Obstáculos do cinema brasileiro

Coluna quinzenal Fino Grão, com Ana de Hollanda

OBSTÁCULOS PARA O AVANÇO DO CINEMA E DO AUDIOVISUAL BRASILEIROS

Por Ana de Hollanda, ex-ministra da Cultura.

Dinamismo e imponderabilidade são características próprias da cultura que, no mínimo por isso, a diferencia bastante de outros setores de produção. A partir dessa comprovação, uma série de impasses se apresentam para a definição de uma política de Estado voltada para a população em suas expressões simbólica, social e econômica. Equacionar a liberdade de criação a rigorosas regras de planejamento e previsibilidade, sem engessá-la, é quase um contrassenso.

A indústria do cinema conta hoje no Ministério da Cultura com a ANCINE – Agencia Nacional de Cinema e a Secretaria do Audiovisual (SAV) que, por sua vez, administra a Cinemateca Brasileira e o Centro Técnico de Audiovisual. Para formular e implementar políticas públicas, desde 2001 existe, por força de lei, o Conselho Superior do Cinema (CSC), órgão colegiado presidido pelo Ministro da Cultura e formado por representantes de nove ministérios, do setor audiovisual e da sociedade civil. No entanto, devido ao vencimento dos mandatos de seus representantes há quase um ano, o CSC está praticamente desativado, deixando acéfala a política do Cinema e Audiovisual no Brasil.
Em relação à Cinemateca Brasileira, centro de excelência melhor equipado na América Latina para preservar, recuperar e difundir a memória da produção cinematográfica, pretendo dedicar um artigo especial adiante. Mas não posso deixar de chamar atenção ao fato de que ela, com essa vocação e raríssimo acervo de imagens em movimento, precisa urgentemente de maior amparo em recursos materiais e humanos.

Aqui abordarei alguns aspectos estratégicos da produção e da indústria do audiovisual, concentrados na ANCINE. Criada em 2001, por Medida Provisória, já em sua origem apresenta algumas aberrações. Alerto primeiramente para as atribuições – fomento, regulação e fiscalização do mercado de cinema e de audiovisual no Brasil. Há de se estranhar que, diferentemente das dez outras agências reguladoras, a responsabilidade pelo fomento acrescentada à ANCINE, faz com que ela, ao mesmo tempo em que fomenta, fiscalize seu fomento. Mais adequado seria deslocar essa atividade para órgão específico do Ministério da Cultura, talvez a própria SAV, desde que estruturado para tal. Na realidade, como a agência foi criada a partir de atribuições que anteriormente, e de forma incipiente, pertenciam à Secretaria do Audiovisual, nunca ficou redefinido, claramente, o limite entre as funções de um e outro órgão. Internamente, um segundo fator incomum a causar conflitos é o número de membros da diretoria colegiada, quatro, número par que acaba por delegar ao presidente o voto de minerva em caso de empate, o que não é raro acontecer. É a centralização do poder nas mãos de uma só pessoa. O presidente, por sinal, acaba de ser reconduzido para seu terceiro mandado consecutivo de quatro anos – algo inédito e não previsto na legislação federal. Porém dois fatores têm sido motivo que reiteradas críticas à agência: a excessiva burocracia e a falta de transparência.

Que órgãos de controle exijam inúmeros documentos e comprovações a quem se propõe a buscar apoio de instituição pública é absolutamente compreensível. A princípio não se questiona isso, mas sim a cobrança, por parte da ANCINE, de outras comprovações que a diretoria e técnicos do setor sabem, ou deveriam saber, que são praticamente inviáveis para quem trabalha na dinâmica da produção. Aliás, a grande queixa no setor é que, invariavelmente, os produtores perdem prazos e cronogramas, acarretando prejuízos irrecuperáveis, ao suspenderem o andamento dos trabalhos para justificar ou recorrer de decisões da agência. Paradoxalmente, a agência não oferece prazos para análise de processos, de prestações de contas e dá-los por encerrados. Isso obriga os profissionais a permanecerem de prontidão para atender a qualquer cobrança adicional, eventualmente uma década ou mais após a entrega de toda documentação.

Quanto à acusação de falta de transparência, grande mistério ronda o Comitê de Investimento do Fundo Setorial do Audiovisual – FSA e suas várias linhas de apoio ao audiovisual em salas de cinema e televisão. Primeiramente, após o envio de toda documentação, uma comissão de pareceristas anônimos avalia os projetos que pleiteiam financiamento. No primeiro informe, após eventuais diligências, um parecer qualitativo é emitido, com questionamentos, juízos de valor muitas vezes sem cabimento e, mais grave, sem assinatura identificando o autor da avaliação. Portanto, nada se sabe sobre a qualificação dos consultores-avaliadores que  emitem pareceres sobre projetos, muitas vezes de renomados diretores e produtores com anos de experiência na atividade.  A seleção final cabe ao Comitê de Investimento que é formada somente por técnicos da ANCINE e do agente financeiro, no caso atual o Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul – BRDE. Não há como não se estranhar que um mesmo comitê fixo selecione todos os projetos durante seu mandato de dois anos, principalmente se considerarmos o aporte do FSA – previsto em torno de 800 milhões de reais anuais. É gritante a concentração de poder em um mesmo grupo que, a princípio, não conhece profundamente o assunto e suas peculiaridades. Como termo de comparação, lembro apenas a portaria nº 29 do MinC que, ao regular editais para seleção de projetos culturais, determina que se nomeie uma comissão específica para cada edital, com membros de notório saber no assunto, de diferentes regiões do país, não necessariamente servidores do Ministério mas, se forem, que o sejam de outros departamentos distintos do que promove a seleção.

Com a aprovação da Lei 12.485 em 2011, uma vitória para a produção nacional audiovisual, o setor passou a contar com várias formas de apoio, desde financeiro até espaço em canais por assinatura para produção independente. No primeiro semestre de 2013, graças a alguns filmes de grande bilheteria, o cinema brasileiro comemora seu melhor desempenho desde 2010, com 18,6% de público do circuito cinematográfico. É um alento verificar que o público está se afeiçoando às produções nacionais. Esperamos que, nesse ritmo, em poucos anos surjam segmentos que absorvam também linguagens mais ousadas e descomprometidas. São avanços concretos que devem vir acompanhados por política isonômica, gestão moderna e transparente. Não se pode conceber projeto político sem pensar na gestão que busque bons resultados para o setor e a sociedade a curto, médio e longo prazo.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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