Se havia alguma dúvida sobre a aliança espúria entre o STF e a mídia, um texto publicado hoje no jornal da maior empresa de mídia no país esclareceu tudo.
“Joaquim Barbosa seria meu candidato definitivo à presidência da república e estou certo que ele venceria no primeiro turno”, afirmou hoje, em sua coluna semanal, o antropólogo Roberto Damatta.
Repare bem a convicção! “Estou certo que ele venceria no primeiro turno”. No primeiro turno! O artigo revela bem a triste patologia golpista do conservadorismo brasileiro. Porque golpista? Admito que o termo golpista permite interpretações bem diversas. Para a direita, a esquerda é golpista. Para a esquerda, é a direita. No entanto, vejamos quem é o candidato que, segundo o colunista do Globo, “venceria no primeiro turno”. É um político? Pertence a partido? É ligado a alguma legenda? Expressa claramente suas opiniões políticas ou ideológicas? A resposta para todas as questões é: NÃO!
A asserção de Damatta flerta com uma gravíssima ilegalidade, ao sugerir que Barbosa, representante máximo do Judiciário, ambiciona controlar também o Executivo. Juízes estão proibidos, constitucionalmente, de fazer política partidária, de maneira que a declaração de voto em Barbosa, por parte de um antropólogo erudito, é, para dizer o mínimo, de um mau gosto atroz e desastrado.
O pior mesmo é o “eu tenho certeza”, que revela apenas a arrogância sem limites, à beira da esquizofrenia, de quem vê o jardim que descortina da janela da Casa Grande como se contemplasse o mundo inteiro.
Esses não são os únicos problemas do texto. Ele é um amontoado de – como diria Manoel de Barros – “ignoranças” sobre política, ideologia e história.
Concordo que não devemos tratar a dicotomia “direita” X “esquerda” com um viés maniqueísta. Suponho que há canalhas de esquerda e pessoas íntegras na direita. Alguns diriam que, se a pessoa é canalha, é porque, na verdade, não é de esquerda, e que se é de direita, também não pode ser tão legal assim. Não vou entrar nesse tipo de juízo.
Entretanto, quando se observa a dialética ideológica no mundo hoje, não estamos avaliando a integridade ou valor subjetivo de ninguém, mas apenas constatando a permanência de um conflito muito natural entre o trabalho e o capital, que atravessa a história da humanidade desde seus primórdios. Os termos “esquerda” e “direita” nasceram no âmbito da revolução francesa, mas as lutas sociais vêm de muito mais longe.
O renomado historiador francês León Homo, que escreveu um dos maiores clássicos sobre Roma antiga, “Les Institutions politiques romaines”, uma obra profundamente documentada e filiada aos critérios mais rígidos da tradição historiográfica europeia, não hesita em dividir as facções políticas da república romana em “esquerda” e “direita”. De fato, ao se estudar a realidade daqueles tempos, não é difícil constatar que a classe dos nobres, dos aristocratas, o partido dos “optimates”, representava a direita romana; plebeus, estrangeiros, trabalhadores, o partido dos “populares”, correspondiam à esquerda. Havia pessoas boas e más em ambos os lados. A esquerda vivia infestada de traidores, oportunistas, corruptos, espertalhões. A direita sofria com seus ambiciosos, ególatras, corruptos. Entretanto, mesmo com os problemas de cada lado, o partido popular, a esquerda romana, é que representava a maioria (outra característica da esquerda), e a sua evolução significou a modernização democrática da civilização romana. Não fossem as espetaculares vitórias plebeias, Roma jamais teria chegado onde chegou: seria consumida muito antes disso, de dentro. Foram as conquistas trabalhistas e políticas plebeias que injetaram orgulho e autoestima no povo romano. Foi assim na França napoleônica e foi assim nos Estados Unidos. Sem conquistas sociais, trabalhistas, políticas, por parte de sua classe trabalhadora, nenhum país consegue olhar a si mesmo com a dignidade necessária, não consegue ser um país de verdade, permanece apenas um casual aglomerado geográfico na periferia do mundo.
Damatta fala que a “esquerda tem sofrido de estadofilia, estadomania e estadolatria. Daí a sua alergia a tudo que chega da sociedade e de seus cidadãos”.
Pelo amor de Deus, quanta besteira! A esquerda quase sempre esteve afastada do poder, no Brasil. Suas forças se desenvolveram no chão, na terra, longe das benesses, das mordomias, do Estado e sua clientela. Quem sempre sofreu de estadomania é a direita brasileira, tradicionalmente dependente do Estado. Tanto é que, fora do Estado, não consegue mais ganhar eleições, porque jamais aprendeu a botar a mão na massa.
Agora, é evidente que a esquerda tem uma visão de Estado bem diferente. A esquerda é o partido, em suma, dos pobres. Sim, porque a direita brasileira, diferente de suas primas no primeiro mundo (que tem um discurso nacionalista e, em alguns casos, trabalhista), é fundamentalmente antipobre e antinacional. Os pobres precisam muito mais do Estado do que os ricos.
