O professor Wanderley Guilherme saúda a nossa Constituição, o livro que guarda o espírito democrático de nossa jovem República que alguns, arrogantemente, já consideram velha…
Longa vida à Constituição de 1988!
Por Wanderley Guilherme dos Santos, Cafezinho, 17/10/2013
Em 6 de outubro de 1988 começaram as críticas à Carta constitucional brasileira, promulgada no dia anterior. Desde então se sucederam os comentários ácidos, jocosos, desmoralizadores e reivindicantes. Entre outras, a reivindicação de que seja alterada, ou melhor, substituída. É possível que nos seminários dos profissionais do Direito a matéria seja discutida com mais propriedade argumentativa do que se costuma encontrar nas discussões plebéias. Não é o que ocorre na vida pública. Assim como o tema da reforma política, qualquer orador extrai palmas da audiência quando torce o nariz ao mencionar, sem maiores explicações, a Constituição que “está aí”. De minha parte, data vênia, quero dizer que ainda bem.
Digo ainda que me aparece como exemplo de loquacidade leviana acusar a Constituição de prolixidade, atribuindo-se a esta as eventuais dificuldades governativas do País. Em comparação simples com os demais países da América do Sul, os 250 artigos da Carta de 88 não parecem especialmente desproporcionais face aos 380 artigos da constituição colombiana, os 350 da venezuelana ou mesmo os 332 da constituição do Uruguay. Mais ou menos da mesma extensão que a brasileira encontram-se a do Paraguai, com 239 artigos, a da Bolívia, com 234, e a do Peru, com 206 artigos.
Comparativamente enxutas são as constituições da Argentina (129 artigos) e do Chile (119 artigos). Não consta da história do continente, todavia, que as secularidades tribulações de todos eles tenham sido ou possam ser atribuídas à extensão de suas constituições.
Imperfeitas todas são, neste e nos países dos demais continentes, posto que os documentos envelhecem, embora com mais vagar do que seus autores. Para isso estão aí as práticas de emendas constitucionais e eventuais revisões. E também não é incomum que governantes responsabilizem as Constituições, ou partes delas, pelas dificuldades que, não raro igualmente, se devem à reduzida habilidade de que dispõem.
Não cabem dúvidas de que os constituintes de 86 teceram um documento dando ampla cobertura de direitos a todos os segmentos da nação, algo inteiramente inédito na história constitucional do Brasil. Previram a inauguração e consolidação de instituições originais, senão na letra, seguramente na efetivação delas. Se legisla pela metade em vários aspectos – por exemplo, ao consagrar o direito de votar, mas não de ser votado aos analfabetos – , introduz inovações que representam um salto nas relações entre as repartições estatais e o cidadão comum. A Ouvidoria Pública é uma delas.
Com origem na Suécia do século XIX, os ouvidores públicos serviam de intermediários entre o poder real ou republicano e os cidadãos com respeito ao funcionamento das repartições do Estado. É bem verdade que a efetivação do instrumento de controle do poder público levou décadas para se tornar efetivo nos países que primeiro adotaram a inovação social, assim como também no Brasil, desde o Império. Importa registrar que surge hoje como recurso de crescente eficácia dos brasileiros, indicada pelos números anuais de reclamações de pessoas comuns ou das instituições que as representam. Foram, em 2012, 5.616 demandas contra 1.043 em 2009. Do total, mais de 50% vieram do público externo das repartições públicas (2.764 solicitações), das quais, por sua vez, mais de 50% tiveram cidadãos comuns como autores (1.777). Uma informação extremamente importante encontra-se no fato de mais de 55% das demandas foram transmitidas pela internet. Tanto quanto a relevância da ferramenta, vale sublinhar que a população desprovida de acesso a ela tem, obviamente, menos oportunidades de se valer da Ouvidoria.
A Ouvidoria é um exemplo singular do argumento geral com que defendo a vitalidade da Constituição de 88, ao mesmo tempo em que enfatizo que as deficiências constitucionais do País não estão na senectude de sua Carta, mas na insuficiência de sua implantação no território nacional. Seu amplo catálogo de direitos e os segmentos sociais reconhecidos e protegidos em sua dignidade não consistem, ainda, em mais do que promessas constitucionais, sem validade real no mundo dos homens comuns. O Brasil não é um País de constitucionalidade provecta ou desueta, mas de constitucionalidade incompleta. A Carta não vale em todos os rincões da nação. Assim como precisa de mais médicos, o Brasil precisa de mais Constituição, efetiva, vigente no dia a dia das pessoas onde quer que vivam.
Com um quarto de século de existência, a Constituição de 88 já viu poucas e boas, tendo a todas absorvido e a elas sobrevivido. Que tenha longa vida!
Coluna Cafezinho com Wanderley Guilherme.