Publicamos abaixo um artigo instigante de Renato Rovai, editor da Forum, comparando organizações políticas tradicionais a velhas gravadoras, que não entenderam a emergência de um mundo sem intermediários. Acho que Rovai tem razão em vários pontos. Eu ressalvaria as diferenças entre política e música, porque a representação política, seja direta, como quer o “novo”, ou indireta, como fazem os partidos, implica responsabilidade. Se há o desejo real de uma participação mais direta na política, o sistema terá que encontrar maneiras de responsabilizar o indíviduo por eventuais erros de avaliação, condução ou mesmo corrupção.
Ou seja, se há setores cobrando mais direitos, o que é legítimo e extremamente positivo, tem que haver outros exigindo também a exigência de mais deveres. Só aí a conta fecha. O que os jovens estão dispostos a fazer, em prol de seu país, além de filmarem as manifestações? O governo oferece R$ 10 mil de salário e R$ 30 mil de ajuda de custo no translado, e mesmo assim vemos setores inteiros da sociedade esnobando um trabalho na área de saúde? Onde vamos chegar se a um egoísmo social crescente for somada uma postura truculenta e arrogante em relação ao poder público?
As organizações tradicionais, governos incluídos, têm de se adaptar, e rápido, aos novos tempos. Mas temos de nos precaver, por outro lado, para não transformar governos e partidos em fanpages curtidas por milhões mas vulneráveis a problemas de representação política ainda piores – mais elitistas e excludentes – do que hoje vivemos.
Quando o novo já nasceu e o velho ainda não morreu…
26/07/2013 | Publicado por Renato Rovai, em seu blog.
A onda de manifestações que varreu o Brasil evidenciou um novo padrão de demandas e lutas sociais. Dialogar e compreender a importância deste momento é fundamental para não ser atropelado pela História
O que aconteceu no mês passado no Brasil não pode ser entendido com base nas mesmas lógicas e padrões da sociedade industrial. É necessário buscar entender o tempo em que estamos vivendo, como as dinâmicas de relação de poder se estabelecem e quais as novas demandas e padrões de luta. Não são questões fáceis e nem demandam respostas precipitadas.
O mundo transita da era industrial para a era informacional. Isso acarreta grandes transformações na economia, na cultura e também na política. Quando ocorreu a migração da sociedade agrícola para a industrial, pôde-se perceber movimento semelhante. Foram grandes as transformações e enormes as resistências. Houve quem preferisse destruir as máquinas do que tentar entender suas possibilidades e potencialidades. Hoje, alguns agem da mesma forma. Mas a sociedade em redes não permite respostas analógicas.
Os partidos e movimentos tradicionais ainda resistem em entender esse novo processo. Não compreenderam que, na sociedade em redes, uma das grandes crises se dá em relação às organizações intermediárias. A indústria cultural foi uma das primeiras afetadas por esse fenômeno. As gravadoras de música, por exemplo, tentaram resistir a ele com a criminalização do que chamavam de pirataria. Tiveram que mudar a estratégia, mas, antes disso, perderam muito espaço e parte significativa do poder que possuíam.
Na indústria da informação está ocorrendo o mesmo. Boa parte dos grandes grupos desse setor está ruindo porque decidiu enfrentar as mudanças, e não buscar se adaptar a elas. Ao mesmo tempo, as redes se organizam e buscam novas formas de narrar as transformações que acontecem nas ruas. Formas essas que são mais diretas, em tempo real, colaborativas.
Filipe Peçanha é levado pela Tropa de Choque carioca (Foto: Mídia Ninja)
Um bom exemplo é o trabalho realizado pelo Mídia Ninja. Jovens, espalhados por todo o Brasil, munidos de celulares e câmeras, transmitem as manifestações em tempo real, via web, diretamente do olho do furacão. A iniciativa em si não é inédita, mas, na atual conjuntura, ganhou uma relevância sem precedentes. Esses jovens, articulados em rede, realizam uma cobertura melhor, mais completa e mais fidedigna do que acontece nas ruas do Brasil. Deixam a velha “grande mídia”, detentora de enorme poder econômico e político, comendo poeira. Assim como negam a “grande mídia” nas ruas, os novos movimentos reconhecem e valorizam essas iniciativas. Se o governo se nega a discutir a democratização da comunicação, esses jovens não querem e não podem mais esperar. Estão indo para as ruas e fazem acontecer. É o midialivrismo plantado por veículos como a Fórum que começa a ver um novo florescimento. É, parafrasendo o poeta Sérgio Vaz, o midialivrismo vivendo sua Primavera de Praga.
Crise da democracia representativa
Mas voltando aos mediadores, na lógica da democracia representativa os partidos são as entidades intermediárias. Eles são as gravadoras da indústria da música. E as pessoas que estão nas ruas não desejam mais ser representadas por eles da mesma forma que são hoje. Pelo contrário, querem se autorrepresentar. É uma crise de um modelo de democracia para o qual ainda não se tem respostas e muito menos soluções. Mas a crise precisa ser reconhecida para que se possa criar novos modelos.
