Esse artigo do Lassance, na Carta Maior, põe o dedo na ferida. O Judiciário brasileiro é seletivo. Não é uma pergunta. É uma afirmação. O mensalão do DEM tem provas abundantes, é o caso de corrupção mais documentado da história, e não se condena ninguém. O réu principal, José Arruda, continua livre, leve e solto, e pode concorrer novamente.
Lassance não faz essa comparação, mas ela vem à mente de todo leitor: o mensalão do PT implicou em condenações pesadíssimas, mesmo que houvesse ausência de provas. A falta de provas, aliás, foi atribuída aos réus. “Não tem prova porque eles as esconderam”, diziam os juízes. Um deles firmou que a própria falta de prova era sinal do crime.
Com Arruda e DEM, no entanto, a situação é outra. O caso foi desmembrado. Arruda será julgado em primeira instância, e depois poderá recorrer, como qualquer cidadão, ao STF.
O articulista aborda ainda uma questão delicada e sinistra. A negligência do Judiciário, e do próprio Ministério Público, quando se trata de investigar o DEM pode estar ligada a algo mais do que incompetência ou preguiça burocrática. Pode estar ligada à constrangedora participação de elementos do MP e do Judiciário nos escândalos brazilienses.
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Mensalão do DEM: a insuportável lerdeza do Judiciário brasileiro
O mensalão do DEM é uma evidência indecorosa do quanto um escândalo tão claro e cristalino pode ser acobertado por meandros jurídicos.
Antonio Lassance, na Carta Maior.
A Justiça da Suíça acaba de mandar mais um recado à Justiça brasileira. Ela pede, dessa vez, que nossa Justiça seja mais rápida nas investigações sobre o mensalão do DEM e informe-a o que é para fazer com os milhões bloqueados em contas suspeitas de terem sido abastecidas com recursos públicos desviados.
Uma pergunta simples como essa merece uma resposta direta. Todos esperam que nossa Justiça consiga dizer aos suíços que, por gentileza, devolvam aos cofres públicos do Brasil o dinheiro que foi parar em Genebra, expropriado, desviado, surrupiado, afanado, roubado.
Mas, por incrível que pareça, o Judiciário brasileiro, pelo menos para alguns escândalos muito especiais, demonstra dificuldades estranhas para tomar providências.
O escândalo do DEM é especial não por ser do DEM. É especial por ser um dos casos de corrupção mais bem documentados de toda a história, se não o mais fartamente documentado de todos. Um escândalo que desmente o ditado de que corruptos não passam recibo. Pois esses passaram. O assalto aos cofres do Governo do Distrito Federal teve uma grande quantidade de gravações em áudio, vídeo, bilhetes, livros-caixa, até oração da propina. O roubo foi juramentado, em todos os sentidos. Os depoimentos de testemunhas são até menos importantes, tal o volume de provas materiais objetivas.
José Roberto Arruda, ex-senador pelo PSDB, ex-líder do governo FHC no Senado, ex-deputado pelo PFL e candidato a governador pelo mesmo PFL (hoje DEM) aparece em vídeo, com imagem perfeita e som estéreo, recebendo R$ 50 mil em dinheiro vivo. É o recibo mais bem declarado da história. Seus comparsas, secretários e deputados, foram flagrados fazendo igual, com a mesma qualidade de som e imagem. Do que mais precisa a Justiça brasileira? O que mais ela quer para condenar Arruda e seus asseclas?
O Judiciário até agora sequer foi capaz de tornar Arruda inelegível. Ele continua com a ficha limpíssima. Está pronto para concorrer às eleições no DF, em outubro.
O ex-governador foi recentemente inocentado pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios de uma das várias acusações que pesam sobre sua gestão.
Livrou-se de ficar, oficialmente, com a ficha que todos já sabem ser suja. Todos, menos a Justiça, que é quem conta para enquadrar pessoas que devem ser banidas das eleições e condenadas a devolver recursos que eventualmente tenham sido desviados.
O egrégio Superior Tribunal de Justiça nos brindou com um péssimo exemplo.
Quase um ano após o processo do mensalão do DEM ter sido a ele encaminhado, o STJ concluiu que o caso era por demais “complexo” e decidiu desmembrá-lo. Arruda será julgado por um juiz de primeira instância, em uma das varas criminais da Justiça do Distrito Federal, sabe-se lá quando. Mesmo que seja rápido e ele venha a ser condenado, estará livre da Lei da Ficha Limpa, que só incide sobre condenados em decisão de órgão judiciário colegiado, o que não é o caso quando a decisão vem de um juiz de primeira instância.
Enquanto nosso Judiciário dorme em serviço ou viaja de férias com despesas pagas pelo erário, como as do ministro Joaquim Barbosa, a Suíça pede encarecidamente que alguém responda o que se deve fazer com o dinheiro suspeitíssimo por lá depositado. “Santa complexidade, Batman!”
O mensalão do DEM é uma evidência indecorosa do quanto um escândalo tão claro e cristalino pode ser acobertado por meandros jurídicos que escondem um tratamento nebuloso por parte das autoridades judiciárias. A morosidade diante de práticas de corrupção com inúmeros recibos revela, talvez, não tanto negligência ou incompetência.
Por trás da insuportável lerdeza do Judiciário, pesa uma suspeita, uma teoria sobre sua seletividade: a de haver conivência com crimes em que os réus podem vir a ser, por debaixo das togas, parceiros, sócios, amigos, parentes, ex-“colaboradores” dos acusados. No caso do mensalão do DEM, foi descoberta uma rede de corrupção que envolvia também membros do Ministério Público do DF e Territórios. E quem garante que eram só esses?
O que fazer com o dinheiro em Genebra? Por enquanto, a resposta eminentíssima é: “não sabemos”. Mais adiante, pode vir a ser: “deixa pra lá”.
O Judiciário brasileiro precisa estar mais próximo de uma reforma de suas instituições do que, como vimos muitas vezes, à beira de um ataque de nervos.
Precisa de mais transparência e menos rompantes. Precisa de mais regras sobre o seu poder do que de ser um poder que dita regras. Precisa de mais personalidade do que de personalismo. Precisa de mais ações regulares do que de espetáculos.
(*) Antonio Lassance é doutor em Ciência Política.