Achei interessante a teoria de Wilson Ferreira, do blog Cinegnose, porque ele introduz uma variável que pouca gente leva em conta quando faz análise da conjuntura política: os fenômenos políticos, mesmo aqueles mais autênticos, se transformam em algo diferente de si mesmos, ao contato com a mídia. Convertem-se, às vezes, em simulacros, onde os objetivos aparentes são opostos àqueles ocultos.
Pode-se dizer que é uma argumentação que transpira paranoia e teoria de conspiração, mas ninguém negará que a midiatização crescente de todas as ações políticas é uma verdade indiscutível.
A teoria do “cavalo de Tróia”, por sua vez, é ao mesmo tempo paranóica e brilhante. É o tipo de coisa que qualquer um faria, se fosse de direita, sem escrúpulos e com poder sobre os meios de comunicação. A direita patrocina eventos políticos que a esquerda, por razões simbólicas óbvias (luta contra o racismo, contra o preconceito, etc), apoiará imediatamente. Simula inclusive criticar os eventos, ao mesmo tempo em que os inflama e os promove. Só que os eventos se tornam armadilhas para a própria esquerda, porque não são realmente autênticos ou se prestam facilmente a uma manipulação que beneficiará apenas o campo conservador.
Aconteceu muito isso nas manifestações de junho, e eu mesmo ouvi de jovens adeptos das táticas de violência que o quebra-quebra era importante para chamar a atenção da mídia. Segundo um deles, tínhamos que “ocupar” a grande mídia, e isso se daria fazendo barulho para aparecer na TV. Como se o objetivo final de um protesto fosse aparecer na Globonews.
Paranoia ou não, temos que tomar muito cuidado para não nos enredarmos em armadilhas midiáticas. A esquerda brasileira, depois de tudo que se sabe sobre controle da informação, controle do comportamento, espionagem em massa, etc, não tem o direito de ser ingênua.
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Os “rolezinhos” são um Cavalo de Tróia?
Por Wilson Roberto Vieira Ferreira, no blog CineGnose (via jornal GGN).
Certa vez o professor de filosofia Boris Groys fez em 2001 uma profética advertência às ciências sociais como a Economia e a Sociologia: “Sem prejuízo do que todas essas veneráveis ciências são capazes, incorrem elas num erro fundamental. Não consideram a possibilidade de que a própria realidade, inclusive toda a sociologia, a ciência econômica etc., possa ser um filme mal produzido.” – veja GROYS, Boris. “Deuses Escravizados: a guinada metafísica de Hollywood”. Groys não se referia apenas ao súbito interesse metafísico de Hollywood através de filmes como Show de Truman ou Matrix. Mais do que isso, lançava uma suspeita de que Hollywood já expressava o fato de que a própria realidade estaria se transformando em um filme. E, o que é pior, mal produzido.
Para Groys o “erro fundamental” seria o fato dessas ciências não perceberem que os seus “objetos” (o “econômico”, o “sociológico” etc.) estariam sendo assumidos ou simulados em ambientes altamente midiatizados pelas tecnologias de comunicação e informação. Em palavras diretas: os fenômenos econômicos e sociológicos seriam antes de tudo fenômenos midiáticos nas suas diversas modalidades: efeitos virais, profecias auto-realizáveis, paradoxos quânticos (o olhar tecnológico da mídia altera o próprio objeto que está sendo observado) etc.
Por isso, os fenômenos e eventos atuais cada vez mais se tornam uma “segunda natureza”, isto é, linguagem. Deixam o campo econômico, político ou sociológico para se inserir no linguístico ou semiótico.
Portanto, qualquer fato ou fenômeno deve ser analisado não somente pela sua área de especialização científica (sociologia, economia etc.), mas, segundo o método semiótico, deve ser analisado por três planos ao mesmo tempo distintos e simultâneos: o semântico, o sintático e o pragmático.
Com o fenômeno dos chamados “rolezinhos” não seria diferente: seja um fenômeno de antropologia urbana (envolvendo identidade, consumo e discriminação) ou sociológico (o confronto de uma nova classe média em ascensão entrando em choque com redutos de consumo tidos como exclusivos da classe média alta), ele possui uma evidente natureza midiática – ocorre em ambientes altamente midiatizados dos shoppings (câmaras de segurança, câmaras das próprias vitrines onde o consumidor se vê não mais em espelhos, mas em telas; grifes, marcas e décor televisivamente familiares), para repercussão viral por meio das redes sociais e pelas ondas concêntricas das mídias de massa, o que faz os rolezinhos se retroalimentarem em looping.
