Há quem sambe diferente

No domingo, fui sacar uns trocados na Caixa e vi uma movimentação atípica. Muitas senhoras consultando seus saldos, pequenos grupos cochichando, nervosos. Eu tinha ficado meio fora da internet nas últimas horas, e não havia visto a dimensão do problema. Conversei com algumas senhoras, disse-lhes que Dilma não faria uma coisa dessas, que não tinha sentido ela acabar, abruptamente, com o principal programa social do governo. Que na verdade iria aumentar e melhorar. Elas me olharam desconfiadas e continuaram cochichando. Uma delas insistia: “minha amiga viu na televisão!” Outra se perguntava: “então porque liberaram uma parte antes da data?” Tudo era motivo de suspeita, até mesmo a gentileza do governo de ter adiantado uma parcela do recurso, justamente para supostamente tranquilizar as pessoas.

Não vou apontar culpados porque é algo muito grave. Seja quem for o autor, é coisa de bandido. Admito que a primeira coisa que me veio à mente foi o “guru indiano” da campanha do Serra, e aqueles boatos horríveis sobre demônio, aborto, etc, que foram um dos responsáveis por levar as eleições de 2010 para o segundo turno. Também me lembrou alguns textos que li sobre as novas táticas de guerra eletrônica e informativa conduzidas pela CIA, que incluem justamente difusão de boatos com fins de desestabilização econômica e política.

Essa boataria serve para acender uma tremenda luz amarela. Somos um país frágil em termos de comunicação. Temos uma população incrivelmente crédula e por isso vulnerável. Temos poucos jornais, poucas rádios, a blogosfera, apesar de tão importante, e ter crescido tanto nos últimos anos, ainda é mambembe. As redes sociais servem tanto para ajudar como para atrapalhar.

A melhor arma de contra-informação de uma pessoa é a sua própria consciência. Infelizmente, temos um povo mal instruído de um lado e uma classe média manipulável pela grande mídia, de outro. Esse déficit da comunicação tem de ser observado com muito mais atenção pelo poder público e pela sociedade civil.

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Sobre a convenção nacional do PSDB, impressionou-me a estética retrô, sobretudo nos discursos. Não um retrô legal, cult, mas um retrô chato. Aécio Neves oferece o exemplo mais notório de um discurso tediosamente tradicional. Até o tom de voz de Aécio nos remete a comícios dos anos 50, com empostações falsas e exageradas na voz, excesso de adjetivos, louvaminhas cafonas de aliados. Um orador político moderno tem de ser mais original. Mais franco, mais bem humorado, mais criativo. Criativo na escolha das palavras, nas pausas entre as frases, na empostação. Senão fica parecendo uma caricatura de político, o que é justamente o caso de Aécio Neves.

Outra coisa que me incomoda profundamente nessas convenções do PSDB é a sensação de estar testemunhando uma reunião da Klu Klux Kan. Só tem homem branco. Tem muito pouca mulher. Nenhum negro. Nenhum índio. Nenhum moreninho levemente mais escuro. Melanina quase zero. Isso num país em que 51% da população é negróide.

Quando a presidente do PSDB Mulher subiu ao palanque para discursar, foi triste. Ficou notório que se tratava de uma mulher só para constar. Não expôs nenhuma ideia, nenhuma argumentação, apenas externou platitudes óbvias de que o partido precisa ter mais mulheres na direção (o que foi a única coisa boa que falou). E foi rápida.

Essa questão da mulher é muito interessante. Nos outros partidos de esquerda, no PT e no PCdoB, por exemplo, a mulher já ultrapassou essa etapa “setorial” e hoje está disputando o poder total. A mulher não quer mais um pedacinho do partido, uma posição folclórica numa comissão feminina. Ela quer, e está conseguindo, conquistar posições de comando. Ela quer inteiro, não pela metade. O PT tem a presidenta. O PCdoB tem Manoela como líder do partido na Câmara, e uma enorme quantidade de parlamentares – só quadros de primeira grandeza.

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Sobre Joaquim Barbosa, nem preciso comentar nada. Aquele ditado é ótimo: peixe morre pela boca. Voltaremos a falar dele quando provarmos, com documentos, que ele cometeu crimes gravíssimos de negligência na Ação Penal 470.

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Por fim eu explico o título do post. No sábado à noite, fui encontrar meu amigo Theo, dirigente do PCdoB aqui do Rio, para uma cervejinha. Ele me contou que aguardava informações da Universidade Federal Fluminense (UFF), onde se dava a apuração das últimas urnas das eleições do Diretório Central dos Estudantes (DCE). Foi uma eleição bastante renhida. A chapa da situação, controlada pelo PSOL, mantinha o poder há sete anos, e o partido investiu pesado na campanha. Apenas o comitê da campanha do PSOL tinha mais de 900 pessoas. Trouxeram quadros do Brasil inteiro. A chapa concorrente era uma aliança entre PT e PCdoB e tinha um comitê de campanha de apenas 300 pessoas e menos recursos; chamava-se Há quem sambe diferente, brincando com um dos slogans da situação.

