Reproduzo abaixo um belíssimo depoimento de Leandro Fortes, que se despede da Carta Capital para enveredar por “outras plagas profissionais”.
Eu apenas ressalvaria o seguinte: se há uma desvinculação, a partir de agora, entre Leandro Fortes e a Carta Capital, isso não muda em nada o vínculo de Fortes com o que existe de mais nobre no jornalismo brasileiro. Uma nobreza rara hoje em dia, e por isso mesmo tão valiosa.
De qualquer forma, Fortes foi testemunha ocular e emocional da degradação do jornalismo comercial brasileiro, convertido, em plena democracia, em mero porrete intelectual manipulado pelos donos da mídia.
Eu devo a CartaCapital a oportunidade de ter voltado a amar o jornalismo. Espero ter retribuído à altura
por Leandro Fortes — publicado 01/11/2013 12:07, última modificação 01/11/2013 12:50
No site da Carta Capital
Em outubro de 2005, eu havia desistido do jornalismo.
A fúria com que a mídia havia se debruçado sobre o escândalo do “mensalão” havia, na época, iniciado uma onda de vandalismo editorial que transformara o trabalho das redações de Brasília em gincanas de uma só tarefa: derrubar o governo Lula.
Transformados em soldados de uma estrutura paralisante de pensamento único, os repórteres de Brasília passaram a gravitar em volta desse objetivo traçado pelo baronato da mídia sem maiores preocupações críticas. De repente, a ordem era adaptar todas as teses progressistas e de esquerda vinculadas ao governo do PT ao esgoto do “maior escândalo de corrupção da história do Brasil” e, a partir de então, iniciar a caçada a Lula e seu mandato presidencial. Fracassaram, mas não pararam de se multiplicar.
Assim, meia dúzia de famílias que monopolizava (e ainda monopoliza) o negócio da comunicação no País se uniu, como em 1964, para derrubar um presidente eleito pelo voto popular por meio do mesmíssimo discurso udenista de combate à corrupção agregado, a partir de uma adaptação tosca e deliberadamente manipulada, a conceitos difusos de liberdade de imprensa e liberdade de expressão – uma armadilha retórica que perdura até hoje, cujo o objetivo continua sendo o mesmo, o de não discutir seriamente nem uma coisa nem outra.
Eu havia largado empregos promissores da chamada “grande imprensa” para me dedicar a dar aulas de jornalismo em uma faculdade de Brasília. Pretendia, como acabei fazendo pouco tempo depois, criar um fórum próprio de discussão e formação em jornalismo desvinculado da crescente ideologização de direita, conservadora e medíocre da mídia nacional. Assim nasceu a Escola Livre de Jornalismo, uma arena de ideias, seminários, palestras e oficinas para estudantes e jovens jornalistas em busca de contrapontos ao mau cheiro da mídia tradicional. Dediquei-me, ainda, a escrever livros e fazer palestras Brasil afora.
A CartaCapital entrou na minha vida, em 2005, pelas mãos da mesma pessoa que me fez vir para Brasília, em 1990, Cynara Menezes – minha amiga e contemporânea dos tempos da UFBA, minha irmã querida, jornalista brilhante, desde sempre.
Eu não sabia, mas ao ser indicado por Cynara para assumir o cargo de correspondente da Carta em Brasília, eu teria a chance de viver a mais importante, relevante e satisfatória experiência da minha carreira de jornalista desde que, numa tarde de maio de 1986, eu botei os pés na redação da Tribuna da Bahia, como estagiário não-remunerado, em um velho prédio coberto de fuligem do bairro da Sete Portas, nas entranhas da velha Salvador.
A experiência na Carta traz o traço marcante da convivência com o idealizador e a alma da revista, Mino Carta, de longe o mais importante e referencial jornalista ainda em atividade no Brasil. Eu, que já havia trabalhador para as famílias Mesquita, Sirotsky, Marinho e Nascimento Brito, não sabia o que era ter como patrão um jornalista de verdade. Fosse apenas isso, ter a oportunidade de trabalhar e conviver com um profissional da qualidade – e com a sabedoria – de Mino, a experiência na CartaCapital já teria sido um presente. Mas foi mais do que isso.
Nesses oito anos de CartaCapital, moldei meu espírito de repórter no combate permanente às injustiças sociais, ao moralismo seletivo e ao mau jornalismo vendido à sociedade como suprassumo do pensamento liberal, mas que é somente subproduto risível de certa escola de reportagem a serviço do que há de pior e mais reacionário no pensamento das autodenominadas elites nacionais.
Desde a minha trincheira, na capital federal, parti para percorrer o País a fim de ouvir quem nunca tinha sido ouvido e dar voz a quem nunca pode falar.
Fui, com muito orgulho, o repórter dos invisíveis.
Agora, de partida para outras plagas profissionais, gostaria de compartilhar com todos vocês, queridos amigos, colegas e leitores, esse meu sentimento contraditório, tão típico dos que se despendem sem a certeza de que querem mesmo ir embora.
Eu devo a CartaCapital a oportunidade de ter voltado a amar o jornalismo, com todas as dificuldades e sacrifícios que esse ofício tão especial nos coloca no caminho, todo dia.
Hoje, no meu último dia de trabalho na Carta, olho para trás e espero, sinceramente, ter retribuído à altura.