A ministra Carmen Lúcia agarrou-se com leviandade à tábua de salvação oferecida pelo jornal O Globo, que na véspera de seu voto publicou um artigo de Tânia Rangel, professora da FGV, segundo o qual o STF perderia a isonomia em relação ao STJ se aceitasse o embargo infringente.
A falácia causou impacto por 24 horas, tempo máximo durante o qual a mídia conseguiu bloquear o contraditório. Suficiente, porém, para conquistar o precioso voto de uma Carmen Lúcia aflita para se ver livre de pressões.
A grande mídia, em toda a Ação Penal 470, promove um cerco individualizado a cada ministro. “Poucos são corrompidos por poucos”, dizia Maquiavel.
A explicação pela qual o STF deve continuar aceitando embargos infringentes é porque ele, e só ele, é a última e definitiva instância judicial no país. Um réu condenado em qualquer outro tribunal, inclusive no STJ, pode apelar ao STF. Um réu do STF não pode apelar a mais ninguém.
A figura do embargo infringente, portanto, é fundamental para minimizar este poder quase absoluto do STF.
Outra falácia é a levantada por Gilmar Mendes e Marco Aurélio Mello, e repetida hoje por Merval Pereira e pelo cada vez mais insidioso Ancelmo Gois: aceitar infringentes daria espaço, como estaria dando, para manipulação política através de novas indicações. Mais um capítulo na campanha suja da mídia e da direita para conspurcar tudo que vem da política. O perigo real contra o qual temos de nos precaver é o STF ser influenciado por grupos econômicos privados, ao invés de sê-lo, como rege a Constituição, pelos únicos poderes que emanam genuinamente do povo, o Executivo e o Legislativo. O resto é golpe.
O legislador entendeu, e deixou isso claro por escrito, que a alteração de composição do tribunal é um fato salutar e almejado. Uma nova composição enseja uma visão diferente do processo penal. Gilmar Mendes e Marco Aurélio trabalham com dois princípios hostis ao direito moderno: a infalibilidade do juiz e a presunção da culpa. Para eles, não apenas os réus (desde que petistas, é claro) são culpados até em prova o contrário; os novos juízes indicados pelo governo (se for petista, é claro) também são culpados até em prova em contrário; não votariam segundo sua consciência, mas segundo os interesses do PT.
Assim é fácil manipular. Ministro que vota a favor do PT é malvado. Ministro que vota contra é bonzinho.
Entretanto, o deputado Jarbas Lima, hoje professor de direito constitucional da PUC do Rio Grande do Sul, afirmou justamente o contrário, durante um debate parlamentar realizado em 1998, que definiu o destino dos embargos infringentes. A posição de Lima, pró-infringentes, prevaleceu, e um dos fundamentos de sua opinião era prestigiar mudanças na composição da corte.
Se a controvérsia estabelecida tem tamanho vulto, é relevante que se oportunize novo julgamento para a rediscussão do tema e a fixação de um entendimento definitivo, que depois dificilmente chegará a ser revisto. Eventual alteração na composição do Supremo Tribunal no interregno poderá influir no afinal verificado, que também poderá ser modificado por argumentos ainda não considerados ou até por circunstâncias conjunturais relevantes que se tenham feito sentir entre os dois momentos. Não se afigura oportuno fechar a última porta para o debate judiciário de assuntos da mais alta relevância para a vida nacional.
Esse é o princípio filosófico mais importante de constituições humanistas como a nossa: jamais fechar portas para o indivíduo lutar por sua liberdade, honra e inocência. Pedir o engessamento do processo penal é próprio de uma ideologia medievalista e reacionária.
Aquele que odeia o PT e quer ver Dirceu na cadeia não pode se deixar cegar por este ódio. Dirceu passa, a lei fica. Será mesmo saudável para a democracia entregarmos o destino de milhões a 11 juízes contra os quais não se pode recorrer?
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Carta publicada na Folha, do advogado de um dos réus da Ação Penal 470:
O argumento dos que negam a admissibilidade dos embargos infringentes pelo fato de o mesmo não ser admitido no STJ (Superior Tribunal de Justiça) e no STF (Supremo Tribunal Federal), com a devida vênia, não pode prevalecer. É preciso lembrar que os condenados pelo STJ poderão recorrer ao STF. E os condenados pelo STF vão recorrer a quem?
Do mesmo modo, não vale o argumento de que uma condenação em primeira instância não admite embargos infringentes. É obvio, posto que aos condenados em primeira instância é dado a garantia do duplo grau de jurisdição, ou seja, o condenado poderá recorrer ao tribunal competente.
Outros sofismas são os de que a admissibilidade dos embargos infringentes implica em novo julgamento e que as defesas já tiveram todas as oportunidades. Ora, é evidente que não se trata de novo julgamento, mas, sim, da possibilidade de o próprio Supremo rever sua posição em relação à condenação e às penas.
Leonardo Isaac Yarochewsky, advogado de Simone Vasconcelos na ação penal 470 (Belo Horizonte, MG)