O Theo me convidou para irmos à Niterói acompanharmos o final da apuração e observamos as comemorações de vitória ou as lamentações da derrota. Achei interessante testemunhar um acontecimento que reflete as primeiras vibrações de um processo político maior. Eleições de diretórios estudantis, hoje em dia, conformam um universo à parte do mundo político convencional, mas sempre é possível estabelecer algumas conexões. Tirante o Reinaldo Azevedo, que sempre se envolve nas campanhas do DCE da USP (e perde sempre, até porque o seu apoio tira votos), quase nenhum analista político dá bola para o que acontece no universo das eleições estudantis.

Pegamos um táxi até o cais, embarcamos. É sempre uma viagem bonita e calmante, ao menos para quem só a faz de vez em quando, ver o Rio se afastando e as luzes de Niterói cintilando do outro lado. No caminho, soubemos da vitória do “nosso” campo (digo nosso, porque era a chapa dos meus amigos).

Chegamos e fomos caminhando até o prédio onde rolou uma breve plenária da vitória. Exatamente no momento em que viramos a entrada do edifício, vimos uma pequena multidão de uns sessenta ou setenta jovens marchando em nossa direção, cantando entusiasticamente:

Ô Ô Ô O Zé Dirceu voltoooou! O Zé Dirceu voltoooooou!

Para quem acompanha diariamente a política, é muito curioso ver uma cena assim. É uma coisa tão distante daquele mundinho udenista agressivo dos saguões de aeroporto e das tertúlias culturais da média e alta burguesia, que aplaude Joaquim Barbosa e hostiliza os alvos da manchete da semana. Engraçado também ver a permanência de Dirceu no consciente dessa garotada.

Em seguida, eles cantaram outros jingles divertidos, como:

Te cuida, te cuida Playboyzada, a Universidade vai ser po-pu-la-ri-za-da!

Era uma provocação contra o PSOL, cujos militantes são associados à classe média alta e que tradicionalmente se opõem a medidas de expansão da universidade.

Mais tarde, fui ao bar e conversei com cada um daqueles jovens. Um deles, mestrando em história, me deu uma panorama extremamente arguto sobre a situação política no estado do Rio, falando sobre Pezão e Lindbergh. Mais tarde, falaremos sobre isso aqui no blog. Eles também cantaram slogans em favor de Lindbergh, pré-candidato a governador do Rio. Lindbergh é um nome que une bastante a juventude de esquerda no Rio.

Já no final da noitada, conversei com dois estudantes de Direito. Eles citaram autores, teorias do direito e ciência política, com muita propriedade. Falamos sobre separação de poderes, STF, Congresso, The Federalist; eles mencionaram decisões históricas da corte suprema americana. Pensei com meus botões, estou conversando com dois excelentes futuros juristas! Ambos extremamente críticos ao populismo baixo nível de Joaquim Barbosa e companhia.

Os arbítrios da mídia e do STF são temas quase sem controvérsia. A mídia joga em favor do conservadorismo, é golpista, e o STF fez o jogo da mídia e da oposição ao condenar os réus do mensalão sem prova. Ponto final. Os jovens, aqueles jovens, sabem disso. Parte de sua luta, enquanto ativistas, consiste em dar sua contribuição, dentro do pequeno universo de influência a seu redor, para politizar esse debate. E eles o fazem com categoria.

Voltei de madrugada pro Rio, feliz por saber que essa onda antipolítica da qual Joaquim Barbosa emerge como ícone máximo, o antipartidarismo, a incompreensão do processo democrático, começa a encontrar pedras duras em seu caminho. A resistência ao udenismo, ao falso moralismo, às campanhas que desqualificam a política e os partidos, tem seus representantes também entre a juventude. Jovens que têm orgulho de seu partido, sem deixar de conversar e estabelecer parcerias com militantes de outras legendas. Jovens que vêem a política como chance para efetivamente transformar a sociedade, sem cair nesse engodo pós-moderno da negação da democracia representativa – engodo que levou os espanhóis, após fazerem belíssimas manifestações populares, a elegerem a mesma direita que os havia conduzido ao buraco onde estão. Não caem no engodo também dessas ondinhas de facebook: Belo Monte, “índios” do Maracanã, Marcelo Freixo, etc.

Ah, na enorme mesa onde se reuniram na noite da vitória, também entoaram, alegremente, um dos mais velhos jingles políticos da redemocratização, devidamente adaptado:

Olê, olê, olê, olá, Dilmaaa, Dilma!

Alguns membros da chapa vencedora da UFF

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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