Por ser um fenômeno realizado através das mídias, para as mídias e alimentado pelas mídias, ironicamente os discursos sociológicos ou antropológicos seriam como que “canibalizados” pela lógica midiática como fator que gera ambiguidade e polêmica (o que são, afinal, os rolezinhos?) que, como sabemos, é o fator propulsor para a disseminação de memes (sobre esse tema clique aqui). Ao tentarem explicar ou dar sentido aos rolezinhos, esses discursos seriam “devorados” pelo próprio fenômeno midiático, ajudando a repercutir eventos cuja recorrência nos meios de comunicação possui certamente um interesse “pragmático”.
Ou seja, essa midiatização dos rolezinhos transforma-os em mais uma bomba semiótica, mas agora uma bomba de nova modalidade: um cavalo de Tróia. Para compreendermos os rolezinhos por esse ponto de vista que vê esse fenômeno como uma nova modalidade de bomba semiótica, vamos compreendê-los como funcionam por meio da articulação de três planos semióticos: o plano semântico, o sintático e o pragmático.
Nível semântico: o que significam os rolezinhos?
Fenômeno que rompe o apartheid social? Flash mob da periferia? Movimento consciente de protesto? Movimento político? Luta de classes? Estranha pós-modernidade? A esmagadora maioria das abordagens mobiliza um arsenal de conceitos clássicos das ciências sociais (Marx, Durkheim, Weber) para entender o que esse fenômeno denota ou conota. Qual o seu sentido, entender o seu significado profundo para que possamos ver nos rolezinhos o início de alguma tendência.
Na massa de análises das últimas semanas, abriram-se dois caminhos que tentam dar um significado ao fenômeno: ou há uma consciência nessa mobilização (e, por isso, adquirem o status de “protestos”) ou então o fenômeno possui uma “conotação política”, isto é, a cabeça daqueles rapazes com bombetas, bermudas e tênis Mizuno que lotam os corredores de shopping não tem a menor consciência do significado dos seus atos, embora em si os eventos tivessem um significado político.
Em síntese, o plano semântico abre para uma espiral ascendente de interpretações cuja principal consequência é transpor o fenômeno do campo policial ou das notícias diversas para as editorias nobres de Política, das colunas de editorialistas até chegar a artigos de natureza acadêmica.
O nível sintático: arbitrariedade e recorrência nos rolezinhos
Nesse nível encontramos um padrão, um modus operandi, um código que parece organizar a transformação do fenômeno em notícia e, depois, em evento midiático.
Primeiro: a arbitrariedade. De repente, rolezinho vira um conceito elástico: já existiria desde os anos 1960 nos EUA quando universitários negros vestindo suas melhores roupas entraram em uma lanchonete reservada a pessoas brancas, sentaram e fizeram seus pedidos para a perplexidade dos clientes bem nascidos. Estratégia retórica para atribuir um significado histórico a um fenômeno atual. Dessa forma, os rolezinhos ganham um status histórico, conquistando a seriedade e o peso de significação que o nível semântico tanto procura.
Com as grandes manifestações de rua a mesma operação semiótica foi acionada ao aproximar as fotos das multidões nas ruas de São Paulo com as antigas fotos em preto e branco dos protestos estudantis de maio de 1968 na França ou os movimentos de resistência de rua ao golpe militar brasileiro de 1964.
Outra questão seria o timing do evento: por que só agora ganhou a atenção midiática e transformou-se em notícia? “Bandos”, “ameaças de arrastão” ou “grupos exaltados” assombram espaços de consumo como em janeiro de 2013 no Itaú Power Shopping em Contagem/MG, em 2012 no mesmo local em um show do funkeiro Mr. Catra ou em agosto do ano passado no Shopping Estação em BH com encontro de mil pessoas que supostamente teriam combinado pelo Facebook. Eventos como esses ocupavam espaços nas mídias em editorias menos nobres, já que as principais se ocupavam com as grandes manifestações de rua.
