Wanderley: “Vem pra rua você também”.

Reproduzimos abaixo um artigo de Wanderley Guilherme, publicado na edição corrente da revista Carta Capital. Antes alguns comentários. Uma das críticas que os blogueiros auto-denominados “progressistas” receberam, durante os nervosos dias das manifestações de junho e julho, foi de que seriam “anti-rua”. De fato, setores da esquerda fizeram críticas duras a algumas tendências que vinham se impondo nos protestos.

Entretanto, vale ressaltar a ironia da situação. Nós, blogueiros, às vezes brigamos (amistosamente) entre nós mesmos. Lembro-me, por exemplo, de uma dura polêmica que tive com Eduardo Guimarães, hoje acusado de ser um dos blogueiros “anti-rua”. Há uns 7 ou 8 anos, eu criticava Guimarães por achar que ele estava valorizando demais a importância de… manifestações de rua. Guimarães organizava protestos de rua, em geral contra os desmandos da mídia, e pregava a importância de descolarmos nossos traseiros de nossas respectivas cadeiras. Eu achava que não, que nossos traseiros tinham melhor função descansados sobre as cadeiras, e que o melhor era fazer o que fazíamos de melhor: usar as redes sociais e suas ferramentas para fazer a luta política.

Nas jornadas de junho, contudo, eu também fui à rua. Mais que isso, ajudei a organizar manifestações, como a que fizemos em frente à Globo, em julho, que juntou mais de mil pessoas. Também participei da troca simbólica do nome da rua Irineu Marinho para Leonel Brizola, também em julho.

Ou seja, as ruas não são monopólio de ninguém. A mesma coisa vale para a crítica a elas. Elas, as ruas, devem ser criticadas também, porque um monte de gente na rua não é sinônimo de avanço social. Também houve passeatas em prol de todo o tipo de ditadura. Não podemos criminalizar as ruas, assim como não podemos desqualificar, a priori, as críticas a elas. Ambos – as ruas e as críticas – são igualmente válidos, importantes e democráticos. Tudo depende, naturalmente, do tipo de manifestação ou crítica que se faz. Se eu vir um monte de gente marchando em defesa da ditadura, serei crítico, sem isso significar que sou “anti-rua”.

Dito isso, acho que estamos diante de inúmeras armadilhas para este ano, e todas elas têm a ver com o controle sobre a informação e o poder de interpretá-las em curto espaço de tempo para um grande número de pessoas.

Passemos ao artigo do professor Wanderley.

*

VEM PRÁ RUA VOCÊ TAMBÉM

por Wanderley Guilherme dos Santos, na Carta Capital (Via Conversa Afiada)

O PSDB não chegou à direita pelas próprias pernas. Teve a ajuda do Partido dos Trabalhadores (PT) que se mudou para o centro, distendeu-o, e tornou praticamente inviável a existência de uma coalizão de centro esquerda. Aécio Neves nunca foi reformista, mas julgá-lo um direitista genético é exercício de ativista dogmático. O centro distendido sob hegemonia do PT empurrou a oposição para a vizinhança da extrema direita, precipitando a derrota intestina de José Serra, agarrado a um reacionarismo impensável em quem discursou no comício da Central do Brasil, em 13 de março de 1964. À oposição restam bandeiras pragmaticamente vazias, tais como a encenada indignação moral e acenos genéricos de eficiência. Sem falar no reacionarismo religioso e a defesa de um livre mercadismo de fachada. Como é notório, só com brutal intervenção do Estado um governo de centro-direita será capaz de subverter a legislação petrolífera, os programas Mais-Médicos e Minha Casa, Minha Vida. Mesmo para fazê-los definhar um governo de centro-direita precisará de boa dose de coação sobre uma burocracia estatal comprometida com o progresso, ademais de extrair enorme boa vontade do Congresso Nacional. Esse mesmo Congresso, aviltado pela imprensa conservadora e pela esquerda caolha, foi a instituição que aprovou o regime de partilha do pré-sal, ainda no governo Lula, e tem apoiado as principais políticas sociais do governo Dilma Roussef. Uma política de liberalismo desenfreado só será possível com a transformação do Estado brasileiro em variante do bismarckismo alemão. O avesso do que o eleitorado conservador deseja.

O centro estendido do PT também trouxe dificuldades para o campo progressista. A mais óbvia transparece na acusação de reacionarismo a qualquer opinião divergente, autônoma em relação à cadeia de comando dos líderes do centro-baleia, a começar pelas palavras de ordem do Partido dos Trabalhadores. Embutida na interdição esconde-se menor probabilidade de que deficiências reais de governança sejam proclamadas por aliados. Avanços sociais estão conectados a manifestações de inconformismo, sem automática identificação com a oposição do momento. Durante os governos Vargas e JK sucederam-se greves e passeatas a favor de políticas nacionalistas e de críticas a medidas específicas. As manifestações não atendiam a nenhuma convocação da direita, do tipo “Vem prá rua você também”, que atualmente apavora a esquerda e o governo. O governo opera com déficit de crítica consistente.

Reflexo do ambiente intoxicado, o sindicalismo operário emudeceu. Limitado a manifestos plenos de estereótipos, copia a genérica pauta direitista – ensino público de qualidade (nunca haverá suficiente, o conhecimento progride), saúde pública, transporte, moradia, segurança. Eligibilidade para os analfabetos, que é bom, nada; participação dos trabalhadores na administração das grandes corporações, nem pensar. Não mais do que dois exemplos de uma pauta latente, ausente da cogitação sindical. Os sindicatos não se recuperaram do choque de haver perdido o controle das ruas. Reescrever ideologicamente a história de junho de 2013 não garante a recuperação de iniciativa crível, seja por decreto, seja por currículo de glórias passadas.