Mas Damatta é um grande hipócrita. O jornal para o qual ele escreve recebeu R$ 6 bilhões do governo federal apenas nos últimos 10 anos. Acabamos de saber que o STF pagou a passagem de repórter do Globo para acompanhá-lo à Costa Rica. Agora faça um exercício de imaginação e tente adivinhar quanto dinheiro as organizações Globo já ganharam do Estado nos últimos 50 anos? E a esquerda é que sofre de estadofilia?
Quando o Brasil convivia com juros estratosféricos, o Estado permitia que a direita rentista ganhasse bilhões de dólares por dia, sem trabalhar, sem fazer nada, mas é a esquerda, segundo Damatta, que sofre de “estadolatria”…
O antropólogo acusa a esquerda de querer um “Estado forte”, como se isso fosse algo errado. Na verdade, queremos um Estado justo para um país que pretende se desenvolver. Compare o tamanho do Estado brasileiro, em arrecadação fiscal per capita, em número de funcionários por 100 habitantes, com os países desenvolvidos, e verá que temos um Estado pequeno, insuficiente, pobre.
Sem contar que Damatta repete, qual papagaio terceiromundista, a grande mentira americana contra o tamanho do Estado: os EUA tem um Estado gigantesco, encarnado num aparato militar monstruoso. O Estado americano, com suas armas de destruição em massa, com seus aparelhos de repressão doméstica e externa, com seus serviços secretos e seus gastos trilionários com guerras, não é um “Estado forte”?
Pior, Damatta envereda para o golpismo quando usa a sua coluna do Globo para fazer proselitismo político com a imagem do presidente do STF, Joaquim Barbosa. Toda aquela história de separação de poderes, de Montesquieu, de democracia, vai pro ralo quando ele confere a um membro do judiciário o poder de governar o Brasil. Sim, é o que ele faz, simbolicamente, ao dizer que votaria em Barbosa e que este ganharia as eleições no primeiro turno. Damatta chancela a não-política, e sacrifica a democracia brasileira no altar sagrado de um STF submisso ao Globo. O círculo se fecha. O Globo desqualifica a política e o congresso; exalta e glorifica o STF, sobretudo os juízes que seguem a sua cartilha. E daí se empolga e quer ver o presidente do STF como presidente da República!
A promiscuidade do STF com a Globo atingiu as raias do insuportável. O ex-presidente do STF, Ayres Brito, não esperou um dia: assim que saiu do STF correu para assinar o prefácio do livro de Merval Pereira sobre o mensalão – não teve nem a decência de aguardar o processo terminar; participa regularmente dos programas da Globonews; e pleiteia, com ajuda global, uma cadeira na Academia Brasileira de Letras. Joaquim Barbosa foi o grande campeão do prêmio Faz Diferença, promovido pela Globo. Logo depois correu para os EUA para receber outro prêmio, de outra publicação direitista, a revista Time. Ele e o cozinheiro Atala. Quando Lula ganhou o prêmio e saiu na capa da Time, a mídia esnobou e procurou diminuir. Agora não. Barbosa viajou aos EUA para receber o prêmio da Time com passagens e hotel pagos pelo contribuinte.
Vejam só. Barbosa reclama (com razão) de juízes que produzem eventos em ressortes com patrocínio de empresas, mas ele faz pior. Esses eventos podem ser pouco éticos, mas pelo menos geram empregos no Brasil e tem patrocínio privado. Barbosa vai aos EUA, promover uma revista conservadora norte-americana, hospedar-se em hoteis estrangeiros, gerando empregos lá fora, com dinheiro público. E tudo para ganhar um prêmio que vai para subcelebridades e cozinheiros (com todo o respeito aos cozinheiros!).
Esse é o candidato à presidente da república no qual Damatta votaria. No artigo, o articulista faz uma tremenda confusão conceitual, sempre para justificar seu próprio conservadorismo. Além de, naturalmente, festejar a Ação Penal 470, sem sequer esconder a ideologia “justiceira” que lhe serviu de base. Os réus do mensalão não foram condenados porque cometeram os crimes dos quais foram acusados, mas porque a esquerda “revelou-se incapaz de honrar com os papeis sociais cabíveis na administração pública e dizer não aos seus projetos autoritários”. Que significa isso? A linguagem remete aos articulistas do tempo do império, mas o sentido é sinistramente claro. Não se culpam os réus, a culpa é da esquerda! Toda a tradição do direito moderno, de que a culpa de um crime é uma responsabilidade absolutamente individual, vai por água a abaixo, e a Damatta tenta criminalizar genericamente todo um espectro ideológico em função dos supostos crimes.
Vivemos tempos sombrios, em que poderosos atores políticos tentam a todo custo levar a luta para fora do ringue democrático, onde a disputa se vence pelo debate, na sociedade, no parlamento, nas urnas. Os velhos setores do golpismo querem travar a luta exclusivamente em seus órgãos de comunicação e no judiciário. E num gesto de comovente amor pela democracia montesquiana, querem fazer do presidente do STF o presidente da República!