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Sobre a “generosidade” de Eugenio Vieira no Vale do Cuiabá

É incrível a linha tênue que às vezes parece separar generosidade e oportunismo; esperteza e boas intenções.

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Desde alguns meses, quando publiquei algumas denúncias bombásticas, sobre temas que não vem ao caso agora relembrar, a visitação do blog cresceu mais de dez vezes, chegando hoje a aproximadamente 50 mil pageviews por dia. E venho recebendo denúncias todos os dias, sobretudo quando as pessoas acham que as pessoas envolvidas são “blindadas” pelos grandes meios de comunicação.

Muitas exigem um processo de investigação e confirmação que me tomaria tempo e recursos que infelizmente ainda não disponho, então sou obrigado a engavetá-las provisoriamente, à espera de melhor oportunidade de voltar a elas. Algumas nem são propriamente “denúncias”, mas histórias não muito louváveis sobre personalidades públicas. Desta vez, me chegou uma história deste tipo, escrita com bastante clareza, e que me pareceu interessante sob diversos ponto-de-vistas: humano, político, econômico, social, até mesmo literário. É incrível a linha tênue que às vezes parece separar generosidade e oportunismo; esperteza e boas intenções.

Publico o texto abaixo, sem editar:

 

“Prezado blogueiro, parabéns pelas suas recentes denúncias e pelo sucesso do blog. Eu também tenho uma história que talvez lhe interesse publicar.

É um caso que merece ser analisado com atenção, por mostrar o grau de sofisticação com que nossa elite às vezes aplica golpe em seus próprios pares. Sim, desta vez, não é propriamente um caso de desvio de dinheiro público, e sim o uso de uma tragédia, e a comoção geral provocada por ela, para obter doações de famílias tradicionais, artistas, empresas, e até mesmo chefs de cozinha, para um projeto que, ao cabo, beneficiou principalmente o organizador das doações.

Refiro-me ao atual presidente da Firjan, Eugênio Vieira.

Em 2011, uma tragédia se abateu sobre a região serrana do Estado do Rio de Janeiro. O Vale do Cuiabá, em Petrópolis, uma região de luxo ocupada por fazendas e chácaras pertencentes a famílias tradicionais da elite carioca, não escapou. Não se esqueçam que foi a maior tragédia climática da história do país. Duas semanas após a tragédia, havia 841 mortos e 540 desaparecidos. Até hoje não sei a conta total. Houve 14 mortes no Vale do Cuiabá. Choramos muito por essas pessoas e seus familiares. Na morte, todos os seres humanos somos iguais.

Sem querer entrar numa competição macabra de quem perdeu mais, sou obrigado a lembrar que somente Friburgo registrou mais de 500 mortes e uma destruição urbana sem paralelo na história do país.

É importante ressaltar que a cidade de Nova Friburgo, onde eu vivo, é a segunda maior cidade industrial do estado. Eu tenho parentes e amigos que trabalhavam em indústrias, e que perderam tudo. Eu mesmo trabalhei por muitos anos numa indústria local. Esperávamos que a Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (Firjan), e seu presidente, cujo salário pagamos do nosso bolso, nos ajudasse nesse momento difícil. Queriamos que ele se esforçasse não apenas para convencer as autoridades a investir na reconstrução rápida das estruturas que perdemos, mas que se mobilizasse também junto ao setor privado e à sociedade fluminense em geral para mostrar a extensão da nossa catástofre.

No entanto, Eugênio Vieira concentrou todos seus esforços no Vale do Cuiabá, em Petrópolis. Todas as grandes e médias empresas que vendem materiais de construção, Votorantin, Gerdau, Suvinil, ou oferecem serviços relacionados, foram contatadas, possivelmente até achacadas (ninguém quer ficar mal com o presidente da poderosa Firjan), para que colaborassem na reconstrução do Vale do Cuiabá.

Um evento foi organizado no Parque Laje, onde dezenas dos maiores artistas brasileiros doaram seus trabalhos para um leilão voltado à reconstrução do Vale.

