Foi maior do que todo mundo esperava. As manifestações de ontem deixaram a classe política perplexa, a mídia em estado de choque e a sociedade em geral com um brilho nos olhos. Nenhum partido, sindicato ou movimento social saiu lucrando. Testemunhamos aqui um grandioso ensaio do que vimos na Espanha, com os “indignados”, ou talvez algo ainda maior.
Estou em Brasília e abordei alguns jovens, que voltavam do Congresso. Eles disseram que as demandas eram várias. São contra o Estatuto do Nascituro e contra as PECs 33 e 37. Informaram que o movimento era apartidário e que houve vaias sempre que alguém levantava uma bandeira. Neste momento, os próprios jovens se dividiram e dois deles disseram, citando São Paulo, que não viam nada de mais em haver participação de militantes partidários com suas bandeiras.
Acompanhei as manifestações no Rio, através dos relatos de amigos e pela TV. De noite, discuti com meus amigos de Brasília sobre o significado de tudo isso. A gente chegou a um consenso que o dia representou um momento de ruptura histórica. Para o bem ou para o mal. A presidente Dilma e o governo federal agora terão de se mexer.
Parte do que aconteceu é o roteiro de uma crônica anunciada. Antes mesmo da presidenta assumir, alguns cientistas políticos alertavam: as demandas agora serão outras, muito mais complexas, e mais difíceis de serem atendidas.
Outra conclusão nossa é que, se há, de fato, uma despolitização na juventude, este é um vazio que eles mesmos agora estão querendo preencher. A falta de foco das manifestações revela que o jovem quer ser politizado. Ele quer participar.
Alguns erros do governo agora ficaram evidentes. O governo Dilma se acomodou com uma política de comunicação ultraconservadora. As estatísticas de popularidade foram supervalorizadas. As manifestações de ontem bateram pesado também no PT e na presidenta. E como dizíamos no post anterior, não tinha como ser de outra maneira. A espiral do silêncio se ergueu. Trata-se de um fenômeno capaz de engolir as lideranças mais populares. Num momento, elas são aprovadas por um grande número de pessoas, e esse fato faz com que ninguém tenha coragem de expor sua divergência. Mas quando há uma fissura no sistema, quando alguém dá um passo à frente, todos os outros o seguem, e a liderança que pontificava no alto de um pico de aprovação se torna a mais rejeitada de todas.
O que o governo tem a oferecer à juventude? Nada. Não construiu canais de comunicação modernos. A imprensa alternativa, blogs e sites, todos aqueles que sempre defenderam a presidente por ideologia, por convicção política, conscientes dos defeitos terríveis do governo e do PT, mas temerosos da volta de um setor muito mais nocivo ao campo popular, estão debilitados. Até mesmo desgastados, por defender um governo e partidos que se acomodaram. Enquanto isso, a mídia reinou sozinha, difundindo desgraças, potencializando uma insatisfação natural num país ainda cheio de problemas estruturais.
Há um lado negativo em tudo isso: boa parte da indignação difusa da juventude nasce da hegemonia da mídia no debate nacional. Os jovens podem não ler jornais impressos, mas lêem notícias divulgadas pelo Facebook, onde o que predomina, ainda, é o discurso apocalíptico, udenista e antipolítica. Qual a fonte primária de informações da juventude? Ainda é a velha mídia.
Governos e autoridades sempre tiveram medo da característica anárquica, volúvel e fluida da juventude. Eles querem protestar, mas tem de buscar os slogans de seus gritos de guerra em alguma parte.
Agora a onça bebeu água. O levante da juventude produz uma atmosfera inflamável que pode gerar – gratuitamente – uma crise política, social e econômica.
Os jovens que protestaram não querem ver a sua presidente fazendo propaganda gratuita para a TV Globo, como fez recentemente, ao elogiar o programa Sai de Baixo numa entrevista para Jorge Bastos Moreno, publicada em página inteira no jornal dos Marinho.
Os jovens querem ser seduzidos, conquistados, politizados.