Outra conseqüência da consolidação do centro expandido foi a instauração de um vazio institucional à esquerda, vicariamente ocupada por aglomerado de grupos heterogêneos. A coalizão parlamentar do governo tornou irrelevante o apoio da centro-esquerda. Sem considerar o PMDB, cuja análise não é simples, a coalizão do PT tem como coligados numéricos o PP/PROS, o PSD, o PR/PTdoB/ PRP, seguidos, até recentemente, pelo PSB, em parte pelo PDT e pelo PCdoB. O total de cadeiras deste último grupo (PSB, PDT e PCdoB) não ultrapassava 56 lugares. Só o PP, o PR e o PROS detêm um conjunto de 89 cadeiras na Câmara dos Deputados. A cooperação costurada entre os partidos deixou o PT a vários passos de distância de seu parceiro ideológico adjacente, o PSB (24 cadeiras). O rumo do governo é vigiado pelo núcleo duro da centro-direita. Independente dos motivos do governador Eduardo Campos, cujas alianças provocam resistências entre os socialistas, a saída do PSB do governo só surpreende pelo tempo que demorou a acontecer. Para um partido que busca crescer nas eleições proporcionais pela via ideológica da centro-esquerda, talvez a oportunidade tenha sido perdida. A tentativa de enfiar uma cunha entre o centro expandido do PT e o PSDB sofre das dificuldades diante da coalizão no poder e da incoerência ao aceitar o direitismo do Rede como segundo em comando (e há quem duvide que o Rede seja mesmo o segundo em comando) além das oscilações na conduta do candidato Eduardo Campos.

O vazio à esquerda tem sido ocupado por grupos inconformados com o estado do mundo, em geral. Desde logo, esse burburinho nada tem a ver com os “precariados” de Guy Standing (The Precariat – London, Bloomsbury, 2011), tese recém importada. Ao contrário de desempregados, trabalhadores temporários, classe média empobrecida e com miséria à vista, os manifestantes de junho de 2013 eram na maioria jovens de classe média ou empregados com salários acima de 2 salários mínimos (30,3% deles em 20 de junho de 2013, no Rio de Janeiro, segundo a Plus Marketing consultoria) e segmentos em processo de ascensão social. Outras pesquisas registraram o nível superior de estudos de expressivo número de participantes. Economicamente, o elevado custo do meio utilizado para a mobilização – as redes sociais eletrônicas – exclui os presumidos “precariados” da freqüência a participações. Vale registrar que, ao contrário da Europa, à intensidade das manifestações seguiu-se a rapidez de sua dissolução em números de manifestações, de participantes e de cidades contagiadas.

Além do equívoco da classificação de “precariados”, é simplismo considerar que uma convocação fascista obteria tamanho sucesso. Houve a infiltração fascistóide posterior, que terminou por se apropriar da liderança dos acontecimentos. A fragilidade estratégica desses aglomerados, contudo, revelou-se na velocidade com que os grupos de professores, enfermeiras, a maioria de funcionários públicos, foram abandonando as marchas. Reconhecer as diferenças entre os movimentos de 2013 e os movimentos europeus permite supor que as manifestações não aderiram, aqui, ao precipitado diagnóstico de fracasso da social democracia brasileira. A rejeição atingia todas as formas de participação institucionalizada. O que havia e há é um vácuo desde que a marcha para o centro levou o governo a esconder sob inegáveis vitórias econômicas a pauta de modernização do pluralismo social brasileiro: aborto assistido, relações homo afetivas, regulamentação do uso de drogas recreativas, pesquisas com seres vivos, temas, entre outros, eliminados por imposição da direita do centro. A Presidência tornou-se forte parlamentarmente ao preço de se enfraquecer perante a sociedade em mudança.

Algo de novo existe. Trata-se de inédito tipo de intervenção política. Grosso modo, a análise do capitalismo toma por base as classes, as corporações profissionais e cristalizados grupos de interesse. Entendo que os movimentos recentes são constituídos pelo ajuntamento de atores menos abrangentes do que as classificações preponderantes. Eles proliferam como pequenas coletividades de exígua tolerância e com exigentes critérios de pertencimento Denomino-os, sem ofensa, de “micróbios” (pequena vida), primeiro em razão de seu tamanho, e pelo fato de que não possuem denominador comum. Nem todos são patogênicos ou letais, que os há benéficos ao exercício da democracia. Nessa ecologia há lugar para micro legendas, como o PSTU e o PSOL, que encontram em tal cenário a rara oportunidade de serem notados. Comparecem também os grupos nanicos reivindicando direitos (moradores do bairro tal ou qual) ou só comemorando a própria existência, avessos a partidos, sindicatos ou corporações de ofício. São erupções intensas de vida política, mas de curta duração. Eficazes no curto prazo, sem influência em período mais extenso. Eleições são fenômenos de curto prazo, mas o fenômeno dos “micróbios” não é só eleitoralmente relevante. É uma criação da sociedade contemporânea e, portanto, compatível com a convocatória: “Vem prá rua você também”. Os democratas deviam adotá-la e voltar às ruas para conquistá-las.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
Related Post

Privacidade e cookies: Este site utiliza cookies. Ao continuar a usar este site, você concorda com seu uso.