Brasil na vanguarda dos direitos autorais
Ana de Hollanda, ex-ministra da Cultura
Em meu artigo publicado neste blog no último dia 16, abordei a questão do direito intelectual na sua origem e as duas principais formas legais de proteção da criação artística adotadas no mundo todo. Hoje volto ao tema trazendo o assunto para o terreno brasileiro, onde a definição da nova lei do direito autoral ainda permanece uma incógnita.
Ao assumir no Ministério da Cultura, em janeiro de 2011, recebi da Casa Civil, para reexaminar, o anteprojeto de lei que para lá tinha sido encaminhado, poucos dias antes. Esse projeto que começou a ser discutido já havia seis anos, submetido à consulta pública, ao ser sistematizado não atendeu a grande parte das demandas dos detentores de direitos, além de apresentar problemas graves de ordem constitucional. Optamos por respeitar a consulta pública, porém divulgamos o anteprojeto no site do MinC para que pudesse torna-lo público e vir a receber contribuições não incorporadas naquela versão. Depois de amplas discussões, seminários, ele foi sistematizado e, em outubro de 2011 reenviado à Casa Civil. A partir daquele momento, a Casa Civil assumiu a responsabilidade de convocar reuniões com outros ministérios envolvidos com o tema, em busca de concordância geral para remessa ao Congresso.
Não é sem surpresa que leio nos jornais que a prioridade atual do Ministério da Cultura passou a ser a aprovação de algum entre os projetos de lei elaborados pela Fundação Getúlio Vargas e propostos por congressistas. O mais grave não é o fato dos projetos terem sido desenvolvidos por um departamento da FGV que, com apoio de grandes empresas do ramo, defende a liberação gratuita de obras artísticas na internet. O que vejo como o mais grave é o abandono da metodologia defendida pela esquerda e adotada nas gestões dos dois presidentes do PT, ou seja, a da consulta à sociedade civil. Esse trabalho minucioso consumiu oito anos de reflexão, diálogo com os setores envolvidos e consideráveis recursos financeiros. É preocupante a tendência ao abandono do empenho coletivo e a mudança de rumo.
Uma lei de tal envergadura, que pode proteger ou fragilizar a produção cultural brasileira, não pode ser aprovada sem passar por consultas e estudos responsáveis que garantam a defesa das obras e de seus autores. Uma lei mal feita acaba se tornando letra morta.
A vigente, de 1998, garante a proteção, mas pode e deve ser atualizada, principalmente ao considerarmos as novas tecnologias digitais e virtuais que abrem caminhos para inusitadas utilizações de conteúdos culturais.
Por outro lado, só com a prática é que realmente se conhece a vulnerabilidade de uma lei. Em 2011 um escândalo envolveu o registro em nome de terceiros de composições musicais que alguns autores criaram para obras cinematográficas e televisivas. Ficou claro de que havia hiatos nos registros audiovisuais. Obras literárias e literomusicais contam com registro não obrigatório na Fundação Biblioteca Nacional e as musicais na Escola de Música da UFRJ. No entanto, o registro, além de burocrático, custoso e não facilita o acesso aos interessados. Nesse sentido, na versão do anteprojeto da Lei do Direito Autoral foi introduzida uma solução para grande parte dos problemas que envolvem autoria, licenciamento e publicização dessas informações.
A novidade é o Registro Público de Obras, a criação unificada de um sistema informatizado, de âmbito nacional, de registro das obras intelectuais protegidas pelo direito autoral. Segundo a então diretora da Diretoria de Direitos Intelectuais do MinC, Dra. Marcia Regina Vicente Barbosa, seria uma vitrine para os novos autores, produtores e intérpretes, que passariam a contar com condições técnicas de expô-los diretamente na internet, através da plataforma digital do serviço de registro. Por outro lado, atenderia aos usuários, uma vez que serviria também como uma base de dados confiáveis das obras que já estão ou estarão em domínio público e permitiria a criação de uma plataforma digital de licenciamento público de obras.
A proposta, quando obriga apenas os editores e produtores a registrar a obra intelectual após a sua publicação, não atenta de forma alguma contra o princípio da não formalidade para a constituição do registro. Ao contrário, essa obrigação a pessoas físicas ou jurídicas distintas do criador, impõe a responsabilidade exclusivamente àqueles que exploram e divulgam a obra intelectual numa fase econômica posterior à criação.
Assim, segundo a Dra. Marcia Regina, “os serviços de registro de obras e fonogramas podem e devem transcender a mera faculdade cartorária oferecida ao autor para defesa de sua obra, proporcionando-lhe, por meio das novas tecnologias digitais, a ampliação dos usos, negócios e o melhor controle destes em seu proveito e proveito da sociedade como um todo. Afinal, os avanços tecnológicos e suas ferramentas devem ser vistos como aliados necessários ao efetivo exercício dos direitos autorais por seus titulares”.
Para completar essa breve apresentação do aspecto, a meu ver, mais inovador do Anteprojeto da Lei do Direito Autoral encaminhado pelo MinC à Casa Civil em outubro de 2011, não posso deixar de registrar que no encontro da CISAC, comentado em meu último artigo, o tema foi recorrente. A Diretoria Geral da OMPI – Organização Mundial da Propriedade Intelectual, ligada à ONU, ao ser consultada na ocasião sobre a viabilidade do registro, respondeu de forma absolutamente favorável. Soma-se a isso a apresentação do projeto do Registro pelos representantes do MinC na reunião regional em Lima em 2011: foi saudada como uma solução vanguardista por representantes das outras nações. Afinal, a criação do IMR, o Registro Internacional da Música, vem sendo discutindo desde 2009 e o Brasil, na vanguarda, propõe um projeto não apenas para música, como para obras de todos os tipos editadas e comercializadas.
Acredito que, ao se inteirar desse reconhecimento internacional da vanguarda brasileira no tema, a Ministra da Cultura Marta Suplicy, com sua inegável sensibilidade, repensará o assunto e retomará o projeto já amadurecido.