O problema maior de manifestações difusas é que elas degeneram, quase sempre, num discurso udenista, beneficiando o conservadorismo. Mas mesmo isso tem de ser assimilado com inteligência pelo campo popular. O governo federal precisa encampar também o discurso anti-corrupção, criando uma estratégia nacional para ajudar estados e municípios a combaterem essa praga.
Enfim, sei que é fácil falar. Mas essa é a importância das sacudidelas a que manifestações de rua submetem os governantes. Eles têm de trabalhar mais.
Analisando os acontecimentos, Dilma até que deu sorte. Os manifestantes tentaram invadir o Congresso e a sede do governo paulista, mas se mantiveram longe do Palácio do Planalto, por enquanto. Houve palavras de ordem contra o PT e a presidente, mas diluídas em meio à protestos mais gerais, contra tudo e todos.
Sobre o transporte público, eu me lembro de um “escândalo” de um ou dois anos atrás, porque um servidor de um ministério havia dado um parecer desfavorável ao uso de trens de superfície (os VLT) em Cuiabá, e favorecia linhas de ônibus. O ministro, por sua vez, insistiu nos VLTs, conforme orientação do Planalto. A mídia ficou ao lado do lobby dos ônibus. E o governo, sem política de comunicação, jamais entrou nesse debate. Cadê os projetos de VLTs para as grandes cidades?
O jovem tem mais é que ir pra rua mesmo! A política de transporte público nas cidades brasileiras é ridícula. Enquanto a China está sendo cruzada por trens de alta velocidade, e construindo metrôs e VLTs em suas cidades, o Brasil não consegue nem realizar o edital do Trem-Bala. Trem-bala que conta a oposição da mídia, diga-se de passagem, num debate que o governo só perde, sistematicamente, porque a SECOM é aliada da Rede Globo.
Não me espantaria ver manifestações contra o Trem-Bala por causa do uso de “dinheiro público”, e tudo porque não há política de comunicação. Os grandes debates nacionais são pautados pelo sacripanta do Ali Kamel, enquanto a presidenta faz omeletes no programa da Ana Maria Braga.
O projeto do Trem-Bala implicará em transferência de tecnologia e instalação de indústrias de construção de trens, trilhos e equipamentos, a qual será a base para dar suporte aos VLTs (trens de superfície) das cidades brasileiras.
Por outro lado, o jovem precisa entender que manifestações produzem um clima propício para mudanças, mas para que estas se dêem para melhor, o mais importante é o trabalho, o estudo e a criatividade. E tomar decisões. De nada adiantará desqualificar a classe política se não elegermos pessoas melhores, e para isso o manifestante terá que pôr de lado o seu preconceito “anti-partido”. Tenho pra mim que este preconceito beneficia o capital, porque fragiliza a classe política, tornando-a ainda mais dependente do que já é dos grandes empresários. Se já tínhamos uma classe política corrupta, passamos a ter uma também debilitada. Resultado: vitória da direita. Foi o que aconteceu na Espanha. A Itália, o domínio de Berlusconi, nasce exatamente no bojo de uma longa campanha de desqualificação da classe política, aliada ao avanço de Il Cavalieriere sobre os principais canais de TV, rádios e jornais do país.
Em suma, as manifestações de rua que testemunhamos nos fazem descortinar um amplo horizonte de mudanças. Mas se não lutarmos para politizar a juventude, se não combatermos para extirpar o udenismo midiático que ainda grassa em seus espíritos, perderemos uma oportunidade histórica. Para isso, precisamos de uma política de comunicação muito mais agressiva, que reflita a disposição do governo de lutar, efetivamente, por reformas mais profundas e mais aceleradas, no transporte público, na saúde e na educação. Lideranças políticas agora terão de provar que são, de fato, lideranças, e não apenas gestores acostumados com a vidinha medíocre e confortável de burocratas eleitos.
Sabemos que mudanças mais complexas são difícieis e tomam tempo, e que há forças do atraso no caminho, mas a juventude está mostrando que deseja ajudar a acelerá-las.