O sacripanta de 41 mil reais

Daqui a pouco eu vou publicar o processo que Ali Kamel, diretor de jornalismo da Rede Globo, move contra minha pessoa, pedindo-me R$ 41 mil de indenização por danos morais, em virtude de lhe ter causado “imenso sofrimento”, e irei mostrar detalhadamente a sua inconsistência. Como já adiantei em texto anterior, 90% está baseado num erro primário de interpretação. Um erro verdadeiramente analfabeto. Ele passa páginas e páginas choramingando pelo sofrimento e pela injustiça de afirmar que ele “atenta contra a democracia” e “contra a dignidade humana”, quando o texto, que está reproduzido no processo, deixa bem claro que se trata da Globo, não dele, Ali Kamel.

Vou repetir mais uma vez o trecho que provocou “imenso sofrimento” em Ali Kamel:

“É inacreditável que o diretor de jornalismo da empresa que comete todo o tipo de abuso contra a democracia, contra a dignidade humana, a empresa que se empenha dia e noite para denegrir a imagem do Brasil, aqui e no exterior, cujos métodos de jornalismo fazem os crimes de Rupert Murdoch parecerem estrepolias de uma criança mimada, pretenda processar um blogueiro por causa de um chiste! “

Eu ainda repito duas vezes o termo “empresa”.

Mas Kamel é tão identificado com a Globo que ele incorpora as críticas como se lhe fossem dirigidas pessoalmente.

A única referência negativa a Ali Kamel no texto, portanto, seria esta:

“(…) sacripanta reacionário e golpista.”

Reacionário é uma crítica ideológica; não se pode condenar ninguém por isso. Golpista é uma crítica política; e a própria Globo admitiu há pouco que é golpista, porque apoiou o golpe de Estado de 1964, e tentou se desculpar por fazê-lo. Ganhou bilhões, ajudou a matar milhares por opinião política e outros milhões, por falta de dinheiro, e agora pede desculpas.

O único termo, portanto, que realmente poderia suscitar uma reação legal seria “sacripanta”.

Eu não sou nenhum maluco, embora possa parecê-lo às vezes. Eu meço as consequências de tudo que escrevo. Lembro-me bem quando publiquei esse texto. Eu medi o risco, e pensei assim: não é possível que alguém me processe por chamá-lo de “sacripanta”.

Por quê? Porque é um termo culto, raro, com um sabor exótico, e portanto tem valor literário e humorístico. Não é um termo chulo.

A liberdade de expressão no Brasil ficaria abalada se não pudéssemos usar um termo culto, raro e exótico para designar um adversário político. E Ali Kamel, ao mover processos contra aqueles que eu considero meus colegas de ofício, inscreveu-se no meu rol particular de adversários políticos.

O termo “sacripanta” se dirige a um diretor de jornalismo da Rede Globo que tenta asfixiar o pensamento divergente. O seu uso se inscreve, como fica bem claro no texto, num contexto de crítica política às linhas editoriais da empresa que Kamel dirige, e pelas ações de Kamel dentro dessa empresa. Não é uma crítica a nenhum aspecto da personalidade do executivo, e sim à sua atuação política à frente de uma concessão pública que recebeu mais de R$ 6 bilhões apenas do governo federal nos últimos 10 anos. Atuação esta que extrapola suas funções de diretor de jornalismo, e envereda para o campo da truculência judicial, mas sempre visando intimidar vozes críticas ao poderio da Globo.

O jornalismo da Globo, que é dirigido por Ali Kamel, acusou pesadamente o presidente do Equador, Rafael Correa, por ter processado um jornalista que assinou um editorial em que o chamava de “homicida”. Houve uma rebelião em Quito, que degringolou num tiroteio, com mortes. O jornalista em questão tentou jogar a culpa no presidente.

Correa processou o jornalista em alguns milhões de dólares. Mais tarde, quando saiu a condenação, ele retirou a exigência de valor. No entretempo, a Globo liderou uma campanha, atuando fortemente junto à Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP) e outros órgãos internacionais, na qual acusava o governo equatoriano de pretender calar seus críticos via manipulação judicial e asfixia financeira. A Globo faz a mesma acusação a vários os governos da América Latina.

Não é uma incoerência absurda que a Globo agora pretenda fazer o que ela mesma critica em governos latinos? E pior, não contra grandes jornais, mas contra pequenos blogs? Que pretenda intimidar as poucas vozes críticas a seu poderio, via manipulação judicial e asfixia financeira (indenização, advogados, etc)?

É muita covardia, porque ainda somos uma força nova. Somos pequenos. Não nos beneficiamos, como a Globo, de golpes de Estado e aportes de verba pública que, nos últimos 50 anos, devem ter consumido mais do que se gastou em programas sociais no período.