A resposta tradicional a isso é a de que esses movimentos negam a política. Essa é uma daquelas respostas simples que não buscam dialogar com o problema. Entre outras coisas, porque nunca se discutiu tanto política como nesses anos de redes em redes. Essas redes nascem nas ruas e se articulam na internet. Nascem na internet e se manifestam nas ruas. Não são produzidas em escala industrial e nem em linhas de produção. E nelas há forças centrais, mas não há um centro. E as forças centrais podem inclusive ser contraditórias.
É preciso pensar em movimentos, e não num único movimento. Movimentos que, em alguns momentos, podem se juntar com base em uma sensação de que algo precisa mudar.
É preciso pensar um novo modelo político com base em um novo diagnóstico. Não tentar forçar o novo a se adaptar ao velho. Ou aí, sim, a democracia entra na zona de risco. Quando o velho e o novo convivem no mesmo período, o imponderável passa a ser parte constante do jogo.
Geração Facebook e Passe Livre
Há um bom tempo que representantes de movimentos tradicionais de esquerda afirmam que “essa galera do Facebook não sai do sofá”. E, além de não participar dos debates que acontecem na internet, deslegitimam aqueles que o fazem. A geração Facebook já havia saído do sofá em alguns países. E agora resolveu sair do sofá no Brasil, questionando, entre outras coisas, a política tradicional.
O Facebook é uma plataforma como foi o Orkut, que hoje é um cemitério de perfis. E o Facebook, em breve, será substituído por outra plataforma, mas as redes que nele se articulam não mais se dissiparão, pois são anteriores à internet. Elas são espaços de esfera pública. Na França da revolução burguesa, os cafés de Paris faziam esse papel. Nas greves do ABC, do fim da década de 1970, as comissões de base organizavam o chão da fábrica e o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC era o principal aglutinador daquele movimento que vinha de baixo. E, ao mesmo tempo, o Sindicato se articulava com outros sindicatos do Brasil e do mundo, construindo uma rede de lutas que foi fundamental para derrotar a ditadura.
Nas novas dinâmicas de rede, o que está ocorrendo é que essas organizações tradicionais preferiram o velho ao novo. Negar a rede parece ser uma forma de se defender do novo. Isso não tem a ver diretamente com o Movimento Passe Livre, mas tem. O Passe Livre já há algum tempo se articula e debate a questão do transporte público no Brasil. Seus líderes sabem do que falam e têm sua pauta. Nos últimos anos, esse movimento já vinha crescendo, tanto que nas últimas manifestações contra o governo Kassab houve forte repressão e, inclusive, vereadores petistas que atuavam com o movimento foram agredidos.
A primeira ação do MPL no governo Haddad também foi grande, mas, dessa vez, havia uma insatisfação generalizada e difusa contra uma outra série de coisas. Há gente contra a realização da Copa no Brasil, movimentos sociais indignados com o governo Dilma pela ausência de interlocução, grupos de direita doidos para acabar com o PT, gente da periferia de São Paulo que não suporta mais a ação policial repressiva e outros que lutaram contra a PEC 37. Havia de tudo, como é comum nesses novos tempos de múltiplas pautas e múltiplas causas.
Não foi diferente no Egito, na Tunísia, na Espanha e nem no Occupy Wall Street. De novo, não existe movimento, mas movimentos. E, neste novo contexto, as pautas estarão sempre em disputa quando o povo for às ruas. Às organizações mediadoras, enquanto a democracia representativa resistir, restará a possibilidade de tentar dialogar com a parte das ruas que tiver apreço pela democracia. E lutar para que o processo democrático não seja dinamitado.
O que será do amanhã?
Existe uma possibilidade enorme de se avançar e de o Brasil dar um passo mais largo no sentido de ampliar seus canais democráticos. Para isso, é necessário passar a entender a política de forma dialógica, e não analógica. É preciso ampliar o diálogo utilizando instrumentos das ruas e das redes. Há uma nova gramática dos movimentos que precisa ser incorporada pela política tradicional. Uma nova gramática muito mais horizontal e plural.
Também há que se reaprender a fazer mais política com seus instrumentos sociológicos e escapar da centralidade das planilhas. A tecnocracia substituiu o deus mercado no Brasil. Antes, tudo se resolvia na lógica do mercado. Hoje, se resolve na base do que as planilhas disserem. E planilhas são planilhas. Elas podem ser adaptadas às conjunturas e ao momento social.
Na era informacional, a fragmentação não está em disputa, ela é um dado de realidade. O que está em disputa é a política, que não está sendo praticada na sua essência nem pelos governos que afirmam ter viés de esquerda e nem pelos movimentos tradicionais de esquerda. A política como um espaço de construção de um mundo melhor e de diálogo. A política como espaço de transformação da realidade.
O texto faz parte da edição 124 de Fórum, que traz um especial sobre as manifestações de junho. Nas bancas ou compre aqui.