O professor Wanderley Guilherme dos Santos, insigne colaborador deste blog, alerta que o açodamento legislativo está fazendo com que algumas perigosas armadilhas antidemocráticas estejam sendo armadas. “Pedir de nariz arrebitado um plebiscito para aprovar opções elaboradas pela direita é apenas desolador.”
Cafezinho com Wanderley
Os gatos antipovo das lebres reformistas
Por Wanderley Guilherme dos Santos
Vestais da esquerda saíram do armário com suas túnicas udenistas e se abraçam à direita no ataque a algumas das instituições democráticas vigentes. Sempre estiveram juntas nesse assalto, parceria obscurecida pela discordância entre elas sobre políticas sociais. O coração reacionário dessa cumplicidade pulsa na aceitação de que os políticos que consideram desmoralizados e sem credibilidade são exatamente os mesmos, esses que estão aí, aos quais entregam a responsabilidade para elaborar uma proposta de reforma em que todos os itens sugeridos, até agora, castram avanços pretéritos da sociedade. Propostas de substituição do sistema proporcional são comuns à direita e à esquerda desde a publicação da Constituição de 88. Voto majoritário puro ou misto e voto em lista, para não mencionar a abolição do voto obrigatório, são variantes nascidas no coração do reacionarismo nacional, em São Paulo, e em parte adotado pelo Partido dos Trabalhadores e até por centrais sindicais. Estas, contagiadas pela vizinhança dos Jardins, retratavam Getulio Vargas como um caudilho maligno e nunca perceberam, por exemplo, que o imposto sindical garantiu, fundamentalmente, o financiamento privado da participação política dos trabalhadores. Privado, isto é, por eles mesmos. Hoje defendem o financiamento público das campanhas alheias e recusam o financiamento privado, restrito a pessoas físicas e com limite de contribuição, enquanto os conservadores especulam com a possibilidade de que contribuições de qualquer natureza só possam ser concedidas a partidos, administradas por seus dirigentes, não a candidatos individuais. Eis as fantásticas rupturas democratizantes alegremente saudadas pelas babás (leia-se “analistas”) dos filhotes dos filhotes da ditadura. Nunca a esquerda nocauteada admitiu tão completamente a sedução ideológica da direita contra o poder do voto popular. Pedir de nariz arrebitado um plebiscito para aprovar opções elaboradas pela direita é apenas desolador.
Em meio ao assédio do casal de vestais da esquerda e garanhões da direita tem sido fácil aprovar medidas que não passam de engodo ou representam tiros demagógicos que fragilizam a Constituição diante de futuras rajadas reacionárias. Dois exemplos recentes: a redução para um do número de suplentes de senadores e a do número de assinaturas para legislação de iniciativa popular.
Com a mímica da redução do número de suplentes de senadores, a proposta recém aprovada no Senado simplesmente restabelece o comando autorizado pelo parágrafo quarto do artigo 60 da Constituição de 1946, fixando em um o número de suplentes, e que valeu até que a emenda ditatorial de 17 de outubro de 1969, em seu parágrafo terceiro do artigo 41 da Constituição de 69, aumentasse para dois esse número. A Constituição democrática de 88 incorporou e consagrou no parágrafo terceiro de seu artigo 46 esse detrito ditatorial. Pretender avançar retornando a um texto pré-ditadura equivale a contrabandear gato por lebre.
No minueto do impedimento da candidatura de parentes para a vaga de suplentes de senadores, a emenda dita progressista aprovada retrocede outra vez à Constituição de 46, que já os tornava inelegíveis no item c) da alínea I de seu artigo 140. Enorme gato enfatuado, esses arrufos de vanguarda deixam escapar, pimpona, a verdadeira ratazana, sócia atleta do sindicato dos corruptores ou da oligarquia familiar – a instituição genérica da suplência senatorial, em si mesma, a qual deveria ser simplesmente abolida.
Há pior. A Constituição de 88 prevê, além de plebiscitos e referendos, a tramitação de legislação de iniciativa popular, desde que apoiada por um por cento do eleitorado nacional (em torno de 1 milhão e trezentos mil subscritores). Os senadores Rodrigo Rollemberg (PSB-DF) e Lindberg Farias (PT-RJ), respectivamente autor e relator da PEC 3/2011, aprovaram, em 10/7/13, redução da exigência para 0,5% do eleitorado, com aceitação de subscrição digital, ou seja, cerca de 650 mil feicebuquistas. À época da Constituinte de 86, o fenômeno das redes sociais era inexistente e, portanto, nem se prenunciava o perfil que, aliás, ainda está por ser inteiramente delineado. O eleitorado de então, em torno de 94 milhões e meio, correspondia a menos 48% dos 140 milhões e 400 mil eleitores atuais. Era mais do que hospitaleiro o requisito de subscrição de 1% daquele eleitorado para dar andamento a propostas legislativas, sem torná-las inviáveis ou criar ameaças potenciais ao trabalho normal do Congresso. Mas o aumento homeopático no número absoluto de apoiadores, pela lei que aprovaram, não protege a vulnerabilidade a que ficam expostos os quase cento e cinqüenta milhões de eleitores que não opinarem, expulsos da irrisória porcentagem de 0,5% de ativistas agraciados com a difusão de molotovs legais, propiciada pelos dois senadores e os que os seguiram, a saber, pouco acima da metade da Casa, 55 votos a favor.
O crescimento do eleitorado impõe como salvaguarda das maiorias – atenção, salvaguarda das maiorias – o aumento no porcentual de apoiadores para justificar o curso obrigatório de iniciativas populares. Hoje, com a revolução nas mídias sociais e a capacidade de mobilização de minorias ideologicamente organizadas, a possibilidade de fustigar o ordenamento legislativo do país é mais do que óbvia. Estão aí os “anônimos”. Sem mencionar tentativas de congestionar Congressos legítimos com dezenas e dezenas de iniciativas “populares” coordenados por grupos fascistas. Aumentar seu potencial de dano a custos baratos é atentado constitucional que febre momentânea ou aventureirismo crônico explicam. Inaceitável à a adesão ou silêncio cúmplice dos analistas modernos e de vanguarda, babás dos netos da ditadura.
Ademais, ficam à mercê os brasileiros não eleitores e, cassação elitista de direitos, os excluídos do mundo eletrônico, entre eles os analfabetos digitais ou sem mesada gorda. Pois os facebuquistas não irão procurar os analfabetos sem renda ou aparelhos eletrônicos para obter a adesão deles. Nem saberão que há iniciativas de legislação popular com adesão digital. Sutil discriminação tecnológica.
Estabelecido por decreto ditatorial, o voto ao analfabeto foi concedido ao final do governo Figueiredo, com a restrição de que, embora votantes, não podiam ser votados. A Constituição de 88 incorporou essa meia cidadania, estabelecendo, no parágrafo terceiro de seu artigo 14, que “são inelegíveis os inalistáveis e os analfabetos”. Agora, os senadores de esquerda estabeleceram que os netos da ditadura pilotando tabletes terão oportunidades desiguais de aderir a iniciativas populares.
À noite do modernismo digital, todos os gatos passam por lebres.