica, sem atrapalhar o cultivo do feijão e a produção de talheres, sem causar grandes transtornos, enfim, à economia real, que é o que põe a comida na mesa dos trabalhadores. Não é por outra razão que as revoluções só acontecem em momentos de terrível ruptura econômica, quando o povo, faminto, desesperado, desesperançado, não tem mais nada a perder.
Não é o caso do Brasil.
E ninguém me convencerá que chutar orelhões, destruir pontos de ônibus e “pressionar barras contra a estrutura do Itamaraty” constituem o prelúdio de uma revolução.
Então vamos trabalhar duro, que o povo quer ver resultados.
Temos, por exemplo, que organizar uma belíssima Copa do Mundo, para atrair muitos turistas e fazer muitos negócios, para que mais impostos sejam gerados e o Estado possa aumentar os investimentos em Saúde e Educação.