A Globo é a cabeça de uma rede. Os grandes grupos de mídia do Brasil são interligados ideologica, politica e empresarialmente, mas a liderança é exercida naturalmente por aquele que detêm o maior poder econômico, além de possuir a concessão pública de maior audiência no país. Folha, Abril, Estadão, latem muito alto. Mas quem morde mesmo é a Globo, porque só ela tem poder eleitoral efetivo.

Uma matéria exibida no Jornal Nacional, às vésperas de uma eleição, pode inverter uma situação de favoritismo e mudar o destino de 200 milhões de brasileiros. Dada a importância atual do Brasil no cenário geopolítico sul-americano, a Globo pode mudar o destino de toda a região.

A Globo sabe disso e, mesmo após a vergonha de ter apoiado um golpe de Estado que nos roubou mais de vinte anos de democracia, ainda continua praticando atos de vandalismo político. Nas últimas eleições presidenciais, a maior preocupação das pessoas politizadas era saber qual o “golpe” que a Globo iria aplicar no dia seguinte.

Enquanto nós, blogueiros, tentamos promover um debate político fundamentado em argumentos, ideias, estatísticas, a Globo sempre pode vir com uma “bala de prata” no último dia, e ganhar a eleição.

Felizmente, isso não tem acontecido (não por falta de tentativa), o que explica também o ódio e a amargura de Ali Kamel. Sim, porque somente uma pessoa muito amarga para processar um blogueiro por tê-lo chamado de “sacripanta”.

*

Eu recebi o processo terça-feira à tarde. Estava tranquilo em casa, quando o porteiro me interfonou, com voz culpada, falando que havia ali um oficial de justiça. Mandei subir. Fui fiador do apartamento de uma ex-amiga da minha esposa, que não pagou os dois últimos aluguéis antes de encerrar o contrato. Pensei que fosse algo relacionado a este caso, que tem me aporrinhado um pouco (mas só um pouco, visto que não é nada grande).

O oficial entrou e me apresentou o documento. “Este senhor aqui, cujo nome não consigo pronunciar, está entrando com um processo contra você”.

Eu peguei o documento e logo identifiquei quem era. Disse ao oficial: “É o Ali Kamel, diretor de jornalismo do Globo”. Analisei rapidamente o processo e vi que se tratava de um processo por dano moral por causa do post As taras de Ali Kamel. Eu sabia que a única coisa ali era o termo “sacripanta”. Mencionei o caso rapidamente ao oficial, e senti uma onda de simpatia emanando dele. O cara queria ficar ali, conversando.

Mais tarde, após escrever minha primeira defesa, fui dar uma volta na rua, e pensei: “cara, que erro primário da Globo”. Com isso, eles só vão chamar a atenção para o seu arbítrio, a sua truculência, o seu desconforto para com a pluralidade. A ditadura está no DNA da Globo, e por isso cometeram este erro.

Meus colegas blogueiros me ligaram em seguida e me alertaram para a força da Globo no Judiciário do Rio. “Eles têm lobistas na Justiça daí. Cuidado. Prepare-se para perder”.

Francamente, eu não posso acreditar que um juiz possa condenar um blogueiro político por ter chamado o diretor da Globo de “sacripanta”, não no contexto em que seu deu o referido artigo, e num processo repleto de erros ridículos.

Um advogado amigo que viu o processo observou ainda que Ali Kamel sequer pede a retirada do link da internet. Também não pede direito de resposta (o que seria ridículo partindo de uma pessoa que comanda a maior mídia do país, mas tudo bem). Ele simplesmente quer dinheiro. De um blogueiro notoriamente duro. E ainda diz que o Cafezinho não é simples veículo de manifestações das minhas ideias, mas “visa o lucro” porque eu vendo assinaturas, como que escarnecendo das minhas tentativas algo desesperadas para manter o Cafezinho vivo e poder, com isso, expressar minhas ideias.

É tanto cinismo, tanto escárnio, tanta prepotência, que até agora eu ainda não consigo acreditar. Eu tento fingir que está tudo bem, que isso no fundo irá se reverter a meu favor, mas é claro que isso me deixa um pouco nervoso. Não gosto de ser processado. Tenho o maior cuidado com isso, embora eu não seja perfeito e, no calor dos embates políticos, eu possa cometer erros. Mas quem se sentir ofendido, entre em contato, reclame. Se for o caso, eu peço desculpas, publico o texto da pessoa no blog. Querer punir um blogueiro situado à margem do sistema capitalista tradicional, exigindo-lhe uma indenização de R$ 41 mil, que é quase o preço que paguei, em 2007, pelo meu apartamento de quarto e sala, num prédio proletário situado numa rua suja e semi-destruída da Lapa, é uma violência imperdoável. Um erro político.

Um grande erro causado pela arrogância.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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