“Peu de gens devineront combien il a fallu être triste pour ressusciter Carthage”, escreveu Flaubert a um amigo, referindo-se às dificuldades que encontrou, em sua própria imaginação, para reconstruir ficcionalmente aquela brilhante civilização, destruída inteiramente por Roma. Tradução: “Pouca gente entende como é preciso estar triste para ressuscitar Cartago”.
Walter Benjamin cita a frase num de seus ensaios sobre história, no qual ele expõe uma forma mais moderna de analisar o passado, diferente da acadêmica-tradicional, que sempre valorizava o vencedor. Um historiador, ou filósofo de história, deve entender o patrimônio cultural que herdou não apenas como resultado do “esforço dos grandes gênios”, mas também como da “escravidão anônima de seus contemporâneos”.
A tristeza de Flaubert nasce, justamente, de uma tentativa de se distanciar emocionalmente do triunfalismo cultural que se estende, de classe dominante à classe dominante, desde os primórdios da civilização.
No dia 7 de setembro, por exemplo, estão programados centenas de manifestações em todo o Brasil. Esquerda e direita unidas em lindos protestos populares, apartidários e pacíficos. O fato de possivelmente terminarem em depredações, saques generalizados, seja através de ações de “infiltrados” ou não, não será mais, todavia, um detalhe insignificante.
Não vou mais fazer especulações paranoicas. Apenas apontar nossos erros, entre eles o próprio 7 de setembro, um evento que há muito tempo não fala à imaginação popular. Tornou-se um evento burocrático, militar, sem ligação nenhuma com suas raízes. Que independência comemoramos no 7 de setembro?
Por outro lado, porque jamais pensamos em criar uma data comemorativa, ou efeméride, para a redemocratização? Porque não criamos um Dia Nacional da Democracia?
Alguém já fez um estudo sobre o simbolismo do 7 de setembro para os brasileiros? Um bando de milicos desfilando pelas ruas? A única guerra que nossos militares lutaram, na história recente, foi contra o próprio Brasil. E o histórico de violência policial de todos os estados brasileiros também não ajuda a população à ver com bons olhos nenhum desfile de soldados armados.
Como dizia o escritor francês, quanto sentimento, quanta imaginação, não seriam necessários para reconstruirmos os fatos que nos levaram à ditadura, e depois à sua superação? Mas com a mídia dominada pelas mesmas empresas que produziram o golpe de Estado e se locupletaram com ele, como reconstruir Cartago? Quando a nossa mídia reconstrói o passado, como na minissérie Anos Rebeldes ou Agosto, sempre usará o privilégio para excluir a si mesma, para escamotear a sua própria responsabilidade na vitória do arbítrio.
Berlusconi é um magnata da mídia italiana que enfrenta problemas na justiça, vai a tribunais, já foi condenado várias vezes. É um homem poderoso, mas não totalmente intocável pelas instituições. E olha que a família de Berlusconi, que eu saiba, nunca apoiou nenhum golpe de Estado. Aqui no Brasil, temos uma família, os Marinho, que se enriqueceu soberbamente durante o regime militar, durante o qual consolidou seu império midiático, cujos tentáculos são geridos por oligarcas políticos, como Henrique Alves, presidente do Congresso, Renan Calheiros, Collor, ACM Neto. Fez tudo isso com ajuda de um potência estrangeira interessada em roubar nossas riquezas e atrasar nosso desenvolvimento, para que continuássemos grandes importadores de seus produtos.
Esta mesma empresa ainda domina a mídia brasileira, pauta a nossa agenda política, elege bancadas, chantageia todos os governos, e usa todo esse poder para fazer de seus proprietários a família mais rica do país. Associada a Rupert Murdoch, a Globo domina também o setor de canais por assinatura. Na área de revistas e jornais, forma uma cartel ideológico, uma verdadeira quadrilha política, com outras famílias que também se locupletaram na ditadura.
É preciso imaginação, contudo, para visualizar que a riqueza dos Marinho foi produzida às custas da escravidão, miséria e desespero de milhões de brasileiros. Enquanto a Globo sustentava a ditadura e consolidava seu império, o salário mínimo declinava, os professores ganhavam cada vez menos e a concentração de renda batia recordes mundiais. Uma coisa está ligada à outra: a riqueza da Globo e a miséria do país. O poderio imenso da Globo e a sabotagem das instituições democráticas.
Quero acreditar que o “gigante”, no dia 7 de setembro, também estará atento a essa realidade. Quero acreditar que as “ruas” não se vergarão aos interesses mesquinhos do conservadorismo golpista que sempre abortou e bloqueou as reformas estruturais que o Brasil até hoje deve à sua gente.
Se as ruas querem, portanto, um alvo, um foco. Se as pessoas precisam de algo para odiar, e extravasar essa frustração insuportável de vivermos num país tão rico, tão cheio de oportunidades, e ainda tão atrasado em termos de serviços públicos, não se esqueçam das Organizações Globo e da família Marinho, com sua fortuna pessoal de 52 bilhões de reais. Não esqueçam que a fragilização da classe política e do governo fortalece, por tabela, os grupos privados, os bancos, os especuladores e a mídia. Foi assim que Berlusconi ascendeu politicamente na Itália. O que não significa que governo e políticos não devam ser criticados. Devem sim, claro, mas justamente por se acovardarem perante os meios de comunicação.
O Brasil precisa de uma regulamentação da mídia que reduza o poder da família Marinho, pela simples razão de que é antidemocrático, injusto e contraditório que um grupo privado, cujas forças nasceram do arbítrio e portanto da mais abjeta corrupção, detenha uma hegemonia desproporcional sobre o debate político. A Globo não pode ser comparada à nenhuma imprensa de país desenvolvido, porque em nenhum deles há uma empresa de mídia que detenha um poder político e financeiro tão grande.