Os seguintes artistas doaram seus trabalhos:

Adriana Varejão, Afonso Tostes, Alejandro Somaschini, Alexandre Mazza, Ana Holck, Ana Vidigal, Angelo Venosa, Antonio Bokel, Antonio Dias, AoLeo, Beatriz Milhazes, Bettina Vaz Guimaraes, Brigida Baltar, Cabelo, Carla Guagliardi, Carlos Vergara, Cildo Meireles, Claudia Bakker, Claudia Jaguaribe, Cristina Canale, Daniel Senise, Ding Musa, Edu Coimbra, Elisa Castro, Elizabeth Jobim, Enrica Bernadelli, Érika Verzutti, Felipe Barbosa, Gabriela Machado, Gisele Camargo, Gonçalo Ivo, Jaqueline Vojta, João Modé, José Damasceno, Leda Catunda, Leon Ferrari, Livia Flores, Luiz Áquila, Luiz Monken, Malu Saddi, Marcelo Solá, Maria Lynch, Maria Nepomuceno, Matheus Rocha Pitta, Miguel Rio Branco, Nazareno, Nelson Felix, Nelson Leirner, Otavio Levier Serra, Otavio Schipper, Raul Mourão, Renan Cepeda, Rosana Ricalde, Thiago Rocha Pitta, Vik Muniz, Waltercio Caldas.

Os maiores chefs de cozinha do estado, Claude Troisgros, Felipe Bronze, Roberta Sudbrack, Roland Villard e Samantha Aquim, também doaram comidas especiais para o evento, além de estarem presentes cuidado de tudo, sem cobrar nada. A famosa cenografista Bia Lessa trabalhou gratuitamente para produzir uma festa beneficente inesquecível.

Tudo lindo e maravilhoso. O esforço de Eugenio Vieira, sempre usando o prestígio de ser presidente da Firjan, deu resultados. Foram arrecadados quase a totalidade dos R$ 8 ou R$ 9 milhões necessários para a reconstrução das casas destruídas. Foi feito um filme mostrando a entrega de 24 casas a famílias que estavam sem moradia. Mais tarde, o Globo menciona 61 moradias construídas no projeto.

Eu e meus amigos de Nova Friburgo, ainda aturdidos com a tragédia, não entendíamos muito bem porque Eugênio Vieira só dava atenção ao Vale do Cuiabá, sem dar muita bola para a nossa região, a maior geradora de empregos em toda a região serrana. Sempre é bom lembrar que à tragédia humana e urbana sempre se segue uma terrível tragédia social, advinda do fechamento de postos de trabalho.

Com o passar dos meses, fomos entendendo. No blog da colunista Hildegard Angel, lemos um texto intitulado “A história da Alta Sociedade brasileira passa pelo Vale do Cuiabá”, onde descobrimos que a família Vieira possui as principais propriedades da região. A intenção de Angel não foi denunciar ninguém, pelo contrário. Ela lamenta as mortes ocorridas no local e a destruição de uma região com casas tão lindas. Mas ao relacionar a quem pertencem as maiores fazendas, sítios e chácaras, o nome dos Vieira aparece em primeiro lugar.

Isso foi um choque para a gente. Ficamos nos perguntando, será que os artistas, chefs e empresários que doaram obras, serviços e dinheiro para a reconstrução do Vale do Cuiabá sabiam que estavam colaborando para a valorização das terras da família Vieira?

Discutindo com amigos sobre isso, alguns me recriminaram: poxa, e você não pensa nas pessoas que receberam casas? Elas não estão felizes?

Pois é, essa colocação delas me deixou calado por muito tempo. Mesmo assim, eu tinha uma pulga atrás da orelha. Aí uns parentes me lembraram, só para me provocar, que Eugênio Vieira é candidato, mais uma vez, à presidência da Firjan. O cara não desgruda, não é possível, pensei. Vai completar quantas décadas à frente. Está superando até ditadores africanos. Daí que resolvi passar um fim de semana com minha esposa em Petrópolis, para ver novamente o Vale do Cuiabá. Queria olhar as belezas do lugar, admirar as casas novas, e esquecer de Eugênio Vieira.

Só que aí chegam a meus ouvidos, algumas informações alarmantes. As pessoas que receberam as casas do projeto do Vale do Cuiabá são quase todas empregados nas propriedades da família Vieira. E o pior, vivem numa condição de quase escravos, porque os títulos de propriedade são precários. “Títulos de propriedade com interdição à alienação” é o nome exato. Ou seja, tudo está sob o controle da família do presidente da Firjan.

Me desculpem por esse desabafo, mas isso é demais para mim. O sujeito usa uma tragédia para mobilizar toda a sociedade fluminense, que doa obras de arte e dinheiro, para beneficiar principalmente a si mesmo e sua família? E mesmo sendo presidente da Firjan, esquece da segunda maior cidade industrial do estado, Nova Friburgo, a principal vítima da tragédia? E ainda por cima, produz uma situação em que os empregados de suas propriedades são praticamente forçados a continuarem por lá, porque não podem vender seus imóveis?

Isso está errado, muito errado.

Prefiro não dar meu nome, por razões óbvias. ”

Eugênio Vieira, presidente da Firjan

 

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Miguel do Rosário

Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.

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