Barbosa prevaricou ao manter o inquérito 2474 sob sigilo?

Análise da parte 4 do Inquérito 2474.

O relatório principal do Inquérito 2474 vem dividido em oito partes, publicadas no Slide Share. Estou analisando uma por uma. Neste post, analiso a quarta parte, que vai da página 141 a 180.

Logo na primeira página, me deparo com uma denúncia de desvio de recursos públicos para uma campanha do PSDB. Trata-se do famigerado “mensalão tucano”, que antecedeu o mensalão petista.

Ao manter o inquérito 2474 em segredo, Joaquim Barbosa obstruiu um debate político fundamental: discutir a origem do mensalão e de Marcos Valério. Num momento em que as forças políticas se dilaceravam, havia um estado de comoção nacional e quase houve um pedido de impeachment contra o presidente da república, o ato de Barbosa, de manter o inquérito 2474 sob sigilo, representou um benefício espúrio dado à oposição, além de ter prejudicado irreversivelmente a defesa dos réus.

É hora de se perguntar: Barbosa prevaricou ao manter o inquérito 2474 sob sigilo?

Não se engane quanto ao valor aparentemente baixo, de R$ 150 mil: ele refere-se a somente um depósito em meio a muitos outros. A soma total dos depósitos de estatais em contas das agências de Valério, na era tucana, é de centenas de milhões de reais.

O mensalão tucano, como já sabem os brasileiros, inaugura o chamado “valerioduto”. E o que era o “valerioduto”? O próprio 2474 traz informações abundantes sobre o esquema, que beneficiou primeiro tucanos, depois petistas. Mas Valério era, fundamentalmente, uma cria tucana. A DNA floresceu e se consolidou à sombra de generososa contratos com estatais em governos do PSDB (em Minas e no governo federal). Uma das razões do documento ter sido mantido em segredo por Joaquim Barbosa, portanto, pode ter sido o fato de que o inquérito 2474 explicita muito bem a origem do patrimônio de Marcos Valério e seu crédito quase ilimitado junto ao Banco Rural: seus contratos com governos, estatais e empresas controladas por Daniel Dantas.

Outra covardia de Barbosa: impedir a opinião pública brasileira de entender como funciona um dos principais esquemas de caixa 2 usados pelos partidos para financiar suas campanhas. Estatais fazem contratos com uma agência de publicidade, que superfatura os serviços e usa parte do dinheiro para custear os gastos eleitorais deste ou daquele candidato. Só que a oposição cometeu um erro crasso. Quanto o mensalão petista “estoura”, os tucanos concluem, apressadamente, que Valério tinha feito para o PT o mesmo que tinha feito para o PSDB: recebido dinheiro público para realizar uma campanha de marketing – e não fazê-la.  Valério, segundo o relatório de Zampronha, fez isso com o PSDB: recebeu dinheiro da CEMIG para fazer uma campanha de publicidade, mas na verdade usou o dinheiro para bancar despesas eleitorais tucanas em 1998.

Valério pode até ter feito várias armações com o PT do final de 2002 ao início de 2004, inclusive com o Fundo Visanet, que por ser privado, não passava pelos rigorosos crivos da administração pública; mas é inverossímil achar que a campanha Visanet não foi realizada e que os R$ 74 milhões foram inteiramente desviados.

Zampronha detecta que o BB depositava o dinheiro do Fundo Visanet nas contas da DNA e Marcos Valério movimentava aqueles recursos a seu bel prazer. O erro está em não investigar a fundo se a DNA realizou ou não as campanhas publicitárias do cartão Visa do Banco do Brasil. É relativamente fácil desviar dinheiro de uma campanha de publicidade da Cemig, que é uma empresa sem concorrentes. Já uma campanha para um produto bancário, como é o cartão de débito Visa, não pode “sumir” do mapa, até porque isso resultaria em perda de market share e, consequentemente, prejuízo bilionário para a instituição.

Em outras palavras, se Marcos Valério não tivesse realizado a campanha dos cartões Visa para o Banco do Brasil, se ele tivesse desviado a totalidade dos R$ 74 milhões, conforme acusou a Procuradoria, o BB teria detectado a falha desde o início, lá em 2003. Aí o culpado não seria Pizzolato, cuja função como diretor de marketing não lhe conferia nenhuma ingerência sobre os recursos do BB ou do Fundo Visanet, e sim a própria presidência do Banco do Brasil, que era ligada às administrações tucanas anteriores (como é até hoje).