Outro elemento é a recorrência: de evento localizado em São Paulo, ganhou status nacional e foi promovido a “protesto”. No espaço de uma semana, ganha status de preocupação em reunião ministerial da presidenta Dilma como noticiado em primeira página do jornal Folha de São Paulo. O jornal ofereceu a tentadora imagem de um governo sitiado por movimentos de protestos pipocando por todos os lados…
Outro exemplo de recorrência que evidencia a existência de uma sintaxe é a personalização de um evento coletivo. Manifestações com as de rua no ano passado ou os rolezinhos atuais são eventos coletivos. A mídia sabe que, retoricamente, falar em milhares, centenas ou dezenas de participantes tem pouco impacto. Mas se o evento é personalizado e ganha uma cara, tudo muda: assim como a personagem “Dani Pantera” virou a musa dos black blocs para a revista Veja, da mesma forma o jornal Folha de São Paulo, repercutido pelo programa Fantástico da TV Globo, elege os “famosinhos” dos rolezinhos (jovens da periferia que ganharam notoriedade nas redes sociais por postar vídeos e fotos do interior do “movimento”) e que, de uma hora para outra, foram elevados ao status de trendsetters por analistas à procura da semântica do fenômeno.
Nível Pragmático: o cavalo de troia
Esse nível mostra qual a relação que as pessoas criam em relação aos signos e discursos. Como na prática os usuários dos signos se valem deles. O que se quer alcançar com aquilo que sendo dito? Qual a intenção?
Aqui vale o clássico enigma proposto por Paul Lazarsfeld para os estudos de comunicação: quem fala o que, para quem e com qual efeito? O nível pragmático quase sempre inverte o que se sinaliza no nível semântico como no exemplo do semáforo: se no plano semântico a cor amarela sinaliza “devagar e atenção”, no plano pragmático torna-se para o motorista “acelera que ainda dá tempo”.
Essa mesma fórmula parece ser aplicada ao fenômeno dos rolezinhos: se no plano semântico as análises atribuem ao fenômeno um status de sintoma da injustiça, apartheid racial e cultural e outras formas de expressões que comunicariam contestação e protesto, no plano pragmático a grande mídia (“quem fala”) resignifica como “repique das grandes manifestações de junho” apostando no efeito da profecia auto-realizável (“qual efeito”) nas redes sociais (“para quem”) para elevar os rolezinhos ao nível nacional como parte de um único propósito: demonstrar que esse evento é mais um exemplo do caos e desordem em que supostamente viveria o País.
Em outras palavras, pela forma como a grande mídia está noticiando, os rolezinhos se tornaram um perfeito cavalo de Tróia: insere uma pauta dileta para as esquerdas (luta de classes, racismo, segregação etc.) para, involuntariamente, auxiliarem na repercussão na sua incessante busca de um sentido semântico para esses eventos.
Cabe também ressaltar nesse nível pragmático que a repercussão do fenômeno dos rolezinhos produz dois efeitos colaterais e oportunos para a grande mídia:
(a) criminalizar as redes sociais e a Internet (mídias que corroem lentamente a hegemonia simbólica das mídias de massas). Se ficarmos bem atentos, perceberemos que é comum a pauta sobre essas novas mídias sempre terem um enfoque criminógeno ou patológico – problemas cognitivos e educacionais ou crimes cibernéticos, vício, terrorismo, espionagem ou simplesmente anomia.
(b) Mostrar que a ascensão social da chamada classe C (efeito sócio-econômico de inclusão das políticas econômicas de Lula e Dilma) só produz caos e desordem. Por que será que os rolezinhos ganham mais destaque do que os milhares de jovens que se formam graças a programas de inclusão no ensino superior como o ProUni?
Portanto, nesse nível pragmático de análise revela-se uma nova espécie de bomba semiótica: o cavalo de Tróia – graças à arbitrariedade e recorrência do nível sintático, a grande mídia cria a pauta perfeita para as esquerdas morderem a isca. Embora as análises semânticas apontem para um sentido contrário onde a própria grande mídia é acusada de criminalizar os rolezinhos e manter o apartheid social, isso apenas converge para o principal objeto pragmático: através da repercussão e polêmica criar o efeito viral da profecia auto-realizável e tornar ainda mais pesada a atmosfera política desse ano que, ao que tudo indica, promete não terminar.