O relatório segue apresentando documentos que mostram a extraordinária capacidade de Marcos Valério e seus sócios de obterem empréstimos milionários junto ao Banco Rural, como esse contrato abaixo, superior a R$ 5 milhões, feito em setembro de 2001, com vencimento em março de 2002. Esses contratos milionários explicam a facilidade com que Valério obteria, mais tarde, empréstimos junto ao Banco Rural, em favor do PT. Os cofres do Rural estavam, há muito tempo, abertos para Valério, cuja carteira de clientes incluía as maiores gigantes do setor público, a começar pelo Banco do Brasil, com quem mantinha um convênio desde 1994. Valério também prestava serviços para Petrobrás, Procuradoria de Goiás, Cemig… Tudo isso bem antes do PT assumir a presidência da república.

No quadro abaixo (página 146), vemos com que desenvoltura Valério e seus sócios faziam saques em espécie, de altos valores. Eles sacavam R$ 500 mil, R$ 600 mil, como quem saca R$ 50 na caixa eletrônica. Isso tudo em 2001. Não é crime, mas revela um modus operandi.

 

Anos depois, a Procuradoria (e o próprio Zampronha menciona essa acusação, sem acrescentar nenhuma prova) acusará Henrique Pizzolato de ter recebido R$ 326 mil para  desviar os R$ 74 milhões percentences à Visanet/ Banco do Brasil para as contas da DNA/Marcos Valério. Essa acusação me parece cada vez mais inverossímil, pelas seguintes razões:

1) A DNA tinha convênio com o BB desde 1994 e operava as campanhas da Visanet desde sua criação, em 2001. Valério já tinha esses recursos garantidos. Não precisaria pagar propina a ninguém. E se houvesse realmente necessidade, não seria uma propina de R$ 326 mil, a menos que fosse a taxa de corrupção mais baixa da história.

2) Pizzolato não tinha nenhuma ingerência sobre esses recursos, conforme destaca o próprio Inquérito 2474, em suas primeiras páginas; essa responsabilidade era de Léo Batista dos Santos.

3) Valério, efetivamente, tinha costume de patrocinar campanhas políticas via distribuição de largas quantidades de dinheiro em espécie.  O motivo dos saques  em espécie é óbvio: fugir da fiscalização, tanto da Justiça Eleitoral quanto da Receita. A versão de Pizzolato, de que o dinheiro que Valério lhe enviou, em janeiro de 2004, tinha como destino o PT, tem verossimilhança. O próprio Valério, quando envia um relatório à Justiça sobre o destino de cada saque em espécie nos anos de 2003 e 2004, marca o valor que passou pelas mãos de Henrique Pizzolato como destinado ao PT do Rio de Janeiro, mais especificamente para Manuel Severino.

4) Se Pizzolato realmente tivesse “embolsado” esses R$ 326.660,67, o seu crime não seria ter recebido propina de Valério para desviar os R$ 74 milhões do Fundo Visanet, visto que não houve esse desvio, nem ele tinha autonomia para executá-lo. Mas seria um crime também hediondo: roubar verba eleitoral de seu próprio partido, o que, aí sim, é inverossímil, visto que Pizzolato era um militante histórico, fundador do PT em seu estado, sempre fiel às diretrizes partidárias, além de já ser um homem, por assim dizer, “rico”: desde muitos anos, auferia altos salários como executivo do Banco do Brasil e conselheiro em fundos de pensão. Uma jornalista que está investigando (mais uma vez) a vida de Pizzolato detectou que ele tinha um patrimônio de mais R$ 2 milhões, a maior parte em imóveis (e com valor não atualizado), antes da eleição de Lula. Sua esposa, Andrea Haas, era arquiteta e sempre trabalhou bastante, executando projetos na sua área.

5) A vida de Pizzolato foi devassada de cima a baixo. É o único réu cujos rendimentos são descritos em detalhes na acusação da Procuradoria: em julho de 2005, quando se aposentou, recebia R$4.000,00 da PREVI/BB; R$19.000,00 da Diretoria de Marketing do Banco do Brasil; R$18.000,00 a título de participação do Conselho da EMBRAER; e R$4.000,00 devido à atuação como Conselheiro da Associação Nacional dos Funcionários do Banco do Brasil. Ou seja, tinha rendimentos mensais de R$45.000,00, afora a renda de sua esposa. Não tinha dívidas. Não tinha filhos. Não tinha o perfil de um “desesperado” que iria aceitar propina ou desviar dinheiro do partido.

O post já se estendeu demais. Mais tarde eu continuo analisando a parte 4 do Inquérito 2474.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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